quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

Chafariz das Nereidas, Sereias e Walt Disney


Chafariz das Nereidas, Sereias e Walt Disney

A. F. Monquelat
Jonas Tenfen



            O texto de hoje foi motivado por uma pergunta feita durante uma caminhada. Cortando pela Praça do Chafariz, fui interpelado sobre a razão de as figuras em forma de sereia terem duas pernas, mesmo que com escamas, no lugar daquele formato de corpo de peixe, como estamos acostumados a ver em filmes e animações. Recorrendo à história de Pelotas, mitologia clássica e aos estúdios Disney, a explicação se mostra fácil.
            O livro “Fontes d’Art no/au Rio Grande do Sul”, de José Francisco Alves, nos informa que “A instalação deste chafariz foi aprovada e, 23 de abril de 1873, para a então Praça Dom Pedro II, atual Praça Coronel Pedro Osório, a Principal de Pelotas. Seu funcionamento efetivo – fornecer água potável – ocorreu em 1874, conforme comunicado da Companhia Hidráulica à Câmara, em 4 de abril. O chafariz, instalado até hoje no mesmo local, foi o principal desses equipamentos que a cidade recebeu, sendo mais conhecido como ‘Chafariz das Nereidas’. Trata-se do mesmo modelo, em “escala reduzida”, do famoso chafariz apresentado pelas Fundições DURENNE na Exposição Universal em Londres (1862), lá instalado até 1872. Posteriormente, esse mesmo chafariz teria sido transladado para a capital da Escócia, Edimburgo, transformando-se naquele que é hoje um dos mais divulgados cartões-postais daquele país: o Chafariz Ross [Ross Fountain]. O notável modelo foi criado pelo escultor ornamentista Jules Klagmann, com a colaboração de Ambroise Choiselat.”
            Algumas páginas adiante no mesmo livro, encontramos a descrição de todo o chafariz, mas vamos citar apenas da Base: “no centro do tanque principal (interno, de ferro) ergue-se a estrutura central, vertical, do chafariz propriamente dito. Sua larga base com um diâmetro de aproximadamente 1,5 m e altura de 1,2 possui quatro nichos. Em cada um deles, consta um par de ninfas e uma carranca de leão no centro. Os pares de ninfas, em pose simétrica, vertem água das ânforas que apoiam em seus ombros para dentro de conchas com bordas rebuscadas. Das bocas dos leões também verte água para as mesmas conchas. As ninfas, que estão recostadas na estrutura sobre as conchas, estão seminuas e têm cauda de peixe em lugar das pernas, como bem devem ser essas típicas entidades mitológicas do reino de Tritão [Netuno]”.
            Ao autor da descrição faltou um pouco de atenção ao detalhe de que estas ninfas, como notou a autora da pergunta que nos motiva a escrever este texto, não têm caudas de peixe no lugar das pernas. Dois pares de pernas para cada uma, com saliências que lembram escamas e nadadeiras no lugar dos pés.
            Havemos de falar sobre nereidas, ninfas e sereias. A tradução do dicionário de mitologia de Pierre Grimal manteve a versão mais afrancesada da palavra, por isso encontramos na obra a entrada “nereides” (embora apresente como válida a versão aportuguesada). Filhas de Nereu e Dórias, netas de Oceano, sua quantidade é bastante variada, havendo assim entre 50 e 100 destas entidades. Seria muito interessante descobrir se as quatro figuras do Chafariz da Praça representam alguma nereida específica, como Tétis, Cálice ou Iera. Segundo o dicionário, “elas personificam, talvez, as inúmeras vagas do mar.”
            As ninfas, por sua vez, são representações várias dos campos, bosques e das águas, no mais das vezes, das águas doces. Sua ascendência muda dependendo do pesquisador, mas a versão mais corrente é que são filhas de Zeus. Divindades secundárias, estão no mundo, se cronologia é possível, a menos tempo que as nereidas e intervém mais nos afazeres e acontecimentos humanos.


            Por fim, as sereias. Ainda com Grimal, “as Sirenes viviam numa ilha do Mediterrâneo e, com a sua música, atraíam os marinheiros que passavam nas redondezas. Os barcos aproximavam-se perigosamente da costa rochosa da ilha, despedaçavam-se e as Sirenes devoravam os imprudentes. Conta-se que os Argonautas passaram perto das Sirenes, mas Orfeu cantou tão melodiosamente enquanto o navio Argo este ao alcance da sua música que os heróis não sentiram qualquer tentação de abordar a ilha [...] Quando por lá passou, Ulisses, prudente e curioso ao mesmo tempo, ordenou a todos os marinheiros que tapassem os ouvidos com cera e o amarrassem ao mastro, proibindo aos seus homens que o soltassem quaisquer que fossem os pedidos que ele lhes fizesse”.
            Os mitos mais antigos sobre as sereias as representam como parte humana, parte ave. Com o tempo, talvez por se tratar de uma ilha no mediterrâneo o lar dessas criaturas, pareceu mais conveniente aos artistas atribuírem a elas feições de peixe. Contudo, papel importante para a passagem de ave para peixe tiveram os marinheiros ao longo da história, pois vendo grandes mamíferos nadando – como a beluga – à noite, acabaram por enxergar ali formas femininas.
            Voltando às pernas, é muito mais comum encontrar representações para sereias como as ninfas do chafariz, do que da maneira como estamos condicionados a imaginá-las. O problema de imaginar um ser aquático feminino nadando é o inconveniente moralista de imaginá-las despidas. Parece que é algo muito antigo, mas é mais recente do que muitos imaginam: a marca da rede de café Starbucks é baseada em uma representação escandinava de uma sereia. Como o passar do tempo, a marca foi ficando mais estilizada e cada vez mais próxima da face da entidade mitológica, tentando disfarçar o exercício de flexibilidade que esta fazia.
            Problema semelhante enfrentou Walt Disney quando quis fazer uma animação com sereias para suas Silly Simphonies. Um monarca do fundo do mar tem suas amadas sereias sequestradas por piratas e a narrativa se desenrola para o resgate. Mas como fazer um desenho animado para crianças sobre sedutoras figuras femininas nadando sem vestimenta? A solução foi dar a elas cauda de peixe da cintura para baixo: ainda femininas, mas assexuadas. Esse é o enredo do episódio “King Neptune”, da série Silly Simphonies, de 1932. Essa animação popularizou o formato ocidental mais aceito da entidade mitológica, sendo à exaustão reproduzido em livros infantis, filmes e séries de televisão. De forma algum se quer afirmar que foram os Estúdios Disney os primeiros a desenharem sereias do modo como estamos habituados, basta olhar para o Brasão de Armas de Varsóvia, que é baseado em imagens do século XV. Afirma-se que, tal qual o monstro de Frankenstein, foi um filme que popularizou uma forma de uma personagem de ficção.

            Se hoje o Chafariz das Nereidas fosse montado, é possível que as figuras que despejam águas nas conchas tivessem outro formato, mais familiar a nós. Por falar em familiaridade, talvez seja esse o espanto da interlocutora ao questionar sobre as figuras do Chafariz: ela mesma nunca antes havia notado que elas possuíam pernas.
            Para encerrar, uma nota filológica. A palavra “sereia” como utilizamos vem do português arcaico “sereã”, que, por sua vez veio do latim, “sirena, -ae”, que por sua vez veio do grego. É raro o uso em português de “sirene” para “sereia”, embora a tradução do dicionário de Pierre Grimal a utilize. “Sereia” e “sirene” têm o mesmo radical, e, digamos, sempre prestamos atenção ao canto de ambas. “Serenata” e “seresta”, contudo, têm outra origem etimológica.

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Fontes: Consultamos a 5º edição do Dicionário de Mitologia Grega e Romana, de Pierre Grimal, publicado no Brasil pela Bertrand, e também o “Fontes d’Art no/au Rio Grande do Sul”, de José Francisco Alves. A imagem do Brasão de Armas de Varsóvia é wikcommons.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

Pelotas e “O livro no Brasil: sua história”


Pelotas e “O livro no Brasil: sua história” 

A. F. Monquelat
Jonas Tenfen



            Publicou-se muito na cidade de Pelotas. Bastante corriqueiro encontrar em livrarias de novos e usados (os sebos), edições que foram impressas na própria Princesa do Sul. Também é bastante presente no imaginário a atuação de várias editoras, cujos nomes ainda hoje são sinônimos de boas edições, boas traduções ou azar. Vários escritores, há época famosos e hoje canônicos, aceitaram convite de colégios e instituições para proferir palestras e lançar livros nesta cidade. Algumas dessas visitas, até que se ache trilha nas páginas de jornal, seguem sendo mitos, mesmo assim, mitos muito presentes e cotidianamente recuperados.
            O “Dicionário de História de Pelotas”, recuperando uma ideia frequente das aulas de literatura, relaciona os livros no Brasil à história do jornal, mais especificamente, às tipografias. Onde havia jornal, havia público leitor. A presença das tipografias em uma determinada região aumentava a oferta de material impresso a preços mais reduzidos. Apesar de uma ou outra experiência malfadada, foram os jornais que sustentaram tipografias em várias cidades há época. A demanda criada, as tipografias passaram a aproveitar o tempo ocioso para produzirem livros. Criou-se assim outra demanda: a de escritores, incluindo-se nesta categoria tanto os prosadores como poetas, bem como os tradutores.
            Falando em pioneirismo, o mesmo Dicionário nos informa: “É bastante provável que a mais antiga obra editada em Pelotas tenha sido ‘Resumo de História Universal’, também o livro de estreia do professor alemão Carl von Koseritz. Foi impresso em 1852 na tipografia de ‘O Noticiador’, o segundo jornal em circulação na cidade (Tipografia Luiz José de Campos).”
            Depois da apresentação, dos objetivos deste artigo. Apresentaremos aqui a presença da cidade de Pelotas na obra “O livro no Brasil: sua história”, de Laurence Hallewell. José Paula de Ramos Jr afirma que ao “finalizar a leitura da esplêndida obra do inglês Laurence Hallewell, o leitor brasileiro certamente será persuadido de que é possível, sim, conhecer muito melhor o seu próprio país e a sua cultura por intermédio da história de seus livros.” Por extensão, muito da história de Pelotas está nos livros, não necessariamente no escrito em suas páginas, mas nos meios e acontecimentos que permitiram que eles fossem publicados e consumidos. Facilmente reduzimos tecnologia a computadores, esquecendo que uma das maiores revoluções tecnológicas da humanidade foi a impressão em papel distribuída por meio de encadernação.
            São cinco as menções de Hallewell à cidade de Pelotas, sendo as duas primeiras as mais importantes. A primeira dela, no capítulo sobre Pirataria dos Direitos autorais, é a seguinte: “É claro que é sempre mais tentadora a pirataria de obras de autores mortos; talvez seja esse o motivo de uma segunda edição, clandestina, de ‘Memórias de um Sargento de Milícias’, de Manuel Antônio de Almeida, impressa em Pelotas em 1862, menos de doze meses após sua morte.” Satisfeito o autor com a menção a esta obra literária, direciona seu trabalho seguinte para a primeira Convenção Pan-Americana de Direitos Autorais (1889), mas, destacamos, que é pouco laborioso levantar outros exemplos semelhantes de atuação editorial na cidade.
            Acrescentamos uma consideração de Hallewell: “Embora o advento da República tivesse fortalecido, assim, os direitos legais formais da autoria literária, sua importação da doutrina americana dos direitos dos estados membros da União tornou a execução da lei quase uma questão de opção local. Em nenhum outro lugar isso foi mais evidente do que no Rio Grande do Sul, onde, até as primeiras décadas do século XX, a principal atividade de algumas editoras foi a publicação ilegal de autores de fora do estado sulino.” A assertiva é sucinta e dura. Embora não neste parágrafo, mas a única cidade do estado sulino mencionada nominalmente por esta atividade foi Pelotas.
            Nas vagas literárias, a Princesa do Sul foi Rainha da Pirataria.
            Justificativas e debates à parte, essa postura permitiu às editoras expandirem seus catálogos com mais facilidade, bem como tornar mais ágil o processo do feitio do livro. Parte do capital investido na compra de direitos autorais está no tempo despendido em negociações; abrindo-se mão desse “inconveniente” temporal, há ainda mais o óbvio incentivo financeiro, em alguma medida barateando custos. Essa flexibilidade explica alguns pioneirismos no campo da tradução, como exposto por Denise Bottmann: “também do Rio Grande do Sul vem o primeiro volume de Dostoiévski traduzido no Brasil. Foi ‘O Jogador’, em tradução de Alcidez Cruz, publicado pela Livraria Americana de Pelotas, de Costa Pinto [sic], em sua coleção ‘Nova bibliotheca economica’. O livro saiu, calculo eu, por volta de 1895-6: avento essa data porque foi em 1896 que o ‘Almanak litterario e estatístico do Rio Grande do Sul’ publicou o anúncio de página inteira da Livraria Americana, com ‘O Jogador’ entre os três títulos já publicados em sua referida coleção.”
            A segunda menção a Pelotas, cento e sessenta páginas adiante, ainda às voltas com a mesma questão. Antes de começar com a história da Livraria do Globo, Hallewell dedica-se a explicar este espírito empreendedor para além da questão econômica trazendo à tona as posturas do positivismo. Na citação de Rubem Borba de Moraes: “No século XIX, foram os belgas os grandes piratas das edições francesas. No Brasil, em fins do século XIX e princípios deste, os editores rio-grandenses, protegidos por uma constituição positivista, imprimiram toda sorte de livros sem autorização dos editores legítimos e sem pagar por direitos autorais.”
            No parágrafo seguinte, Hallewell explicando Borba de Moraes é mais taxativo: “Não se faz menção a nenhuma firma, mas o principal culpado era a editora gaúcha mais importante da época, a Livraria Americana, de Carlos Pinto, estabelecida, desde a década de 1880, em Pelotas, no extremo sul do estado. Sua série Bibliotheca Econômica, de baixo preço e formato de bolso, publicava traduções de Bourget, Alphonse Daudet, Dostoiévski, Elslander, irmãos Goncourt, de Kock, Maupassant, Sacher-Masoch, Turguêniev e Zola [dentre outros].”
            As três menções seguintes a Pelotas estão nas tabelas do apêndice I. Não cabe aqui reproduzir todos os dados, segue, contudo, os títulos: “Tabela 14. População das cidades mais importantes do Brasil comparada com a de cidades de outros países, 1920-1950”, “Tabela 23. População das cidades mais importantes do Brasil comparada com a de cidades de outros países, 1950-70”, e, por fim, “Tabela 39. População das cidades mais importantes do Brasil comparada com a de cidades de outros países, 1980-2004”.

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Foi consultada a verão on-line do “Dicionário de História de Pelotas”, um .pdf bastante fácil de ser localizado. As citações do livro de Laurence Hallewell foram retiradas da terceira edição da obra, publicada pela EdUSP. O texto de José de Paula Ramos Jr., “Lição de inglês sobre o livro brasileiro”, é da Revista USP, n° 81, também disponível on-line. Não se espante o leitor ao ler o blog de Denise Bottmann, www.nãogostodeplagio.blogspot.com, pela falta de maiúsculas. Foto de ilustração é de Jonas Tenfen, da Livraria Monquelat.

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A.    F. Monquelat
Jonas Tenfen

 
“O tempo-areia que escorre entre as mãos viu-se emaranhado ao longo da formação histórica de Pelotas pelos espectros da escravidão. Em meio a este emergiram batuques e sambas apresentando outras histórias, outras formas de estar no mundo.”
Dessa forma que Jarbas Lazzari inicia seu texto no segundo volume do Almanaque do Bicentenário; de forma sucinta, porém clara, apresenta os objetos de estudo que o acompanham em décadas de trabalho intelectual. Buscar organizar em narrativa cartesianamente organizada a história do cotidiano é segurar um punhado deste tempo-areia nas mãos e buscar contar os grãos ali contidos. Apesar de ser árdua a tarefa, há facilidade em perceber os espectros da escravidão na história do cotidiano.
Cotidiano difícil de ser matizado pela brutalidade dos trabalhos nas charqueadas. Mário Osório, em “Pelotas toda a prosa”, traz tradução de excertos da descrição da cidade, região e do trabalho na charqueada feita por Nicolau Dreys quando em visita a Pelotas. A frase que se tornou mais ou menos canônica: “Uma charqueada bem administrada é um estabelecimento penitenciário”. Lida em separado do texto de Dreys, pode-se concluir que ali há uma severa crítica ao trabalho escravo, quando seguidamente o autor dá escusas às culpas e penas que o trabalho impunha aos escravizados. Mesmo a questão da penitenciária é uma metáfora, logo em seguida explicada que não ocorrem crimes nas charqueadas e dá um leve elogio aos cerceamentos da liberdade, pois “numa charqueada ou numa estância há menos facilidades de nascerem e de se alimentarem os vícios comuns dos negros”.
Um outro exemplo, a cena de abertura do filme “Concerto Campestre” (de 2005). A música é alegre e vibrante, embora levemente entrecortada por mugidos e gritos de peões. Apresenta-se sucintamente as etapas do trabalho da indústria saladeiril, de forma a entender seus processos e a rudeza do trabalho. Trabalho este que causa movimento, movimento que é sinônimo de vida, ambos ao som da empolgante trilha sonora, torna possível ver na tela a exploração dos escravizados como abertura de um filme romântico. A nós é agradável a canção do progresso quando assistimos aos outros na dança do trabalho.


            Depois da consolidação do centro urbano, houve diversificação das atividades laborais dos escravizados, antes centradas na produção do charque e na construção civil. Torna-se financeiramente possível a figura do “escravo de ganho”, e sua presença será bastante frequente a levar em conta a imprensa da época. Observemos dois anúncios de jornal.
            O primeiro, do Diário de Pelotas, de julho de 1876: “Ama de Leite. Precisa-se alugar uma ama de leite, sadia, sem cria e de boa conduta. Para tratar em cada de Luiz Maurel. Rua de Yatahy, nº 110.” (Em agosto do mesmo ano, há outro anúncio da mesma natureza no jornal: “Preciza-se de uma ama de leite, livre ou escrava, porém sem cria, que seja carinhosa, não se fazendo questão do preço. Para informações, nesta tipografia”. Como não se pode mais buscar aquela tipografia para mais informações, impossibilitado fica de saber se era o mesmo anunciante ou outro.)
            O segundo, do jornal Paiz, de dezembro de 1876: “Ama de leite. Vende-se uma escrava moça, superior ama de leite, sadia, de bons costumes, engoma e cozinha perfeitamente. Rua 16 de Julho, nº 17, Casa Vermelha.”
            Sobre este segundo anúncio que vamos nos deter mais atentamente. Há muito da história da cidade que salta aos nossos olhos, muito da história do cotidiano nessas poucas linhas de um anúncio de uma tentativa de transação comercial. Há também uma tragédia que se mostra depois de desvelados alguns detalhes que se perderam no cotidiano de outrora. Este segundo anúncio é quase imperceptível na página do jornal, pois compete em atenção com grandes eventos. Contudo, está impresso, testemunha em papel enfrentando as traças e a memória.


            A saber, a rua 16 de Julho teve seu nome mudado para Dr. Cassiano, que é o nome atual. Há época, concentrava alguns prostíbulos, sendo frequente sua presença nas páginas policiais por motivos de brigas e outros barulhos. Podemos entender que a anunciante é desse ramo, além da localização, o complemento que ela dá ao endereço “Casa Vermelha”. Pode-se inferir que uma escrava, alugada como prostituta, engravidou em decorrência da função e está sendo vendida como ama de leite.
            A ausência fala mais alto. Quem anuncia fala dos bons costumes e de outras atividades que a escravizada pode desempenhar, mas o maior chamariz para o negócio é o que ela não leva. Nos predicados, nada acerca do filho, pois a levar em conta o primeiro anúncio, não havia interesse em se adquirir uma ama de leite com o filho que a tornou mãe. Uma boca a mais para alimentar, mais uma pessoa a ocupar a casa. O destino dessa ama de leite é o de ser separada do filho, sendo essa criança deixada para trás na Casa Vermelha, sendo essa criança dada à caridade de alguma instituição.
            Pesquisa historiográfica é um jogo de quebra-cabeças em que se trabalha mais com as peças que faltam do que com as disponíveis. Não nos é possível dizer o destino dessas pessoas, se a transação fora concluída, ou se a exploração sexual dessa mulher acabaria se saísse da Casa Vermelha. Maio de 1888 está distante quase doze anos do anúncio, mas pensar a abolição como o fim da exploração dos – daí então – libertos, como o fim da escravidão no Brasil a partir de um golpe de pena, é um acalanto de esperança em dias melhores. Estatisticamente falando, é mais provável que esta mãe tenha passado toda a sua vida fazendo as mesmas atividades e nunca reencontrado este filho.
            Para encerrar, novamente com Jarbas Lazzari: “Afinal, como sabia Walter Benjamin, o inconformismo dos vivos não existe sem o inconformismo dos mortos, pois ‘nem estes estarão a salvo do inimigo se este vencer’. E este tem vencido. E no caso da história de Pelotas, o vencedor nos fez servos do capital e herdeiros do imaginário senhorial escravista. Para irmos além desta condição histórica teremos de enfrentar nossas mais torpes memórias, em especial os espectros da escravidão.” As ruas de Pelotas gritam, basta querer ouvir.
           

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Fontes; CEDOV – Bibliotheca Pública de Pelotas; imagem da ama de leite é wikicommons


Religiões de matriz africana em Pelotas (parte 2)

Religiões de matriz africana em Pelotas
(parte 2)

A.F.Monquelat
JonasTenfen


         Discípulos de Juca Rosa


         Não muitos dias depois da apreensão anterior, o Sr. subdelegado de polícia, ainda pelos lados da Várzea, encontrou, à noite, em flagrante adoração ao santo Manipanso, alguns pobre de espírito com pretensões a feiticeiros, dizia o jornalista ao registrar o acontecimento ao final do mês de janeiro de 1878 nas páginas de seu jornal.
         Como sempre, prosseguia ele, eram pretos os adivinhas, consistindo sua alquimia em um “santo preto”, um presépio, diversas tigelas com sangue de galinha, penas de diversas aves, cabeças de pato e outras asneiras semelhantes, que foram direto à purificação do São Gonçalo, as quais deveriam ficar enfeitiçadas e com virtudes, até aquele momento, desconhecidas.
         Os devotos do “Deus urubu” sofreram, após a apreensão, algumas horas de justíssima correção, no entender do jornalista.

Adivinhas que não adivinharam a própria prisão


         Com a chamada Feiticeiras, o Correio Mercantil, de 9 de abril de 1878, iniciava a matéria anunciando que uma das coisas que mais o preocupava era a previsão do futuro, ciência que dera água pela barba aos sábios da antiguidade, e da qual, era certo, terem eles colhido ótimos resultados para suas algibeiras.
         Em Pelotas, prosseguia o redator do Correio, existiam duas pretas, dedicadas de corpo e alma às altas ciências, que previam o futuro e revelavam a maravilhosa eficácia de certas bebidas extraordinárias, que nos davam o amor da ingrata que desprezasse os nossos afetos e muitas outras coisas, tão importantes e supremas como esta.
         Evidentemente estas duas pretas não eram somente dois gênios, eram também dois anjos, que a humanidade deveria preservar em eterno museu.
         Porém, a polícia, que entendia lá as coisas por outro modo, foi à casa delas e, com certa crueldade, as levou para o xadrez.
         E não foi somente crueldade, foi também heresia, porque as magnas adivinhadoras estavam nessa ocasião em magna sessão, diante de um santo e uma vela.
         Pelo visto, já nem os santos protegiam contra tal polícia, sem alma e sem crença.
         Do que o jornalista se admirava mesmo, era como elas não adivinharam aquela ocorrência que lhes iria por à sombra e não trataram logo de se por à fresca.

Foi e não voltou


            Eram onze horas da manhã do dia 19 de abril de 1878 quando, na cadeia civil da cidade, chegou uma rotunda negra, atirando à mina, majestática trunfa, cajado de prata na destra, passo grave e todo respeitável.
         Acompanhava-a outra negra, chapéu de sol, aberto, abrigando-a dos raios solares, ao costume chinês.
         Pedem licença e entram.
         A primeira, a rainha conga, que se chamava Elvira, dirige-se ao Sr. José Lopes da Conceição e pergunta:
         - O Senhor não deu um sino para São Francisco [de Paula]?
         - Sim, dei rapariga.
         - Pois São Francisco mandou-me libertá-lo da prisão. Pode sair. Eu fico em seu lugar, por algum tempo.
         E o guarda-sol continuava aberto.
         O carcereiro presenciava o que se passava.
         O Sr. José Lopes, achando que estava em presença de uma idiota, tratou de dissuadi-la do propósito de libertá-lo.
         Em vão.
         A enviada de São Francisco insistia tenazmente.
         E tão impertinente se tornou, que o Sr. Mário achou prudente trancafiá-la no xadrez, comunicando, a seguir, ao delegado.

Discípulos de Juca Rosa resistem à prisão a tiros


         Na noite de 18 de agosto de 1878, a polícia particular encontrou, ali para os lados da Várzea, um couto de escravos cativos que se entregavam às “distrações” do Manipanso.
         Tratando de capturar os participantes do festim, resistiram eles a tiro até de cima do telhado.
         No final da escaramuça, foram presos os devotos pertencentes ao “sexo frágil”, enquanto os demais escravos se puseram a salvo, por entre a proteção da noite e dos revólveres.
Naquele mesmo dia, foi preso por ordem da subdelegacia, um escravo do Sr. Porfírio Honório da Silva, por estar, juntamente com outros negros de baile, sem licença de seu senhor, tendo os companheiros conseguido evadir-se pelos fundos da casa. Foi preso também um escravo de D. Maria Auta por ser encontrado com outros em adoração ao “Santo Manipanso”, em uma casa sita na Várzea desta cidade, tendo sido apreendido naquela ocasião “diversos objetos de que se serviam”. Sendo diminuto o número de praças que deu busca na referida casa, conseguiram escapar os demais adeptos.
         Acreditamos que a referida casa na Várzea fosse a de Elvira e que o escravo de D. Maria Auta ali estivesse, quando da invasão da polícia noturna.

Elvira, a Sibila, discípula de Juca Rosa


            Elvira, a Sibila [profetisa, bruxa, feiticeira], é a mesma negra atirada à mina que foi a cadeia civil, por ordem ou aparição de São Francisco de Paula. Com o propósito de libertar o José Lopes, e que lhe custou uns dias de cadeia. Não satisfeita em ser uma “simples criatura deste mundo de enganos e ilusões”, meteu na cabeça pertencer à ordem dos “sobrenaturais”, e daí não haver como arredá-la, dia 12 de junho de 1878, cercada de adoradores do Manipanso, entregava-se às invocações de “toda espécie” na intenção de dar fortuna a uns e casamento a outros.
         A polícia noturna, descobrindo o segredo e local da cerimônia, quis entrar também nos altos mistérios; porém, mal a pressentiram, uns pelo quintal, outros pelo telhado e alguns pelas janelas, abandonaram “o templo” e deram às de Vila Diogo [botaram o pé na estrada, fugiram].
         Só restou, como refém, um único devoto.
         Vistoriada a casa, encontraram ratos mortos, cabeças de galo, pés de galinhas e...”hereges! o santo Antônio metido numa bacia cheia de água e com a corda no pescoço, em sinal de promessa matrimoniosa”.
         Tudo foi inutilizado, inclusive o santo, “por aversão às feiticeiras”.
                                                                          
Continua...
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Fontes: acervo da Bibliotheca Pública Pelotense –CDOV e Pelotas dos Excluídos


Religiões de matriz africana em Pelotas (parte 4)

Religiões de matriz africana em Pelotas(parte 4)


A.F.Monquelat
Jonas Tenfen





Elvira o prato do dia da Imprensa


            Pelo visto, Elvira era um grande prato para a imprensa de sua época, uma vez que os três jornais deram destaque para o assunto: Elvira.
         O Diário de Pelotas deu a seguinte versão: Tendo o Sr. Vigésimo José da Silva participado ao delegado de polícia que há tempos andava uma sua escrava fugida, desconfiava ele de que a escrava estava acoutada em casa “da preta forra “ Elvira, moradora na Várzea.
         Naquela ocasião, o delegado foi também informado de outras passagens de Elvira pela cadeia.
         Mandou policiais, pois, à casa de Elvira e, “felizmente estava ela em sessão magna, sendo apanhada com a boca na botija”.
         Comparecendo à polícia, dizia o jornalista, que Elvira portava uma caixa onde se encontravam “grande porção de bugigangas e, entre elas, objetos que pertenceram ao espólio de Pedro Álvares Cabral”.
         Interrogada, disse Elvira que a tal preta do Sr. Vigésimo nunca esteve em sua casa e que aqueles objetos não eram mais do que para decidir pleitos entre seus constituintes.
         Foram, também, encontradas algumas cartas de pessoas que lhe enviavam consultas. Disse o jornalista que as bugigangas foram presas... pelas chamas, no quintal da polícia.
         As pessoas que assistiam a sessão de feitiçaria foram severamente admoestadas pelo Sr. delegado de polícia.
         O jornalista encerrava a notícia dizendo saber um remédio infalível contra aquela súcia de feiticeiros e, se o Delegado estivesse disposto a aplicar o tal remédio, o consultasse a tal respeito.

E por falar em Elvira, onde anda...


         O Sr. subdelegado de polícia ao dar uma batida, dia 24 de maio de 1880, em uma casa da Rua 24 de Outubro [atual Tiradentes], casa esta habitada pela preta Elvira, ali encontrou vários “inocentes” que tinham ido consultar a “inspirada do Senhor”.
         A autoridade policial mandou conduzir para a secretaria de polícia as “bugigangas” que faziam as delícias dos papalvos que frequentavam aquele “templo”.
         Deu causa àquela batida, uma denúncia de que ali se encontrava acoitada uma preta fugida, a qual não foi encontrada.

Braz, um modesto Juca Rosa é descoberto em Pelotas


Dia 23 de julho de 1880, a polícia descobriu a presença de um Juca Rosa em Pelotas: esse, mais modesto que o Juca Rosa carioca, vivia num casebre da Rua Paysandu [atual Barão de Santa Tecla], fornecendo “drogas e fazendo milagres a troco dos cobres [dinheiro] dos crentes que lhe frequentavam o templo”.
Dizia a matéria jornalística que o Juca Rosa, de Pelotas, se chamava Braz e era natural da Mina, na África Ocidental. A polícia, no entanto, irreverente e cética como tinha orgulho de demonstrar, invadiu-lhe o templo, profanou-lhe os deuses e trancafiou tudo no xadrez. 
De nada valeu a Braz estar na intimidade dos seus deuses, os insensíveis policiais ensurdeceram aos seus lamentos e levaram-no para dar com os costados na cadeia.
E prossegue o repórter afirmando ser aquele o destino de todos os “Brazes” – ninguém crer neles. E que a história falava de um Braz Tizana, de um Braz Cubas e de outro que era Gil. O último dessa raça de “Brazes”, segundo o jornalista, era o mina feiticeiro que “hoje” estava engaiolado, para exemplo dos seus iguais no nome e na profissão. E encerrava a notícia lamentando: - Pobre Braz!              
O Diário de Pelotas, por sua vez, tratando da mesma notícia informava aos seus leitores que o inspetor do 27º quarteirão descobrira, dia 23 de junho, mais um Manipanso. E que o dono do pio estabelecimento era um preto forro de nome Braz, morador à Rua Paysandu [atual Barão de Santa Tecla] esquina de Santo Antônio [depois Miguel Barcelos e atualmente Senador Mendonça].
Entre outras bugigangas foram apreendidos dois gatos amarrados, um chapéu com ovos, em mau estado, e algumas tigelas contendo drogas desconhecidas. Encerrava dizendo que a autoridade policial transportara os objetos para o canal São Gonçalo e o hábil Braz para o xadrez da polícia.

Elvira volta a ser notícia


 O Subdelegado de polícia do 1º distrito fez, na noite de 25 de julho de 1880 uma surpresa na casa da “muito conhecida feiticeira” Elvira, negra forra moradora à Rua 24 de Outubro [atual Tiradentes]. Depois da sessão, que terminara por volta das 11 horas da noite, formaram-se os pares e a música deu sinal para uma quadrilha. Concluída a dança, a polícia, que tinha convites para todas aquelas funções, entrou e convidou Elvira e os demais presentes para irem terminar o baile nos espaçosos salões do xadrez, porém em lugar de ser a toque de música foi a toque de caixa.
 O número de convidados era nada menos que 14 pessoas, as quais, por ordem de seus senhores (os que as tinham) foram “ontem concluir a boda no salão Mário (cadeia da cidade)”.
A noitada na casa da Elvira, segundo o preconceituoso jornalista do Correio Mercantil: com o título de “Consequências de um baile, aconteceu, no dia 25 de julho de 1880, da seguinte forma: que a noite, à Rua 24 de Outubro [atual Tiradentes], a preta Elvira dava um soirée [noitada]. A casa, iluminada a giorno, achava-se repleta da aristocracia da sua raça. Os filhos de Cham [Cam] segredavam amores e deidades cor da noite. Os sons da orquestra, um berimbau e uma gaita, enchiam a sala e, no rodopiar das valsas, entre requebros e palavras entrecortadas pela emoção, “tresandava a catinga”. Era um Deus nos acuda. Ameaçava infeccionar a cidade e desenvolver a peste. A vizinhança, assustada, correu a dar parte à polícia, e esta, desembainhando os chanfalhos [espadas dos guardas municipais e dos agentes da polícia] meteu-se na dança. A presença dos filhos de Marte causou o efeito da cabeça de Medusa [espalhou gente para todos os lados]. Foi um sauve qui peut [um salve-se quem puder]... uns treparam no muro, outros engatinharam pelo telhado, houve até alguns que se sumiram debaixo das camas, dentro dos armários, e, ... quem o acreditaria? O próprio pote de água serviu de tampo a um dos mais famosos. A não ser os que escaparam, os mais foram pernoitar no xadrez de polícia, entregues à meditação sobre os efeitos das havaneiras [habaneras, ‘dança própria de Havana, que se generalizou’].

Braz volta à prisão


O Diário de Pelotas, noticiou a prisão do insigne feiticeiro Braz de quem a polícia dias atrás apreendera grande quantidade de bugigangas e, dentre elas, um inocente gato amarrado de pés e mãos. Foi  preso depois de surpreendido em sessão extraordinária. A vítima, dizia a notícia, de quem ele já tinha cobrado 30$000 (réis) por uma feitiçaria era um súdito português, que também fora levado à presença da autoridade.
 Depois de alguma discussão, o Delegado de polícia entregou o dinheiro à vítima, Braz foi parar no xadrez e os célebres cozimentos apreendidos no canal São Gonçalo.


Continua...

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Fontes: acervo da Bibliotheca Pública Pelotense -CDOV e Pelotas dos Excluídos

                                                                                    

Religiões de matriz africana em Pelotas (parte 5)

Religiões de matriz africana em Pelotas(parte 5)


A.F.Monquelat
Jonas tenfen






Feiticeira tétrica


         Aos 25 de maio de 1882, o jornalista do Onze de Junho, destacando a palavra Feiticeira, dizia logo a seguir que, vendo a palavra de longe, logo despertava certa curiosidade, julgando ele que leria algum romance de amores, logrado nos olhos de alguma gentil e travessa feiticeira.
         A seguir, conta ele em poucas palavras, as proezas de uma feiticeira, mas de uma feiticeira prosaica, fúnebre, tétrica, a Sra. Maria Ignacia Pereira, moradora à Rua 16 de Julho [Dr. Cassiano] que, ao invés de seduzir os vivos com doces remédios e irresistíveis encantos os enganava com uma...caveira.
         A polícia que podia, quando muito, tolerar feiticeiras gentis de sedutora magia, como as das quais falavam os poetas alemães, mas não tão horrendos e medonhos sortilégios nem bruxas tão grosseiras, asilou-a devidamente na ...cadeia civil.

Maria...a santa italiana


         Diz o jornal A Discussão que o Sr. Júlio Maurel, subdelegado do 1º distrito, por denúncia que teve, encaminhou-se dia 5 de setembro de 1883 à Rua São José [atual General Teles], na Várzea, à casa da italiana Maria de tal, conhecida que era por Santa, onde apreendeu grande quantidade de objetos destinados à feitiçaria como sejam: garrafas com ingredientes, cabelos e uma cinta com 3 campainhas que, segundo o jornalista, eram usadas para realizar milagres, assim como grande número de velas de cera, etc.

Pedro, o preto mina e sua magia


         Era notícia do Correio Mercantil de 23 de outubro de 1883 que o preto mina Pedro de tal, sempre tivera queda decidida pela magia branca e pelas ciências ocultas.
         Assim era que, em sua casa, dava lições muito aproveitáveis à crioula Maria, mostrando nas estrelas e em certos outros pontos, as nuvens, segredos cerrados a profanos ouvidos e vista.
         A Maria, porém, bateu com a língua nos dentes e divulgou o segredo...
         A polícia por sua vez quis também assistir uma daquelas sessões...  de encontrar lenitivo aos seus
         E foi.
         A coisa, no entanto, não prestava.
         Como estímulo as novas descobertas e mais aprofundados estudos, a polícia obrigou o Pedro e a Maria a um conciliábulo no xadrez da polícia, e a perderem os objetos essenciais ao ofício.
         Aquilo foi uma crueldade.

A italiana curandeira


         Chegou ao conhecimento do redator do Diário de Pelotas, dia 18 de janeiro de 1888, que na Rua Santa Bárbara [atual Marechal Deodoro] habitava uma mulher italiana que se empregava em iludir a confiança dos incautos e supersticiosos que tinham a desgraça de cair em seu consultório aonde iam à esperança de encontrar lenitivo aos seus padecimentos, mas de onde só saíam com drogas nocivas à saúde.
         A nova filha de Hipócrates não contente de especular com a boa fé de sua clientela, se incumbia também de deitar cartas à sorte, profetizando o futuro, dando assim mais ampla propriedade à Medina [um dos locais sagrados do islamismo].
         Se as nossas autoridades se dignassem comparecer ao referido consultório médico-cartomante, talvez que se curassem da desídia que os perseguia no cumprimento de seus deveres.
       Experimentassem, e podia ser que conseguissem fazer ver a essa curandeira o seu futuro, que haveria de ser desvendado através das paredes do palacete [cadeia] do Braga [o carcereiro].
         Não custaria nada, e além do mais faria muito bem ao... público.

Bruxaria no “muquiço”do preto mina


         Dia 22 de julho de 1889, à noite, o Sr. subdelegado do 1º distrito prendeu um preto mina, morador à Rua Barroso nº 30, que se dedicava unicamente à prática da feitiçaria.
         No “muquiço” do maníaco preto, foi encontrada grande quantidade de bugigangas, tais como: chifres de bode, galinhas pretas, várias ervas e dois indivíduos de pau, competentemente vestidos, dois santos marandubas [inverossímeis, desconhecidos] padroeiros daquela inferneira toda.
         O referido feiticeiro foi, no dia seguinte, posto em liberdade, porém com a condição de se por ao fresco [partir, vazar], no prazo de oito dias e não mais voltar a esta hospitaleira terra, dizia o jornalista, desejando, de maneira irônica, uma boa viagem.

Sr. subdelegado, é bom continuar...


         Segundo o jornal Onze de Junho de 24 de julho de 1889, o Sr. subdelegado do 1º distrito Manoel da Silva Rosa, deu, e em boa hora entendia o jornalista, de embirrar com os feiticeiros e com as feiticeiras também, e onde estivessem manipansos, manitus, santos Boduns e magna caterva, via-se ele pondo moxinifada [misturas de comidas, bebidas e temperos] nos pandarecos, e levando os negrinhos que explorávamos beócios para a cadeia.
         Lamentava o jornalista que a autoridade não pudesse meter também na cadeia os beócios que acreditavam naquelas parvoíces, mas como o que não tem remédio remediado está, deixasse então cada louco com a sua manta e se prosseguisse indiretamente curando o mal.
         Agora, se o Sr. subdelegado do 1º distrito quisesse continuar prestando bons serviços à moralidade pública, acabando com aquela nova indústria implantada na terra, se dirigisse à rua Santa Bárbara [Marechal Deodoro] , onde encontraria  uma italiana, curandeira acreditada, feiticeira em convivência privada com Satanás, e cartomante que se propunha a repetir ipsis verbis [textualmente] o passado e predizer o futuro.
         Essa acreditada sibila tinha a habilidade de transtornar a cabeça de gente muito decente, e bom serviço prestaria o Sr. subdelegado à moralidade pública, se fizesse à audaciosa pitonisa compreender que não era decente explorar a credulidade dos simplórios.

Feitiçaria... na ponta!


            No jornal A Pátria do dia 22 de janeiro de 1890, lia-se que havia sido recolhido à prisão o “preto” João Banmam, africano, morador à Rua São Miguel [atual 15 de Novembro] nº 34, por exercer a profissão de feiticeiro.
         Possuindo o condão de transformar os clientes em burregos [tolos], era provável, diz o jornalista, que arranjasse meios de escapar do xilindró.
         Portanto, toda a cautela seria pouca.
          No dia 23 daquele mês, chegara ao conhecimento do jornalista que na casa de nº36 da Rua General Argolo havia uma tal de Germana, “que é bruxa” e empurrava feitiços a todo preço.        
         Dizia também o jornalista que Germana, tinha muitos fregueses.
            E, por último, soubera ele que havia outro pândego que exercia tal profissão: um tal de Porfírio, morador à Rua General Osório.
         Sugeria o jornalista que as autoridades fossem até o palacete do Porfírio dar uma resfriada no amor que este tinha pela arte.


Continua...

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Fontes: acervo da Bibliotheca Pública Pelotense – CDOV  e Pelotas dos Excluídos