quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

Religiões de matriz africana em Pelotas (parte 1)

Religiões de matriz africana em Pelotas(parte 1)


A.F.Monquelat
Jonas Tenfen

         As manifestações religiosas de matriz africana estiveram presentes no cotidiano de Pelotas desde muito cedo sem que tenhamos notícia ou registro de sua primeira ocorrência, fato que nos obriga, dada a dificuldade de fazermos uma busca mais apurada, a considerarmos a notícia reportada no Diário do Rio Grande de 27 de agosto de 1857, na coluna Semanário Pelotense, página 3, como o primeiro registro de caráter afro religioso ocorrido nesta cidade.
         E importante salientar antes de darmos continuidade que, por se tratar de tema bastante delicado e por demais complexo, não nos julgamos com conhecimento suficiente para abordá-lo de maneira mais profunda e técnica como o tema merece ser tratado. 
   Entretanto, dada à maneira parcial, manipuladora e preconceituosa como sempre estiveram tratadas tais práticas religiosas pela imprensa pelotense, não resistimos ao apelo de, na medida do possível, apontar alguns senões, que o leitor facilmente reconhecerá no decorrer e exposição dos fatos. 
         Outro aspecto que entendemos oportuno salientar é quanto ao tratamento dado pelos jornalistas, brancos e católicos, que no nosso entender é extremamente equivocado O uso por eles da expressão feitiçaria para denunciar as práticas ritualísticas africanas. Considerando que a expressão feitiçaria não contemplava tais costumes no sentido pleno ou único, acreditamos que tais atitudes e colocações sejam fruto do temor do desconhecido, portanto, a necessidade de repreender, vigiar e punir.
    Depois de expostas tais ponderações, entendemos dar continuidade ao nosso propósito, que é o de registrar os fatos denunciados pela imprensa pelotense durante certo período dos séculos XIX e XX, iniciando pela transcrição do jornalista do Diário do Rio Grande correspondente em Pelotas:
Constava ao Semanário Pelotense que em um casebre próximo ao quartel da polícia [na época localizado junto a atual Praça Piratinino de Almeida] morava uma preta, forra, que pelos seus feitiços atraía todos os domingos uma quantidade de negros e negras, que ali iam consultar a nova Pitonisa [mulher adivinha, vidente].
         Era a tal pitonisa, segundo o autor da coluna, visitada também por alguns homens brancos atraídos, talvez, pelos oráculos ou efeitos mágicos da feiticeira africana. Seria fácil, dizia o colunista, encontrar-se no mesmo casebre, com alguma, com alguma paciência, muitas raízes, ossos, sapos e bugigangas, indispensável arsenal de semelhantes embusteiros.
        Garantia ainda o Semanário que ali se encontraria a pedra filosofal, aquela milagrosa formação que transformaria as palavras em ouro; e também algumas bebidas perniciosas em prata. Os fregueses daquele covil deviam por experiência saber quanto custavam as consultas, e os resultados obtidos. Embora ao recinto afluíssem, por gosto e vontade, era conveniente uma rigorosa averiguação e um exemplar castigo se alguma coisa suspeita fosse no local encontrada.
         E, se na ocasião da busca a polícia encontrasse algum daqueles homens brancos na cor e de sentimentos tão baixos, que não tinham receio de estar à disposição de uma impostora africana, muito gostaria o colunista que ocorresse tal prisão, dispondo-se ele a visitar na cadeia com a finalidade de conhecer tão insignes crédulos ou velhacos.
         Desde que o Sr. delegado de polícia tivera, tempos atrás,  notícia de que havia na cidade uma casa daquelas e dera uma batida, na qual surpreendeu a todos , encontrando naquela casa uma porção de miudezas, que por ele foram inutilizadas, sendo os proprietários de tais coisas presos e devidamente castigados, tal fato não voltara a ocorrer na cidade. No entanto, finalizava o colunista, tendo aquela tentativa de enganar o povo ocorrido há algum tempo, já tendo caído no esquecimento, daí, e sendo o tempo presente pouco animador para especulações que requeressem capitais, era interessante que tentassem um negócio que exigisse unicamente astúcia e audácia, além de credulidade dos fregueses, que eram sempre abundantes para tal negócio.
         Como pode se ver, anteriormente ao caso que transcrevemos houve em Pelotas pelo menos outro acontecimento, que em pesquisas posteriores tentaremos encontrar. Por ora, por falta de material nos obrigamos a descrever o primeiro que encontramos no acervo da hemeroteca de nossa Bibliotheca Pública Pelotense, que é o que denominamos aqui de:

Trinta Diabos na Serra dos Tapes

         Com a denominação de Trinta Diabos informava o jornal Correio Mercantil, de 3 de abril do ano de 1877, haver na Serra dos Tapes um preto velho e quase cego, que devido ao fanatismo da maior parte dos habitantes daquela região, conseguira ser considerado como doutor, agindo como se tal fosse e prometendo aos que o procuravam curas milagrosas.
         Constava ainda ao jornalista daquele órgão da imprensa que, devido à aplicação de medicamentos prejudiciais, o doutor africano havia alterado a saúde de alguém.
Entendia o jornal ser muito conveniente que as autoridades proibissem tal abuso. 
         Enquanto aguardamos as providências solicitadas pelo jornal, vejamos como andavam as feitiçarias na zona urbana da cidade, poucos meses depois da ocorrência do Trinta Diabos:  



Feitiçarias 

         Com a denominação acima, o referido jornal, em julho do mesmo ano, dizia que os Jucas Rosa [famoso feiticeiro do Rio de Janeiro] e os pais Paulo [que não conseguimos apurar quem era] reproduziam-se como mosquitos em tempo de verão.
         Era sexta-feira [13-07], aí pela meia noite, hora sinistra, em que o cão agoureiro late à lua, pia o mocho e a coruja, aparece o lobisomem e vaga a bruxa...
         Tudo era silêncio na terra.
         Mas, a polícia velava. 
         E, por aquela oficial curiosidade que lhe era peculiar, aproxima-se à porta de humilde tugúrio [cabana] lá pela Rua 3 de Fevereiro [atual Major Cícero], aplica o ouvido, espreita pelas frestas, e escuta...
         Escuta o crepitar de três velas e se vê alguns fervorosos crentes em mongólica devoção.
         Adoravam o sábio Manipanso [ídolo africano.Houaiss em seu dicionário, baseado em Nei Lopes, nos diz que tal palavra é formada por mani ‘senhor’ + Mpanzu designação de clã que reinou no antigo Congo; fato histórico com datação de 1881]. Ora, como nossa notícia é de 1877, é provável que Nei Lopes tenha-se equivocado, pois que aqui na afro-pelotas, o Manipanso, já era adorado], o deus poderoso de todos os destinos.
         A polícia então,  lembrou-se que a Constituição do Império permitia o culto de todas as religiões, mas  reparando ao mesmo tempo, que o templo apresentava um aspecto assustador e os fiéis não inspiravam plena confiança.
         Resolveu entrar.
         E a porta cedeu por vigoroso impulso.
         Ao estrondo, sucedeu-se a confusão e os devotos fugiram em todas as direções: uns pelos fundos da casa, outros pelo telhado e alguns pela janela, conduzindo consigo os mais preciosos objetos da sua adoração, para que não fossem profanados.
         Eram todos escravos, ou livres de medíocre condição.
         Ficou apenas um casal de confrades.
         A polícia os confiscou e, com eles, as seguintes relíquias: um crânio de criança, cabelos humanos da raça branca, umas folhas de vegetal desconhecido e outras bugigangas semelhantes.
         Tudo isto foi no dia seguinte apresentado ao Senhor delegado de polícia.
         O casal de pretos passou a habitar o palácio do cidadão Peroba [referência à cadeia civil e ao responsável por esta].
         O mais foi sem dúvida alguma parar no São Gonçalo.
         Eis aí no que davam as feitiçarias, as casas de fortuna e a veneração do Manipanso, no entender do autor da notícia.

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Continua...
Fontes: CDOV / Bibliotheca Pública Pelotense e o livro "Pelotas dos Excluídos".

quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

Cigana Terena, o mito pelotense


Cigana Terena, o mito pelotense

                                                                                    A.F. Monquelat
 Jonas Tenfen                




A cidade de Pelotas, quase no apagar das luzes do ano de 1882, mais precisamente aos 29 dias do mês de dezembro, não imaginou que serviria de berço para o nascimento de seu primeiro mito.
        Tampouco aqueles ou aquele que propagaram a lenda da maldição da cigana sobre esta mesma cidade tiveram conhecimento ou noção que, com essa falsa praga ou maldição jogada aos quatro ventos, germinaria e se transformaria no primeiro e popular mito da cidade.
         Um mito que, desde algum tempo, adquiriu o status de fazedor de milagres, um mito que para nascer, morreu...
         Sem que tenhamos ideia ou registro histórico do porque aquele grupo, tribo ou nação de pessoas na época tratadas como beduínos, raça arábica, bohêmios ou qualquer outra denominação que fosse, quando a eles o povo ou a imprensa se referiam, acampou na Rua Professor Araújo, proximidades da chácara do Sr. Antônio Joaquim Caetano da Silva, pouco adiante de Avenida Bento Gonçalves ali armou suas tendas, em número de sete.
         Tão logo a imprensa tomou conhecimento do fato, surge, naquele mesmo dia, o primeiro registro de suas presenças através do jornal A Discussão, cuja matéria tem por título a seguinte expressão: “Beduínos”, e, logo a seguir, a informação de que acabara de chegar a Pelotas, achando-se acampados na extremidade da hoje Avenida Bento Gonçalves, cerca de 50 pessoas de raça arábica, os quais por toda a província eram conhecidos por beduínos.
         A segunda notícia sobre a chegada dos ciganos, entre os quais estaria a cigana Terena, vem como forma de alerta, e permeada de visível preconceito, através das páginas do jornal A Nação.
         A notícia iniciava dizendo: “Beduínos”, aí os tinha a cidade, chegados de fresco. Prosseguindo, dizia o jornalista terem eles assentados os seus arraiais à Rua Professor Araújo, dispondo as sete tendas que, segundo ele, significavam os pecados mortais. Ali estavam prontos a decifrarem, no brilho das estrelas, a sina de nós outros, pobres mortais.
         Ainda, e seguindo o mesmo tom desdenhoso, dizia como seria agradável saber um homem qual o dia que haveria de fechar a mala para a sua última viagem, ou qual o número do bilhete que seria premiado na grande loteria.
         Ele, porém, que era contrário àquele comportamento com o qual tão bem se dava a natureza daquela gente, chamava a atenção da polícia para os novos visitantes.
         Dizendo já os ter visto naquele mesmo dia de saco ao ombro pedindo esmolas, o que ele bastante estranhava, pois cada beduíno daqueles era um robusto mocetão, que muito bem poderia ganhar sua vida, de maneira honrada e tranquila, empregando-se ao serviço da Estrada de ferro, ou outro trabalho qualquer que resultasse em dinheiro.
Julgava o jornalista, pois, que o Sr. delegado de polícia em exercício devia se apresentar àqueles “amáveis” hóspedes, obrigando-os ou a trabalhar ou a procurar novos ares.
E, encerrando, fazia a seguinte observação: “Depois não se queixem”.
Não muitos dias após aquela advertência, voltava o jornalista a chamar a atenção dos seus leitores dizendo que, diversos eram os comentários feitos quanto à presença dos beduínos acampados lá para os lados da Rua Professor Araújo.
Dizia ele que, para uns eles eram especuladores que andavam a explorar a credulidade de pessoas fracas, tirando-lhes o dinheiro com artimanhas e falcatruas; outros achavam que eles eram trabalhadores honestos que procuravam ganhar licitamente sua vida, empregando-se nos ofícios de caldeireiros e ferreiros; outros havia que achavam não passarem eles de uns espertalhões, que envolviam a quem lhes chegasse ao alcance das unhas.
Dizia mais o jornalista, que culpados, porém, eram aqueles que, acreditando nas teorias de Mesmer, René e Catarina de Médicis, fazendo desta maneira reviver o reinado da bruxaria, ali em suas tendas, iam consultar o oráculo, arrependendo-se depois com os resultados obtidos. Finalizando, advertia: quem não quisesse ser explorado, que não os consultasse.
Deixassem-lhes viver em paz que não haveria motivo para queixa.
      Não muito depois, outro dos jornais da cidade voltava a chamar a atenção para o grupo de ciganos acampados lá para os lados da Professor Araújo.
      Agora, indagando da câmara municipal se esta dera licença para que aqueles beduínos cercassem a área onde haviam assentado as suas tendas? Queria também saber o redator do jornal se eles pagavam impostos pelas atividades que exerciam e mais ainda, se não era próprio das posturas municipais que se trouxessem os cães amordaçados durante o dia, para não molestarem os transeuntes?
      No entanto, aqueles cães pertencentes aquela gente da raça arábica andavam ad libitum, o que era pouco conveniente, concluía o jornalista.
      E assim, de hostilidade em hostilidade por parte da imprensa, a vida na progressista cidade de Pelotas seguia em frente.

                                       
       
        E, em frente, ao que parece, seguiam também os ciganos a darem motivo para tais hostilidades, pois, nos primeiros dias do mês de fevereiro do ano de 1883, o jornal Onze de Junho, desta vez tratando os de bohêmios noticiava que, tendo o subdelegado de polícia do 2º distrito, Sr. tenente Elizeu Bazilio Ribas sabido, através de denúncia, que alguns daqueles bohêmios  acampados nas proximidades da Luz, haviam peitado um empregado da fábrica de chapéus dos Srs. Cordeiro&Wiener, para nesta penetrarem a noite, tratou logo de investigar aquela denúncia.
      Constatando ser procedente e que realmente havia a intenção de atacarem à fábrica de chapéus, de modo eficiente e rápido tratou ele logo de evitar esse atentado, intimando àquela inofensiva gente a deixar a cidade no prazo de 48 horas, atitude aquela que para o jornal era uma providência acertada, pois, assim procedendo o Sr. subdelegado Ribas estaria velando pela segurança e tranquilidade social.
      Coincidência ou não, desde o ultimato dado pelo Subdelegado de polícia Ribas aos ciganos acampados no encontro das ruas Avenida Bento Gonçalves e Professor Araújo, deles só ouviremos falar novamente, quando dos funerais de sua rainha, a cigana Terena Caldara, ocorrido em Pelotas, aos 3 dias do mês de março de 1883, enterro este que segundo alguns jornais da época teria sido o maior que Pelotas até então assistira, e que você leitor caso queira saber maiores detalhes sobre a pitonisa Terena, basta acessar os seguintes links:

                   http://pelotasdeontem.blogspot.com/2015/10/a-maldicao-da-princesa-cigana.html            
                                                             
                   http://pelotasdeontem.blogspot.com/2016/04/terena-princesa-cigana-parte12.html        



         Não muitos dias após a morte de sua rainha, os Caldaras e sua “tribo” deixaram a cidade, ao que parece em direção ao Arroio Grande.




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Fonte de pesquisa: CDOV-Bibliotheca Pública Pelotense e pelotasdeontem.blogspot.com
Revisão do texto: Jonas Tenfen
Imagem: Charges extraídas do jornal Zé Povinho, ano de 1882.
Tratamento de imagens: Natália Toralles dos Santos Braga

quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

RS e Pelotas na obra de Machado de Assis Parte 05 e FINAL


RS e Pelotas na obra de Machado de Assis  Parte 05 e FINAL



A. F. Monquelat [revisão]
Jonas Tenfen



         O conto “Um quarto de século” conta com três citações à cidade de Pelotas. Ambas localizadas no capítulo segundo (sim, Machado de Assis escrevia por vezes contos que recebiam subdivisões de romances ou novelas, o que dá alguma dor de cabeça aos críticos literários mais afoitos por taxonomia e classificações de gênero literário), e que tratam a cidade como forma de caracterizar as personagens. Vejamos as citações:

“Quando se afastou da Europa, tornou para o Rio de Janeiro, onde assistiu à morte do pai, que lhe deixou todos os seus bens. Tomás era filho único. Já então Raquel, tendo casado com um negociante de Pelotas, havia partido para o Sul. [...]”
“Raquel achou a nota excessiva e teve medo. A separação fez-se com dor para ele, naturalmente sem saudade para ela. Nenhum pretendente os separou. Foi só depois que apareceu o negociante de Pelotas, sem paixão, apresentado pelo pai, como moço de muito futuro, e sério. Sales tinha trinta anos. Raquel aceitou-o sem combate nem entusiasmo; casou e partiu. Já Tomás estava na Europa. […]”
“Sales, negociante de Pelotas e doutor em medicina, liquidou a casa no fim de poucos anos e veio para o Rio de Janeiro. A ideia dele era viver uma vida elegante, participar de todos os prazeres da alta roda da capital. Contava com o papel eminente que caberia à mulher, agora mais bela que nunca. Assim foi. Em poucas semanas, em três meses, o nome de Raquel andava em todas as bocas, e a pessoa em todos os bailes e teatros. [...]”

         O principal da ação do conto se passa na capital da corte. Do mesmo modo que no romance “Quincas Borba”, o casamento se mostrava como oportunidade de algum personagem nascido na cidade de Pelotas se mudar para o Rio de Janeiro. Embora a chance de viver em dois mundos, há nesses personagens uma genuína vontade de participar de um novo meio social, pagando o preço – monetariamente falando – por se relacionar em um novo meio social. Como forma de dar andamento à narrativa, quase sempre estes personagens encontram a falência: ou a fortuna era mais parca do que imaginavam, ou fizeram uma série de investimentos bastante ruins.
         Reiteramos que esta é uma estratégia narrativa de Machado de Assis e que o autor não se reduz à cidade de Pelotas para este expediente. Só para retomar o romance que trabalhamos no texto anterior, Rubião e Quincas Borba eram da cidade de Barbacena, em Minas Gerais.
         O que não se dá com o conto “Diana”, publicado pela primeira vez no “Jornal das Famílias”, no Rio de Janeiro, em 1866. Neste conto a cidade de Pelotas é cenário, também a cidade de Porto Alegre.
         Dois jovens amigos se encontram casualmente na Rua do Ouvidor. Ambos possuem criados que carregam suas malas, mas um está carregado a mais: Luís estava de partida para o Rio Grande (não a cidade, mas a província) sem dar detalhes dos motivos, pois a pressa era grande. Tempos depois, uma carta colocou o amigo a par das novidades: ia tão apressadamente à cidade de Pelotas, pois seu padrinho deixara uma herança que ele precisava ir buscar.
         O amigo, pelo bom nome da amizade e desinteressado, mal podia se conter de curiosidade. Escreveu carta em resposta pedindo mais informações. Escreveu cartas, duas, para ser mais correto: uma remetida para Pelotas e outra para Porto Alegre, origem da primeira carta enviada por Luís.
         Que estava em Porto Alegre. Resolveu adiar a caçada à herança por ter conhecido viúva (de um homem do norte) na cidade por meio de amigos em comum. Tratava muito bem à viúva e à mãe em formalidades sociais, pouco depois, começou uma série de visitas mais íntimas, repletas de declarações de amor, consolos e promessas. Sempre à luz de lua, daí o nome ao conto e à dama: Diana.
         Certo do casamento, Luís passou a frequentar mais vezes a casa das duas, até a ocasião que chegou fora do combinado e Diana não quis recebê-lo. Estava de braços com outro, fazendo os mesmos passeios e, provavelmente, ouvindo declarações semelhantes. O outro se mostrava mais bem afortunado que um advogado de província.
         Indignado, inconsolável e inconformado, Luís parte na mesma noite em busca da herança do padrinho. “Cheguei a Pelotas e fui examinar a casa que há cinco anos não recebia um bocado de ar. Foram precisos alguns dias para que pudesse deixar entrar lá alguém. // Quando ficou em estado de receber-me, lá fui com o meu criado, e preparei tudo para proceder ao exame necessário.”
         Nada de tesouro no chão, nas paredes ou no teto da casa. A casa até então abandonada começava a ganhar ares de demolida. Vazio de esperanças, mas cheio de ideias, Luís olhou para o retrato do padrinho que trouxera na viagem, e “Tomei o quadro das mãos do criado, e, com o auxílio de uma faca, destas de que usam os guascas, abri o quadro.” De dentro da moldura caiu um papel com os sóbrios dizeres: “Conselho ao meu afilhado – Nunca te fies em aparências.” Eis o tesouro deixado por herança.



         
         Devido a questão do espaço, esta série não foi um trabalho exaustivo sobre a presença do estado do Rio Grande do Sul e a cidade de Pelotas na obra de Machado de Assis. No caso do estado, nos dedicamos às crônicas; no caso da cidade, às referências diretas: como mostramos, a muitos textos que parecem fazer alusão a Pelotas, material para outras séries. Quem se interessar pelo tema, elencamos algumas obras à pesquisa, além dos dois contos citados acima: “Histórias sem data”, “Papéis avulsos”, “Páginas recolhidas”, “Relíquias de Casa Velha”, “A pianista”, “Cantiga Velha”, “Entre duas datas”, “O capitão Mendonça”, “O imortal” (com uma interessante passagem pela guerra do Paraguai), “Possível e impossível”, “Rui de Leão”, “Sem olhos”, “Troca de datas”, “Uma partida”, “Virginius”.
        Podemos, contudo, adiantar uma conclusão no que diz respeito às referências ao estado de RS e à cidade de Pelotas na obra de Machado de Assis. Quando ele trata do Rio Grande (do Sul), ou é um lugar belicoso ou não é Brasil ainda; quando ele trata de Pelotas, é um local de muito dinheiro circulando. Mas nos dois casos, são lugares muito longe da Capital.

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Fonte: há muitas obras completas de Machado de Assis disponíveis online, para este texto utilizamos o site Domínio Público (domíniopublico.gov.br). A foto de Machado de Assis (pela revista Caras y Caretas) e a imagem de Diana são Wikicommons.

quarta-feira, 27 de novembro de 2019

RS e Pelotas na obra de Machado de Assis Parte 04


RS e Pelotas na obra de Machado de AssisParte 04


A. F. Monquelat [revisão]
Jonas Tenfen




            
            Começamos, com este texto, a segunda parte da presente série. Depois de esquadrinharmos as crônicas de Machado de Assis atrás de referências ao estado do Rio Grande do Sul, passamos a analisar a obra do bruxo do Cosme Velho atrás de referências à cidade de Pelotas. Há uma referência bastante popular e conhecido, e há várias pouco estudadas.
            Primeiramente, uma alusão que pode ser Pelotas. Em 8 de dezembro de 1861, teve início as crônicas do Dr. Semana – a saber, um pseudônimo de Machado de Assis, publicadas pela Semana Ilustrada. Aqui um exemplo da ironia, pois o médico “tem a honra de participar ao respeitável público, que se acha nesta corte, onde fixou sua residência, pronto sempre a ministrar aos necessitados os socorros de sua infalível ciência”: a escrita.
            Em carta ao Imperador da China, nas Calendas de abril de 1864, o Dr. Semana fala de seus dotes linguísticos:
“Celestial Senhor. — Pretendia escrever a Vossa Obesidade na linguagem de Confúcio, visto como sou poliglota superior a Pico de laMirandola e ao cardeal Mezzofante.
 
V. O. deve de saber que, em questões de línguas, nada tenho de invejar às charqueadas do Rio Grande do Sul.
 
Gorou-me, porém, o desejo a falta de tipos chineses neste império de terrícolas, aonde há multiplicidade de outros tipos; e é por isso que escrevo a V. O. no idioma português, ainda hoje falado pelos gafanos da Goa luso-chinesa. “
           
            Destacamos que é uma alusão, não referência, pois é erro histórico supor que só se produziu charque, e em quantidade, na cidade de Pelotas durante o período. Contudo, cruzando este dado com as demais obras do escritor, vemos a tendência dele se referir a Pelotas como cidade de muito dinheiro e cosmopolita, mesmo não sendo capital da província.
            As crônicas “Bons dias!”, que começavam com esta saudação e encerravam com “Boas noites”, foram publicadas pela Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, entre 1888 e 1889. Sobre uma declaração em um discurso, Machado de Assis cita Pelotas em uma conversa fictícia, em crônica de 19 de julho de 1888:
“Não indo mais longe, acabo de ler no discurso do Sr. Senador Leão Veloso uma frase, que, se eu estivesse em Tunes, não lhe perderia o sentido. S. Exa. declarou que a vitaliciedade do cargo não o segregou daqueles que o elegeram. Ora, os que o elegeram vão morrendo e hão de ir morrer todos, como já devem ter morrido os que elegeram o Sr. Visconde do Serro Frio. Como é que não há segregação? Há e é uma das vantagens da instituição. Se em 1871 os Srs. Silveira Martins e Barão de Mauá fossem vitalícios, não haveria o recurso aos eleitores, que pôs o Sr. Mauá fora da Câmara. Quando o primeiro desafiasse o segundo a irem pleitear ante os eleitores liberais o procedimento de ambos, responderia o Sr. Mauá:
— Mas, meu caro colega, os meus eleitores estão mortos. Há dois dias vivia o Bandeira, de Pelotas; pois morreu, aqui está o telegrama, que recebi agora mesmo da família. Sabe que somos velhos conhecidos...”

            A referência mais famosa e corriqueira à cidade de Pelotas está no romance “Quincas Borba”, publicado em 1892 pela Garnier. Embora já relatado por Mário Osório Magalhães, em “Pelotas: toda a prosa”, segundo volume, citaremos aqui os capítulos CXVIII e CXX.


Capítulo CXVIII:

— Vamos para lá, que lhe arranjarei casamento, disse ela. Conheço uma moça de Pelotas, que é um bijou, e só casa com moço da Corte.

— Comigo, naturalmente?

— Da Corte e de olhos grandes. Olhe que não estou brincando. É uma guasca de primeira ordem. Tenho aqui o retrato dela.

D. Fernanda abriu o álbum e mostrou o retrato da pessoa.

— Não é feia, concordou ele.

— Só?

— Sim, é bonita.

— Onde é que você bota os seus chinelos velhos, primo?

Carlos Maria sorriu sem responder; não gostou da expressão. Quis passar a outro assunto. Mas D. Fernanda tornou ao casamento da amiga de Pelotas. Mirava o retrato, coloria-o de palavras, dizendo como eram os olhos, os cabelos, a tez; e depois fez uma pequena biografia de Sonora. Tinha este bonito nome. O padre que a batizou hesitou em dar-lho, apesar do respeito e influência do pai da menina, rico estancieiro; mas, afinal cedeu, considerando que as virtudes da pessoa podiam levar o nome ao rol dos santos.

— Crê que ela vá ao rol dos santos? perguntou Carlos Maria.

— Se casar com você, creio.

— Não me explica nada; casando com o diabo sucederá a mesma coisa, e com mais certeza, por causa do martírio. Santa Sonora, não é feio nome, responde bem ao sentido. Santa Sonora... Em todo caso, prima...

— Você tem raça de judeu; cale-se, interrompeu ela. Recusa então a minha guasca? continuou indo pôr o álbum no seu lugar.

— Não recuso; deixe-me ir indo com o meu celibato, que é meio caminho do Céu.

D. Fernanda soltou uma gargalhada.

— Deus de misericórdia! Você acredita mesmo que vai para o Céu?

— Já cá estou, há vinte minutos. Pois que é esta sala, tranqüila, fresca, tão longe da gente que anda lá fora? Aqui conversamos os dois, sem ouvir blasfêmias, sem aturar espíritos aleijados, tísicos, escrofulosos, insuportáveis, o próprio Inferno, em suma. Aqui é o Céu, — ou um pedaço do Céu; uma vez que nós cabemos nele, vale pelo infinito. Conversamos de Santa Sonora, de São Carlos Maria e de Santa Fernanda, que para contrastar com São Gonçalo, fez-se casamenteira das moças. Onde é que há outro céu como este?

— Em Pelotas.

— Pelotas fica tão longe! suspirou ele estendendo as pernas e pondo os olhos no lustre da sala.

— Está bom, é só a primeira investida; darei outras, até você acabar de querer. “

E capítulo CXX:
“— Iria eu só, se pudesse ser, para lhe dar uma notícia muito comprida.

— Vamos então devagar, disse Carlos Maria à porta da igreja, oferecendo-lhe o braço. E dois passos adiante: — Notícia importante?

— Importante e deliciosa.

— Querem ver que Deus, sempre misericordioso, vai levar para si o nosso querido Teófilo, deixando aqui ao desamparo a mais gentil de todas as viúvas... Não precisa fazer essa cara, prima; deixe estar o braço. Vamos à notícia. Chegou a moça de Pelotas, aposto?

— Não direi o que é, se você me não jurar ouvir seriamente.

— Seriamente.

D. Fernanda confessou-lhe que hesitava em casá-lo com a patrícia de Pelotas; não queria remorsos; descobrira aqui alguém que tinha ao primo um imenso amor. Carlos Maria sorriu, iniciou um gracejo, mas a notícia esporeou-lhe o espírito. Imenso amor? Imenso amor, paixão violenta, confirmou a prima, acrescentando que talvez a definição já não coubesse bem ao atual sentimento da pessoa. “



            Rubião herdou de seu mestre de filosofias um cachorro e uma herança bastante significativa. Humor machadiano, tanto o mestre quanto o cachorro levavam o nome Quincas Borba, bem como o romance. Cansado da vida em Barbacena, Minas Gerais, Rubião se muda para a corte onde passa os dias dando almoços e distribuindo charutos, frequentando jantares, patrocinando jornais e políticos, nutrindo amores por uma mulher casada. A ideia de D. Fernanda (destaque para o uso do termo “guasca”) de casá-lo com uma prima esbarra no mote machadiano de os personagens darem desculpas ruins para se evadirem de casamentos. Desde “Porque bela, se coxa, porque coxa, se bela?”até “Pelotas é tão longe”.
            No próximo capitulo, último da série, um conto machadiano que se passa em Pelotas.



Continua...

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Fonte: há muitas obras completas de Machado de Assis disponíveis online, para este texto utilizamos o site Domínio Público (domíniopublico.gov.br). A imagem da pintura de Debret é Wikicommons.a foto da coleção do Globo das Obras Completas é de autoria de Jonas Tenfen, a foto de Machado de Assis e Joaquim Nabuco está disponível no site Brasil Escola.

quarta-feira, 20 de novembro de 2019

RS e Pelotas na obra de Machado de Assis Parte 03


RS e Pelotas na obra de Machado de AssisParte 03


A. F. Monquelat [revisão]
Jonas Tenfen

 
O vidigal diante da casa de Vidinha, de Firmino Monteiro (1880)

Continuemos em 1894. Em 25 de novembro, Machado de Assis começa sua crônica com um longo debate filológico sobre as origens e grafias para a palavra piquenique (aqui, na grafia contemporânea, sem o hífen, o que seria o horror para o autor). Depois de contrapor opiniões de Caldas Aulete e Castro Lopes (o suposto criador da palavra “convescote”), Machado debate a origem da palavra “mentira” depois entra em um caso ocorrido na semana. Em reunião do Conselho Municipal, no Rio de Janeiro, capital do Brasil à época, apareceu hasteada a bandeira do positivismo: hasteamento discreto e anônimo que ouriçou os humores. Aqueles que consideraram o ato odioso lembram que foi o positivismo a origem da revolução em RS. Por fim, a conclusão do cronista sobre a origem da bandeira:

“De resto, a agitação é sinal de vida e melhor é que o Conselho se agite que durma. Esta semana o caso da bandeira, que é um dos mais graciosos, agitou bastante a alma municipal. Se o leste, é inútil contar; se o não leste,é difícil. Refiro-me à bandeira que apareceu hasteada na sala das sessões do Conselho, em dia de gala, sem se saber o que era nem quem a tinha ali posto. Pelo debate viu-se que a bandeira era positivista e que um empregado superior a havia hasteado, depois de consentir nisso o presidente. O presidente explicou-se. Um intendente propôs que a bandeira fosse recolhida ao Museu Nacional, por ser “obra de algum merecimento”. Outro chamou-lhe trapo. O positivismo foi atacado. Crescendo o debate, alargou-se o assunto e as origens da revolução do Rio Grande do Sul foram achadas no positivismo, bem como a estátua de Monroe e um episódio do asilo de mendicidade.”
[...] 
“A bandeira não teve destino, foi a conclusão de tudo, e não ser de admirar que torne a aparecer no primeiro dia de gala, para dar lugar a nova discussão, — coisa utilíssima, pois da discussão nasce a verdade. Para mim, a bandeira caiu do céu. Sem ela esta página que começou pedante, acabaria ainda mais pedante.”


Iniciemos 1895. Em 11 de agosto, uma crônica que reuniu colagem de impressões e leituras, crítica velada ao poder das letras. Do estado do Rio Grande do Sul, a menção a uma figura do senado:

“A impressão de que falei, vem de anos longos. Desde muito morrera Paraná e já se aproximava a queda dos conservadores, por intermédio de Olinda, precursor da ascensão de Zacarias. Ainda agora vejo Nabuco, já senador, no fim da bancada da direita, ao pé da janela, no lugar correspondente ao em que ficava, do outro lado, o Marquês de Itanhaém, um molho de ossos e peles, trôpego, sem dentes nem valor político. Zacarias, quando entrou para o Senado foi sentar-se na bancada inferior à da Nabuco. Eis aqui Eusébio de Queirós, chefe dos conservadores, respeitado pela capacidade política, admirado pelos dotes oratórios, invejado talvez pelos seus célebres amores. Uma grande beleza do tempo andava desde muito ligada ao seu nome. Perdoe-me esta menção. Era uma senhora alta, outoniça... São migalhas da história, mas as migalhas devem ser recolhidas. Ainda agora leio que, entre as relíquias de Nélson, coligidas em Londres, figuram alguns mimos da formosa Hamilton. Nem por se ganharem batalhas navais ou políticas se deixa de ter coração. Jequitinhonha acaba de chegar da Europa, com os seus bigodes pouco senatoriais. Lá estavam Rio Branco, simples Paranhos, no centro esquerdo, bancada inferior, abaixo de um senador do Rio Grande do Sul, como se chamava? — Ribeiro, um que tinha ao pé da cadeira, no chão atapetado, o dicionário de Morais e o consultava a miúdo, para verificar se tais palavras de um orador eram ou não legítimas; era um varão instruído e lhano. Quem especificar mais? São Vicente, Caxias, Abrantes, Maranguape, Cotegipe, Uruguai, ltaboraí, Otoni, e tantos, tantos, uns no fim da vida, outros para lá do meio dela, e todo presididos pelo Abaeté, com os seus compridos cabelos brancos.”
           
A figura cujo nome estava incompleto e não mereceu machadianamente uma pesquisa para contrapor a lacuna da memória era José de Araújo Ribeiro, Visconde de Rio Grande (1800 – 1879). Herdeiro de charqueada, advogado, escritor e diplomata, foi neste último campo que possuiu mais relevo reorganizando as relações diplomáticas entre Brasil e Portugal depois da Independência, por exemplo.

Machado de Assis
Em 18 de agosto, uma crônica sobre a escalada da violência urbana. O mote inicial fora o tiro no pé que acidentalmente vitimara um ex-presidente do Uruguai, Sr. Herrera y Obes: o revólver que trazia no bolso disparou enquanto assistia a uma peça de teatro. Do revólver no descuidado bolso uruguaio, para o uso do revólver no Brasil, em contraposição da navalha, uma descrição da violência crescente na cidade do Rio de Janeiro e a boa lembrança de tempos antigos: “Tempo houve em que esta boa cidade dormia com as janelas abertas e as portas apenas encostadas. Não se andava na rua, à noite. O painel do nosso Firmino Monteiro mostra-nos o famoso Vidigal e dois soldados interrogando um tocador de viola. As noites eram para as serenatas, e ainda assim até certa hora. O capoeira ia surgindo; multiplicou-se; fez-se ofício, arte ou distração...”
            A crônica trata da defesa da vida e da propriedade que, afinal, era o que importava. RS aparece como um exemplo, uma frase rápida, mostrando desdobramentos do encerramento da Federalista: “Sem querer, estou falando da vida e da propriedade, e suas garantias, que é o assunto que se examina agora no Rio Grande do Sul. O mundo afinal reduz-se a isto”. É hábito antigo da mídia brasileira reclamar para o endurecimento das leis, aumento da força policial e expansão da repressão como forma efetiva de garantir a paz na sociedade.
              Em 1 de março de 1896, crônica com notícias do fim da Federalista. Peça literária importante para quem se interessa por este episódio da história do Brasil:

“Um dia acabou a revolta, — ramal ou prolongamento da revolução do Rio Grande do Sul, que também acabou. Petrópolis, lá de cima, espiou cá para baixo e, vendo tudo em paz segura, sarou de repente. Achou-se, é certo, convertida em capital de um Estado, único prêmio (salvo alguns discursos e artigos) que a triste Praia Grande colheu do combate de 9 de fevereiro. Não contesto que os Estados devam andar asseados e mudar de capital como nós de camisa; mas, enfim, a velha Praia Grande pode suspeitar que foi por estar manchada de sangue que a degradaram, quando a verdade é que a troca de capital não nasceu senão de um sentimento de elegância muito respeitável. O que a pode consolar é que Petrópolis não tem vocação administrativa nem política. Naturalmente faz que não vê o governador do Estado, não ouve nem lê os discursos da assembleia, e trata de se refazer e continuar o que dantes era.”

O fim da federalista foi o fim da atenção do cronista Machado de Assis sobre o Rio Grande do Sul, pelo menos nas folhas de “Gazeta de Notícias”. Cabe-nos agora discutir Pelotas na obra do escritor, que pode ser percebida na crônica...

Continua...

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Fonte: há muitas obras completas de Machado de Assis disponíveis online, para este texto utilizamos o site Domínio Público (domíniopublico.gov.br). A imagem de Machado de Assis é Wikicommons. O quadro de Firmino Monteiro, com excelente texto sobre, está disponível no site do Itaú Cultural (http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra19942/o-vidigal-diante-da-casa-de-vidinha).


quarta-feira, 13 de novembro de 2019

RS e Pelotas na obra de Machado de Assis Parte 02


RS e Pelotas na obra de Machado de AssisParte 02



A. F. Monquelat [revisão]
Jonas Tenfen
 

            Continuemos em 1892. Em 14 de agosto, o estado do Rio Grande do Sul é cenário, mencionando uma anedota casuística ocorrida com Honório Bicalho, engenheiro responsável, entre outras obras, pela Estrada de Ferro Pedro II. O processo mental que leva até o cenário que é indicativo das ideias que o autor possuía sobre o estado. Naquela semana, houve parte do debate no Senado Federal sobre a permissão ou não da imigração chinesa – dentre outros temas envolvendo a ocupação da terra. Os assuntos vão sendo concatenados, por fim o Rio Grande do Sul como palco para uma população que estava no Brasil, mas não eram brasileiros:

E aí estão quatro tiras escritas, e aqui vai mais uma, cujo assunto não sei bem qual seja, tantos são eles e tão opostos. Vamos ao Senado. O Senado discutiu o chim, o arroz, e o chá, e naturalmente tratou da questão da raça chinesa, que uns defendem e outros atacam. Eu não tenho opinião; mas nunca ouso falar de raças, que me não lembre do Honório Bicalho. Estava ele no Rio Grande do Sul, perto de uma cidade alemã. Iam com ele moças e homens a cavalo — viram uma flor muito bonita no alto de uma árvore, Bicalho ou outro quis colhê-la, apoiando os pés no dorso do cavalo, mas não alcançava a flor. Por fortuna, vinha da povoação um moleque, e o Bicalho foi ter com ele.

            Em 4 de dezembro, o ano se mostrava muito longe do fim. Um tema em especial deu protagonismo ao Rio Grande do Sul à pena de Machado de Assis: a Revolução Federalista (ocorrida entre 1893 – 1895). Lembrando que esta crônica é do ano anterior ao início da Revolução, vemos os desenhos dos motivos que acabariam por tornar belicoso os planos políticos. O primeiro parágrafo do texto trata de uma dúvida sobre como – ou melhor, qual – tema abordar para a crônica semana, quando o segundo:

Justamente o que ora me sucede. Toda esta semana falou-se na invasão do Rio Grande do Sul. Realmente, a notícia era grave, e, embora não se tivesse dado invasão, falou-se dela por vários modos. Alguns têm como iminente, outros provável, outros possível, e não raros a creem simples conjetura. Trouxe naturalmente sustos, ansiedade, curiosidade, e tudo o mais que aquela parte da República tem o condão de acarretar para o resto do país. Imaginei que era assunto legítimo para abrir as portas da crônica.

            Semana seguinte, a pena – que é da galhofa – volta a falar do estado, mas agora na figura de seus partidos. Depois de iniciar o texto falando do chupim (“chopim”, não grafia utilizada pelo autor), aborda

Outra questão complicada é (ornitologicamente falando) a dos pica-paus e dos vira-bostas, que são os nomes populares dos partidos do Rio Grande do Sul. Eu, quanto à política daquela região, sei unicamente um ponto, é que a Constituição política do Estado admite o livre exercício da medicina. Conquanto seja lei somente no Estado, não faltará quem deseje vê-la aplicada, quando menos ao distrito federal; eu, por exemplo. Neste caso, entendo que não se pode cumprir a notícia dada pelo Tempo de hoje, a saber, que vai ser preso um curandeiro conhecidíssimo, do qual é vítima uma pessoa de posição e popular entre nós.

            Inicia-se o ano de 1893. No dia 11 de fevereiro, debates sobre justiça, o vislumbre da pólvora que parecia querer estourar pelo Brasil, bombons de dinamite na casa do governador de São Paulo (“excelente produto da indústria local, que conseguiu reduzir um explosivo tão violento a simples doce de confeitaria.”), mas, em resumo, uma crônica sobre a paz. Várias províncias se mostravam em polvorosa, e na lista, o estado não ficaria de fora:

 Não falo de Pernambuco, nem do Rio Grande do Sul, nem das amazonas de Daomé, nem das danças de Madri, a que chamaram tumultos, por ignorância do espanhol, nem da Guaratiba, nem de tantas outras partes e artes, que são consolações da nossa humanidade triunfante.

            Em 9 de abril, uma nota sobre tentativa de lei para regulamentar o trabalho doméstico. O debate assume a direção de que a lei só terá efeito pelo medo que as pessoas terão da coerção, um tema bastante frequente nos debates ainda hoje. Falando em eficácia da lei, alguns parágrafos mais adiante:

Tudo isto quer dizer que a legislação, como a vida, é uma luta, cujo resultado obedece à influência mesológica. Oh! a influência do meio é grande. e vemos no Rio Grande do Sul? Combate-se e morre-se para derrocar e defender um governo. Venhamos a Niterói, mais próximo do teatro lírico. Trata-se de depor a intendência. Reúnem-se os autores e propugnadores da idéia, escrevem e assinam uma mensagem, nomeiam uma comissão, que sai a cumprir o mandato. A intendência, avisada a tempo, está reunida; talvez de casaca. A comissão sobe, entra, corteja, fala: [...]

            Em seguida, há algumas falas de uma cena teatral que, se não fosse tragédia, facilmente é identificável com comédia.
            Em 13 de agosto, desdobramentos da Federalista em Santa Catarina. Para ser mais exato, grande parte da crônica são as impressões da recepção de um telegrama deixado por Hercílio Luz, e amplamente divulgado por seus correligionários:

 Entre tantos sucessos desta semana, que valeu por quatro, um houve que principalmente me encheu o espírito. Foi a proclamação do ex-governador Hercílio, ao deixar o poder de algumas horas.
 Talvez o leitor nem saiba dela, tão certo é que os vencidos não merecem compaixão. Eu também não a li; não sei se é longa ou breve, nem em que língua é escrita, dado que os revolucionários fossem alemães, como disseram telegramas, — ou teuto-brasileiros, fórmula achada no Rio Grande do Sul para exprimir a dupla origem de alguns concidadãos nossos. Também ignoro se a proclamação ataca o poder federal, como fez um telegrama do próprio ex-governador. Propriamente, a minha questão não é política. A parte política só me ocupa, quando do ato ou do fato sai alguma psicologia interessante.
Talvez o leitor nem saiba dela, tão certo é que os vencidos não merecem compaixão. Eu também não a li; não sei se é longa ou breve, nem em que língua é escrita, dado que os revolucionários fossem alemães, como disseram telegramas, — ou teuto-brasileiros, fórmula achada no Rio Grande do Sul para exprimir a dupla origem de alguns concidadãos nossos. Também ignoro se a proclamação ataca o poder federal, como fez um telegrama do próprio ex-governador. Propriamente, a minha questão não é política. A parte política só me ocupa, quando do ato ou do fato sai alguma psicologia interessante.

            Chama atenção que ao cronista faltou tempo, e algum disciplina, para ler o telegrama, algo honestamente revelado nas linhas acima. Até mesmo Machado de Assis, sobre a história e política do Brasil, dedicou a alguns temas nada mais que uma orelhada.

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Fonte: há muitas obras completas de Machado de Assis disponíveis online, para este texto utilizamos o site Domínio Público (domíniopublico.gov.br). As imagens que ilustram o texto são Wikicommons.