Se Pelotas não criou o charque, o charque e
a escravidão inventaram Pelotas (parte 4)
A.F.
Monquelat
Joaquim José Leite da Costa, como procurador,
peticionou em nome de seu cliente, o charqueador Antônio José de Oliveira
Castro, à Sua Majestade, dizendo que seu constituinte era senhor e possuidor de
um terreno, “compreendido em seu Título, do qual não se acha preenchido [não
cumpridas as formalidades legais]”, e que tal terreno estava situado na
Freguesia de São Francisco de Paula, Vila do Rio Grande; porém, Dona Antônia
Margarida Teixeira de Araújo, viúva do capitão João José Teixeira de Guimarães,
possuidora de uma Data de terras na margem do “Rio de São Gonçalo”, nessa mesma
Freguesia, cuja Data se dividia, pelo Norte, com as sobras da “Fazenda de Monte
Bonito”, e que essa Data nunca fora medida nem pelo marido, João José Teixeira
de Guimarães, e tampouco por seus herdeiros. E que por isso, e a seu arbítrio,
estabeleceu os limites de suas terras, pela parte do Norte, em terreno alheio.
Mapa do Rincão de Pelotas situado na margem meridional do Rio grande |
Disse ainda o Procurador “que até o presente, nem
por ele [Guimarães], nem a viúva ou seus herdeiros haviam vendido, cercado ou
tapado o terreno”. E que, medida judicialmente a Fazenda de Monte Bonito,
partia esta, pelo Norte, com as terras da referida viúva e que a linha
divisória corria pela frente de todas as demais Datas de terras, pois na
ocasião foram concedidas na mesma extensão e forma de quando foram dadas aos
antepossuidores de seu marido e que somente este não ficara satisfeito com
aquela medição judicial, por querer avançar sobre todos os outros dateiros que,
aliás, se contentaram com os seus justos limites.
Ao leitor não familiarizado com a história destas
terras (Datas), as quais deram origem à Cidade, queremos esclarecer o seguinte:
o governador Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Câmara, tendo de assentar 20
outras famílias além das 64 assentadas na Sesmaria do Rincão Nossa Senhora da
Conceição (que a historiografia local denomina de Rincão de Correntes) de
propriedade de Manoel Bento da Rocha, aproveitou as sobras do “Rincão de
Ignacio Antônio, que tinha cinco léguas e um terço, das quais três e meia
ficaram ao dito Ignacio Antônio e o resto foi repartido pelos vinte Cazaes”.
Esta repartição, que Veiga Cabral denominou de
“Explicação”, foi por ele anexada na correspondência que enviou em 12 de abril
de 1781, ao Vice-rei Luiz de Vasconcelos e Souza.
Naquela oportunidade, o Governador também informou
que “aos povoadores imediatos a Serra [dos Tapes], por melhor o terreno,
distribuí Datas mais pequenas, que aos situados nas várzeas”.
Para maior clareza do dito pelo Governador, devemos
fazer o seguinte raciocínio: dividir por 20, a área compreendida desde o Arroio
Pelotas até o “Arroio de Santa Barbara”. Feito isto, teremos ideia da largura
de cada uma das 20 Datas distribuídas aos 20 casais. O comprimento é que
variou, de acordo com o tamanho das várzeas localizadas no fundo dos terrenos
dos dateiros.
A
partir daí, alguns elementos nos levam a supor que, pelo menos por quase uma
década, tanto os dateiros quanto os sesmeiros dedicaram-se ao agropastoreio,
ressaltando-se que nas estâncias de Manoel Bento da Rocha e Ignacio Antônio da
Silveira Cazado é bem provável que além do fabrico de charque para o consumo
possa também ter sido produzido com intuito de lucro.
Na
Relação dos gêneros importados e
exportados no Rio Grande de São Pedro no ano de 1787, saíram para o Rio de
Janeiro 65 embarcações as quais transportaram 117. 221 arrobas de charque e 4
barris de carne em Moura, dentre outros produtos.
Embora
não saibamos, por não constar da referida Relação
a origem daquela produção, podemos afirmar que a José Pinto Martins arroba
alguma pode ser creditada, pois por estas bandas ele não se encontrava.
Considerando
que João Cardoso da Silva logo após inaugurar a indústria saladeiril no Rio
Grande de São Pedro (l780), nos disse que deu “aos demais as ideias e noções necessárias para um ramo tão vantajoso ao
Estado [...]” e que, quando da reclamação do comissário espanhol, José
Varella Y Ulloa, ao nosso comissário para a Demarcação dos Limites, Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Câmara,
feita desde o Campo do Taim, aos seis
dias do mês de março de 1785, diz o comissário espanhol a certa altura: À vista disto e de que já tenho feito a V.
Sª. Os correspondentes protestos, sobre a má inteligência que dá aos artigos 3º
e 4º do Tratado Preliminar, só me resta dizer que, nos poucos dias que o
tenente de navio, D. Diego Albear esteve acampado junto às ruínas do Forte de
São Gonçalo, reconheceu o curso do Piratini pelo espaço de 7 ou 8 léguas, em
cuja distância achou três charqueadas e
quatro estâncias (grifo nosso), [...]”, não é temerário afirmar que o
charque produzido no Rio Grande de São Pedro fosse proveniente das charqueadas
estabelecidas na margem meridional do rio Piratini.
Visto
não ter sido Pelotas a pioneira na indústria saladeiril, resta-nos perguntar:
quando e onde surgiram as primeiras charqueadas em Pelotas?
É
provável, embora disto não tenhamos certeza, que as primeiras fábricas de
charquear tenham se instalado às margens do arroio Santa Bárbara, terras do
capitão Ignacio Antonio da Silveira Cazado, e, para tal suposição, apoiamo-nos
nas palavras de seu genro, Gonçalo José de Oliveira e Silva que, no processo
movido contra ele, por Mariana Eufrásia da Silveira, diz a certa altura da
Apelação: ¨[...] quando o Embargante recebeu do capitão Ignacio Antonio da
Silveira, seu sogro, aquelas duzentas e cinquenta braças de campo, em Causa Dotis, no lugar onde se acha
estabelecido com casas, armazéns, negócio, quinta e sua Fábrica de Charquear,
já em todo o Arroio de Santa Bárbara se achavam estabelecidos outros muitos e
diversos moradores com negócios mercantis, Fábricas de Charquear, casas de
residência e armazéns necessários para recolher os necessários mantimentos, que
se exportam para o Rio de Janeiro e mais portos; cujos estabelecimentos foram
ali feitos e formados há muitos anos, com licença, concessão e faculdade do
sobredito Capitão Ignacio Antonio da Silveira, aonde, ainda hoje, existem os
mesmos moradores, com grandes Fábricas e importantíssimas propriedades de
casas, Seleiros [fabricantes ou vendedores de selas] e Armazéns, com grande
giro de Comércio, do qual dão grandes e avantajados interesses a Sua Alteza
Real, com os muitos Direitos que lhe pagam. [...]”.
Continua...
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