segunda-feira, 28 de agosto de 2017

Uma infância sem bairro








         “Andando pela Rua Osório no sentido-bairro-centro, se é que deveria chamar de bairro o local onde morava, pois, sua cidade era a cidade onde quase todos os habitantes se diziam moradores do Centro, por mais longe que dele distassem, o que fazia dela a cidade com o maior centro territorial do estado, quiçá, do mundo. Reflexo da antiga e falida opulência ou falta de melhor planejamento urbano? De qualquer forma, a pobreza do comércio local era evidenciada pela proliferação das lojas do Um e Noventa e Nove”.
         Ao reler este texto, publicado em 1997 como parte integrante do livro Maiêutica, fiquei a refletir sobre o bairro onde nasci o que me daria a oportunidade de falar sobre ele. No entanto, ao tentar recuperar aquele tempo, uma espécie de em busca do tempo vivido, me deparei com algo que até então eu não percebia: tive uma infância sem bairro.
         Naqueles e durante longo tempo mais, não se morava em bairros, e sim, lá nas Três Vendas, lá no Areal, lá no Porto, lá no Fragata e por aí a fora...  e, tanto era pra fora, que a chácara do Dr. Chiquinho, que ficava confronte a casa onde nasci, era onde é hoje o Hospital de Clínicas de Pelotas, Rua Marechal Deodoro, entre as Ruas Dr. Amarante e Padre Felício.
         Quase tudo que se precisava, era preciso ir ao Centro para adquirir, mas isso era tarefa para os adultos. Às crianças restava aguardar ansiosamente uma oportunidade, e, aí então ouvir: “Hoje tu vais ao Centro com a mãe”, ou “hoje o pai vai te levar no cinema do Centro”.
         Nas férias escolares, não durante todo o período, a expectativa era grande quanto à casa de quem passaríamos uns dias. As opções não eram muitas, de vez em quando uma ida ao Laranjal, de caminhão. Este pertencia a alguém, que dele fazia, em um que outro domingo, uma espécie de “Excursão para o Laranjal”. E lá iam as pessoas, sentadas em tábuas que eram postas na carroceria, com intervalos entre uma e outra. Punha-se ali, em um canto da carroceria algumas coisas, incluindo uma boia que era uma câmara de ar de pneu de automóvel ou de caminhão. Saía-se muito cedo, era uma viagem longa ou pelo menos muito demorada, e cheia de imprevistos.
         Voltando então para as férias, passava-as dividido entre a chácara de uma tia, a leitaria de um tio ou na casa da minha avó, locais esses que hoje eu diria ficarem os dois primeiros no Areal, e a casa da minha avó na Castilhos, que naquele tempo se dizia que ficava lá na Vila Castilhos, 1ª entrada. Essa referência de 1ª entrada era importante, pois dava certo status ao local. Morar antes dos trilhos ou depois dos trilhos do trem, lá na Vila Castilhos, fazia diferença. De qualquer forma, quando alguém fazia algum frege ou esculhambação pelas ruas, as pessoas logo diziam: “só podem ser lá da Castilhos”.
         A cidade, depois de um tempo começou a ser dividida em distritos, mas as referências continuaram a ser por locais, tipo: “nas imediações da ponte de pedra” ou senão “próximo à ponte de madeira”. Era assim que a imprensa se referia e que as pessoas se localizavam: próximo a cacimba do mato (que ficava na Rua 3 de Maio esquina Liberdade [atual João Pessoa], no Beco da Muquirana (Rua 7 de Abril -atual D. Pedro II- entre as Ruas Gonçalves Chaves e Santa Cruz]), Beco da Fumaça (era um corredor localizado na Avenida Vinte de Setembro nº464, pouco além do Cemitério), perto da olaria tal, no popular Cortiço do Francês Grande [Rua Marechal Deodoro entre Avenida Bento Gonçalves e General Argolo], próximo ao Sobrado Azul, no Beco do Pimpão (localizado na Rua Dr. Urbano Garcia), depois da igrejinha da Luz... e tantos e tantos outro locais que serviram por décadas como pontos de referência.  
         O tempo passou, mas as referências continuaram: ali pros lados do Forno do Lixo, na Curva da Morte, adiante do Entreposto, antes da Chácara dos Padres, logo adiante do Cinema Apolo, ou do Avenida, ou do Fragata, ou do Esmeralda, na descida do Guarany, “ah, isso fica passando o Cemitério” ou então, adiante do campo do Bancário.
         - Vamos jogar futebol.
         - Aonde vai ser?
         -Lá no campo do Oriental.
         O campo do Oriental ficava nas imediações da Cohabpel, que ainda não existia para servir de moradia ou referência.
         Um dos meus tios, irmão de meu pai, tinha banca na Feira da Avenida.  Duas por três, eu era companheiro dele pra ir aos matadouros da Avenida Argentina, que depois mudou de nome para Avenida Fernando Osório, em direção às terras Altas, apanhar derivados do porco e carne. Íamos de madrugada. Da charrete de meu tio, eu ia avistando os operários das fábricas de conservas, todos de branco. Aquela visão era um verdadeiro contraste com o resto da paisagem. Eram filas e filas de operários, quase que mulheres em sua maioria, todas de branco a exceção das botas, que eram pretas.
         Durante o trajeto o tio costumava indicar e comentar sobre os locais, inclusive um que outro que as pessoas acreditavam serem mal-assombrado.
         Certa feita, a curiosidade me levou a mais uma aventura. Consistia esta em atravessar a cidade, a pé, pois eu não tinha bicicleta e as bicicletas eram caras, e ir até a zona das fábricas: de óleo, linhaça, papel e, talvez, outras que não lembro quais eram, se é que eram. Lá, uma região inteiramente nova, com imagens bem diferentes das que eu até então conhecia e a câmera fotográfica que a minha mente registrara.
         Um daqueles registros guardados no arquivo da minha idade era quanto à surpresa e admiração ao ver, em um lado de uma daquelas ruas, algumas casas, de madeira, cujas paredes externas estavam revestidas com latas de óleo, abertas e esticadas, pregadas lado a lado, formando uma espécie de mural multicolorido.
         Fiquei deslumbrado com aquela visão. Verdadeiro contraste ao que representavam aquelas fábricas. Refletiam aquelas paredes, de lata, o mundo de miséria que as fábricas gestavam, e que eu, naquele olhar, ainda sob o fascínio daquelas multicoloridas paredes, não conseguia enxergar.
         Por certo que por detrás daquelas paredes viviam operários com suas famílias, mas ainda era uma existência digna, sem miséria. As latas enferrujaram e as casas desapareceram. Nada foi preservado. Tudo foi literalmente tombado, pois afinal eram apenas casas de gente simples, gente do povo, de pessoas que não foram homenageadas com nomes de ruas, bustos ou praças.
         Desse tempo pra cá, a cidade mudou e muito. Surgiram novas divisões e outras referências. Mas, pelo menos até bem pouco tempo, as pessoas continuavam dizendo que moravam no Centro, e assim colocavam nos seus endereços para correspondência. Nunca ouvi até hoje alguém dizer que morava na Várzea, não sei se por força do hábito de dizer que morava no Centro, ou vergonha de dizerem: “Eu moro na Várzea”.
         Como eu nasci e me criei na Rua Marechal Deodoro, também conhecida como Rua do Canalete, entre as ruas Dr. Amarante e Padre Felício, e não se morava em bairros porque esses ainda não haviam sido batizados, sigo sem saber se aquele local era Centro ou Zona Norte, bem como, continuo até hoje com a sensação de que tive uma infância sem bairro.



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Revisão do texto: Jonas Tenfen
Postagem: Bruna Detoni 

quarta-feira, 23 de agosto de 2017

Pelotas dos Excluídos (Vol.2) Parte 2
                                                                           A.F. Monquelat


1889

 A varíola hospeda-se em um cortiço da cidade
   O Sr. Dr. Vicente Cypriano da Maia, médico nomeado pelo partido, dirigiu à Câmara municipal de Pelotas o seguinte ofício: “Em resposta ao ofício de V. Sªs. datado de 19 de fevereiro de 1889, cumpre-me informar à ilustríssima municipalidade, que não grassa epidemicamente a varíola nesta cidade.
   Cumprindo o que me foi determinado no mesmo ofício, dirigi-me imediatamente à Praça da Constituição [atual Cipriano Barcelos], a fim de verificar quais e quantos doentes existem ali, atacados do vírus varioloso.
    Ainda desta vez, como se evidencia, a origem do flagelo nos foi importada.
   José Gonçalves, português, recentemente aqui chegado, foi hospedar-se em casa de José Fernandes, num cortiço situado à Praça da Constituição.
   Três dias após sua chegada, José Gonçalves foi atacado da varíola, a qual seguiu a marcha regular, restabelecendo-se o enfermo completamente, sob os cuidados médicos do ilustrado clínico Sr. Dr. Alves Requião.
   Alguns dias depois, dois filhos de seu hóspede foram atacados do mesmo mal, José de 4 anos de idade, que restabeleceu-se, e Conceição de 2 anos, que faleceu.
   O tratamento das duas crianças foi dirigido pelo mesmo facultativo.
   No mesmo cortiço, outro indivíduo contraiu o mal; é este o menino Arnaldo de 7 anos de idade, filho de Ramão Lopes da Silva, o qual está sendo medicado pelo ilustrado facultativo Dr. Francisco de P. Amarante, assegurando-me este colega que o pai do seu doentinho também tivera a varíola descrita.
    O menino Arnaldo acha-se em boas condições de curabilidade.
   No hospital da Beneficência Portuguesa, também existe um doente com a mesma afecção, segundo as informações ministradas pelos ilustrados Srs. Drs. barão dos Santos Abreu e Joaquim Rasgado.
   Na clínica domiciliária não existe mais doente algum afetado da referida como se dignaram de atestar os [...].
   As medidas sanitárias a propor à ilustre municipalidade, para impedir a propagação do mal, devem consistir principalmente no isolamento daquele cortiço, onde começou a mesma moléstia, e na desinfecção do mesmo pelos meios antissépticos, medidas estas que desde ontem já foram postas em prática, segundo as instruções do ilustre presidente desta municipalidade, mandando colocar uma guarda na entrada do cortiço onde só permanecerá o bexiguento e os pais que lhes servem de enfermeiros.
   Arbitraram-se em 40$ as despesas a fazerem-se com o tratamento do doentinho, para medicamentos, dieta e serviços de enfermeiro, visto tratar-se uma família extremamente pobre.
   Resta-me agora tratar da vacina.
   Foi mal informado o ilustre redator do Diário de Pelotas, pois apesar da rebeldia dos pais em apresentarem seus filhos ao vacinador, para serem vacinados e revacinados, não me tenho descuidado em inocular num maior número de indivíduos possível, o poderoso antídoto, estando sempre à disposição da população nos domingos numa das salas do edifício municipal e nos dias úteis em meu consultório.
    Aí estão os mapas apresentados à municipalidade que provam exuberantemente o que afirmo.
   Não há muitos dias que forneci ao distinto vereador Dr. Gervásio Alves Pereira excelente linfa vacínica, da que tenho em meu poder, assegurando-me o ilustre médico ter ela produzido ótimo resultado em crianças de sua clínica.
   Ultimamente tenho experimentado a vacina cultivada no Rio de Janeiro pelo Dr. Pedro Afonso Franco e, infelizmente, das três remessas vindas por intermédio da casa do Sr. Eduardo Sequeira nenhuma me deu resultado satisfatório.
   Novo pedido fizemos para a Europa e Rio de Janeiro a fim de podermos ter sempre linfa nova.
   É quanto me cabe informar à ilustríssima câmara municipal. [...]”.
   Daí o Sr. delegado de polícia acompanhado de escrivão e o alferes da seção policial terem se dirigido dia 24 de fevereiro ao Capão do Leão a revistarem os cortiços lá existentes “repletos de vagabundos”.
   Segundo o jornalista do jornal A Pátria, o serviço foi tão bem feito, que em menos de duas horas os cantadores de violão dispersaram-se em procura de emprego, e outros foram presos e recolhidos à cadeia civil.
  Ao que parece, os moradores daquele lugar, em agradecimento, felicitaram as autoridades pela limpeza.

E a limpeza continuou
   O Sr. delegado e subdelegados percorreram dia 26 de fevereiro alguns cortiços da cidade no “louvável” intuito de compelirem os vagabundos a tomar “ocupação honesta”.
   Naquele “benéfico propósito as dignas” autoridades se fizeram acompanhar pelos alferes e praças da seção policial.

Caso necessário, abaixo os cortiços
   A câmara municipal de Pelotas em 6ª e última sessão realizada em março de 1889, sob a presidência do Sr. Dr. Artur Maciel e presentes os Srs. vereadores Dr. Antônio Soares Dias Viana, Marins, Lúcio Lopes e Dr. Assumpção, iniciou seus trabalhos com a leitura e aprovação da ata da sessão anterior, na qual o Sr. presidente  dava conta das providências que tomara para a alimentação dos imigrantes, e sobre a higiene da cidade, pedindo a aprovação dos atos que praticou.
   O Sr. Dr. Assumpção, louvando as providências do Sr. presidente, aprovando-as propôs que a câmara pedisse o auxílio da polícia para proibir que os imigrantes andassem pelas ruas da cidade esmolando a caridade pública, quando tudo lhes era fornecido com a “maior generosidade”.
   O Sr. presidente fez considerações, demonstrando que a polícia nada podia fazer a esse respeito, e que o corretivo estava na população não estimular a vadiagem dando esmolas a quem delas não necessitava. O que foi aprovado, assim como louvadas, foram as providências tomadas pelo Sr. presidente.
   Presente o médico de partido e delegado da higiene, Sr. Dr. Maia, o Sr. presidente declarou que se tornava necessário providências higiênicas para que não se propagasse a febre amarela, introduzida na província pela imigração ultimamente vinda do Rio de Janeiro.
   O Sr. Dr. Maia declarou que o que mais necessitava a cidade de Pelotas para a sua salubridade eram os esgotos. Declarou também que os cortiços eram também um foco de infecção, que cumpria fazer desaparecer demolindo aqueles que não possuíssem as condições higiênicas.
   A câmara, depois das considerações de vários Srs. vereadores, autorizou ao Sr. delegado da higiene pública a fazer a sua custa as despesas necessárias para a demolição ou despejo dos cortiços que ele julgasse conveniente, e de outras medidas em relação à saúde pública.
   Foi também nomeada uma comissão composta pelos Srs. Lúcio Lopes, Marins e Assumpção para, tendo às suas ordens o fiscal geral, fazer visitas sanitárias e auxiliar o delegado da higiene pública.

                                                                                              Continua...

Fonte de pesquisa: Bibliotheca Pública Pelotense-CDOV
Revisão do texto & Postagem: Jonas Tenfen

segunda-feira, 14 de agosto de 2017

Pelotas dos Excluídos (Vol.2) Parte 1



A.F. Monquelat


       

Tratamos aqui, neste segundo volume do Pelotas dos excluídos (subsídios para uma história do cotidiano), de dar continuidade ao nosso projeto de levar ao conhecimento do leitor alguns fatos ocorridos na Princesa do Sul e que, até então, não haviam merecido a atenção da história tradicional.
  Em nosso trabalho anterior, enfocamos os fatos ocorridos entre os anos de 1875 a 1888, encerrando assim, ainda que de forma fragmentada, um período da história de uma cidade forjada na força do trabalho escravo.
 A partir de agora terá o leitor em suas mãos um novo período, terá também a oportunidade de ver e avaliar o que mudou se é que algo mudou na vida de nossos personagens, os excluídos da história e, principalmente do negro que a partir de 13 de maio tornara-se livre.  
Segundo o Onze de Junho de 15 de maio de 1888, em Pelotas, ao ter se conhecimento de que havia passado em terceira discussão, no Senado, o projeto abolindo a escravidão no Brasil, o Sr. Dr. Piratinino de Almeida dirigiu-se à charqueada do Sr. José Bento de Campos Filho e, reunindo os contratados daquele estabelecimento, fez-lhes a comunicação em um “eloquente e tocante discurso” que daquela data em diante eram livres, estimulando-os “à prática do bem, a fim de que se tornassem cidadãos úteis a si e a sociedade”.
Logo após, o Sr. José Bento de Campos declarou-lhes que os seus serviços, em seu estabelecimento, seriam remunerados e que ali não havia mais senhor nem escravos. 
Revela-nos ainda a matéria que o contentamento que se apossou dos contratados, ao receberem a notícia, foi indizível e muitos deles o manifestaram pelas lágrimas silenciosas que derramaram.
Na charqueada do Sr. Ataliba Borges, o Senhor Machado procedeu da mesma maneira para com os contratados daquele estabelecimento.
Entendia o jornalista do Onze de Junho que, além de justo, os Srs. industrialistas da cidade deveriam seguir o exemplo “daqueles cavalheiros”, a fim de evitar que os especuladores tentassem transviar do “caminho do dever” aqueles que acabavam de receber o “batismo da liberdade”.
Ora, o Dr. Piratinino de Almeida em seu discurso pediu aos contratados que a partir de então praticassem o bem, para que assim se tornassem cidadãos úteis “a si e a sociedade”; já o jornalista do Onze pedia aos industrialistas da cidade que seguissem o exemplo, com o propósito de evitar que os especuladores tentassem desencaminhar “do caminho do dever” aos que acabavam de se tornarem livres. Em breves palavras, pode ser interpretado da seguinte forma: para o Dr. Piratinino de Almeida, de descendência escravocrata, a partir da liberdade é que o negro poderia e deveria ser útil a sociedade, desde que praticasse o bem. Para o jornalista, a preocupação era que os industrialistas cuidassem para que os que acabavam de receber “o batismo da liberdade” não fossem desencaminhados do “caminho do dever”, ou seja, que continuassem trabalhando, e percorressem o caminho “do bem”.
  E quanto aos ex-senhores de escravos, e grande parte da sociedade, que comportamento deveria ter para com aqueles?
     Que o leitor tire suas conclusões.

1888


Dia quatro de junho de 1888, por volta das 16.30h, um soldado da seção policial tentando prender “um preto”, cujo nome o jornalista do Onze de Junho ignorava, recebeu alguns murros que o fizeram rebolcar no meio da rua com a sua gloriosa espada.
O policial sob o terrível impacto “dos formidáveis punhos do preto, tendo uma lágrima em cada face”, foi procurar o seu comandante, o sargento Cardim, e relatou-lhe o ocorrido.
Ele, o valente, cheio de “meiguices, afeminado”, reuniu a tropa e ordenou que um dos seus beleguins [beleguim: agente policial cruel, violento] fosse com o soldado vitimado prender o insolente que se atrevera a erguer a mão para maltratá-lo... Afinal espancar um de seus comandados era maltratar a si, sargento insigne e único.
O soldado-vítima seguiu com o seu companheiro e, ao chegar ao local do pugilato, acharam mais prudente retrogradar porque viram entre as pessoas que ali se encontravam reunidas alguns cacetes empunhados por indivíduos possantes e acostumados ao manejo de tão terrível arma.
No quartel, o sargento formou novamente a tropa e, à frente dela, impávido, tendo nos lábios um riso de desdém e indiferença, seguiu para o lugar da farsa.
O povo começava a reunir-se instigado pela curiosidade, e o sargento Cardim, de espada em punho, investiu seguido de seus valentes, prendendo um pardo que estava em companhia de dois soldados de linha.
Algumas pessoas protestaram contra aquela prisão ilegal, vendo-se o sargento obrigado a por em liberdade o preso.
- “Enganei-me!”, bradou o comandante corado e ofegante.
- Mal feito fora, pois se ele é zanaga [estrábico]! – gritou um garoto que ali estava e que soltando gostosas gargalhadas fitava o rosto do pigmeu-sargento.
Para terminar a farsa, o herói da polícia dirigiu-se para o quartel, de espada em punho, apressado, como se estivesse disposto a arrasar tudo.
O povo seguiu de longe, temendo a ira do D. Quixote policial.
Ali chegando, amainou-se a cólera do valente sargento ao contato refrigerante de dois ou três goles de água fria.
E assim terminou a farsa...
E conclui o jornalista: “Miséria das misérias!”.  

Ilegalidade policial


O Diário de Pelotas de oito de outubro de 1888 informava aos seus leitores que, por meio insuspeito e merecedor de crédito, chegara ao conhecimento daquele jornal uma irregularidade cometida pela polícia da cidade, que parecia querer secundar [repetir] o procedimento do célebre delegado-palmatória, que daria ao negro fóbico Coelho Bastos [que não conseguimos saber de quem se trata] um excelente rapa-coco de ex-escravos.
Era o caso que estando, dia sete dançando alguns libertos em casa de João André Cardoso da Silva, às 2.30h da madrugada, bateram à porta alguns soldados de polícia pública e vários membros da polícia particular, comandados pelo Sr. Vicente Ribeiro, subdelegado de polícia que, apontando uma pistola que levava, declarou estarem presas todas as pessoas presentes.
Estas se entregaram sem resistir, porque com tais Argos [personagem da mitologia grega] insistir equivaleria a fazer jus a algumas alfinetadas pelo lombo, aplicadas pela ferrugenta durindana [nome da espada de Rolando, herói da Chanson de Roland e outras histórias] daqueles bravos.
Saindo 25 pessoas, calculadamente, para a prisão, acompanhados dos valentes, apenas chegaram ao quartel umas dez, porque as outras preferiram pagar os 2$500 réis que a autoridade lhes exigiu pela sua liberdade.
O pretexto apresentado pelo Sr. Vicente Ribeiro para efetuar semelhante prisão foi que não havia licença tirada na polícia para aquele baile.
Acrescentava o jornalista ser simplesmente... muita ingenuidade; pois acaso ignorava o Sr. Vicente Ribeiro que depois da lei de 13 de Maio não havia mais escravos?
E que por isso tanto podia dar um baile um comendador como um liberto.
Acaso pretenderia S. Senhoria ignorar que a polícia não podia exigir que se lhe pedisse licença para dar um baile particular?
Seria o máximo da ignorância, se não soubesse que era o interesse que falava mais alto e que parecia não conformar-se com “a gloriosa” lei de 13 de Maio, que viera secar na polícia uma de suas mais fecundas fontes de receita.
Em todo o caso, concluía o jornalista, cumpria ele o dever ao registrar aquele ilegal procedimento do Sr. Vicente Ribeiro sobre quem deveriam recair as “bênçãos dos benéficos proventos policiais”; encerrando com as seguintes palavras: “Liberdade! Liberdade!”. 

Furto e ferimento


Tendo o proprietário de uma taverna à Rua Santo Antônio [atual Miguel Barcelos] surpreendendo “um preto” a furtar diversos objetos em sua casa de negócio tentou prender o “preto”, sendo por este agredido.
Para ver-se livre do agressor, o taverneiro acabou ferindo-o levemente. 

Bravuras da polícia


Dia 12 de dezembro de 1888, às 20.00h, a população da cidade foi alarmada pelos repetidos apitos de três praças de polícia que corriam espavoridos pela Rua São Miguel [15 de Novembro], com os chanfalhos [espadas dos guardas municipais e dos agentes de polícia] desembainhados.
Ninguém sabia o que tinha ocasionado aquele barulho, pois os policiais só diziam: “Fugiu! Fugiu!...”.
De repente, pararam em frente a umas obras e declararam às pessoas que ali se aglomeravam em grande número, que tinha sido um indivíduo que entrou no jardim da Praça Pedro II [Pedro Osório], sem licença... e que, ao receber a ordem de prisão, evadira-se.
O fato, porém, dera-se da seguinte maneira:
Um cidadão, decentemente vestido, mas negro, ao sentar-se a uma das mesas do jardim da Praça pediu que lhe servissem uma cerveja, ao que um dos caixeiros [garçom] do Sr. Antônio Scotto, proprietário do estabelecimento, recusou-se a fazê-lo.
Aquele cidadão, negro, julgando-se ofendido com a recusa, trocou algumas palavras com o caixeiro, tendo este exigido o auxílio da polícia. Esta prontamente aparecendo deu voz de prisão ao aludido cidadão negro, porém já de espada em punho e descarregando-lhe alguns golpes, de um dos quais resultou um ferimento de alguma gravidade.
Foi então que o ofendido negro tratou de evadir-se, e daí a grande algazarra provocada pelo arreganho da polícia.
Diante de tal acontecimento, o jornalista do Diário de Pelotas, indignado, diz que se fosse algum gatuno ou algum criminoso de morte, talvez a polícia não se prestasse com tanta solicitude. Mas, tratava-se de um cidadão indefeso, e, por isso, a polícia demonstrara cabalmente o seu comportamento belicoso.
E acrescenta: “É sempre assim, e vamos muito bem”.
Considerando a escassez de jornais deste ano no acervo da Biblioteca Pública Pelotense, não nos foi possível trazer maior quantidade de fatos ocorridos nos primeiros meses da abolição.

Continua...


Fonte de Pesquisa: CDOV - Bibliotheca Pública Pelotense
Revisão do Texto e Publicação: Jonas Tenfen
Tratamento de Imagem: Marília Bas