segunda-feira, 27 de março de 2017

Eusébios: três feiticeiros da pequena África pelotense

(parte 5)



                                                                                                          A.F. Monquelat


         Dizendo tal sandice, espalhou as grandes contas negras sobre o dinheiro e chamou por: São Jerônimo! São Jorge! Santa Catarina!
         Esperou que os santos acudissem e, voltando-se para o lado do “cliente”, sentenciou:
         - Você é perseguido por uma mulher que está em Portugal. Esta, porém, não lhe faz tanta carga, mas aqui tem uma que o persegue, porque o estima e quer que você seja dela, custe o que custar.
         Escondendo o riso, o jornalista o ouvia:
         - Você, quando está no seu trabalho, tem dias que lhe dá vontade de voar. Os santos dizem-me que o seu corpo está contaminado de espíritos maus.
         E prosseguiu:
         - Você há de ficar rico e viver em uma casa alta. Há uma pessoa da família que lhe procura cortar a base de seus negócios.
         Eusébio fez ainda outras referências à vida íntima e o futuro do jornalista, “tão certas e tão pulhas como as anteriores”.      
         - Se os seus chefes (dissera o “cliente” ser operário de uma fábrica) deixassem você voltar... Não seria mau, porque tenho que o sujeitar a um trabalho extenuante.
         Ficou então o repórter de voltar para nova consulta, porém, antes de sair ouviu ainda de Eusébio que:
         - Para você ficar limpo e fechar o corpo a todos os males, tem que me dar 150$000 [réis].
         Perguntou o repórter, então, para que tanto dinheiro?
         - É para comprar um carneiro e um cabrito, sendo preferível um carneiro chifrudo.
         E continuou falando.
         - Mas não lhe dê cuidado. Eu mesmo compro os animais. Depois de sacrificá-los em intenção dos santos, juntarei o sangue que, ao fogo, será torrado e com o pó farei um breve que o livrará de todos os males, que o tinhoso procura botar-lhe no corpo, a mando da mulher daqui que o persegue.
         - Mas acha, Sr. Eusébio, que ficaremos bons? – indagou o jornalista.
         - Pois sem dúvida! Os santos não mentem nem se enganam – respondeu Eusébio.
         Fez Eusébio então o “cliente” jurar (Que o perdoasse Deus, exclamou) o mais absoluto segredo.
         Disse ainda que, por precaução, não seria demais que o jornalista tomasse parte, como confrade, na sexta-feira do holocausto, no dia seguinte.
         Procurou o repórter saber o que era a sexta-feira do holocausto.
         Disse-lhe Eusébio que era o dia destinado para os enfermos do diabo no corpo sujeitarem-se ao castigo que os santos determinassem ao passo que os confrades entravam nos pitéus que os crentes haviam oferecido aos santos.
         Como os santos não pudessem comer, delegavam os poderes da mastigação aos purificados.
         Os confrades purificados eram aqueles que, tendo sido... extorquidos nas suas economias pelo mandingueiro, contribuíam com 2.000 semanalmente para terem direito a comezaina.
         Prometeu o jornalista tomar parte na sessão do dia seguinte. Antes, porém, pretextou ele falta de dinheiro alegando não poder pagar os 150$000 para o cabrito e o carneiro chifrudo; contudo, foi ele espoliado em 10$000 para os primeiros preparativos, e em mais 2$000 para a sessão do dia seguinte.
         “Custou-nos 15$000 a sessão que nos dera Eusébio! Não há melhor negócio, hoje! Parece incrível”.
         No dia seguinte, “fomos à patifaria”.
         Ali já estava uma pobre senhora que ia tirar o diabo do corpo, ao mesmo tempo, que uma sociedade suspeita “de vagabundos davam às mandíbulas”, estracinhando com ferocidade os assados que os filhos da Beócia, durante a semana mandavam para a súcia de Eusébio.
         No dia seguinte, quando o jornalista entrou no “templo”, já estava lá a Sra. X.
         Estava ela em fralda de camisa, cabelos soltos e úmidos, de mãos entrelaçadas, tendo os braços estendidos acima da cabeça, mas de bruços, apoiada sobre os cotovelos, em uma posição “de chinês defronte dos monstrengos da religião de Confúcio”.



         O Deus que estava sendo adorado era um horroroso manipanso gordachudo e luzidio, feito de barro vidrado e com certeza modelado para esquisito adorno de alguma cimalha, dizia o repórter.
         O sacerdote [Eusébio] pontificava, tendo na mão uma vara ramalhuda, com a qual batia levemente na vítima, proferindo a palavra pulha chuá, que a assembleia repetia.
         A assembleia era composta de oito latagões [homens novos, robustos e de grande estatura] de gaforinha [carapinha] petulante, rebuscados na mais baixa ralé, e de outras tantas crioulas, de igual jaez.
         A senhora X já tinha vindo de um banho, que lhe havia dado o feiticeiro.
         Descrever tudo o que aconteceu naquele ritual com a infeliz supersticiosa seria, segundo o jornalista, propor-se a encher muitas colunas do jornal.
         Portanto, o importante é que ele dissesse que a senhora X, vinha de longa data enchendo as algibeiras do meliante e da sua súcia, para tirar do corpo os bruxedos que a amante de seu marido lhe havia propinado a fim de que o cônjuge transviado a abandonasse de um todo.
         A pobre senhora, todas as sextas-feiras, sujeitava-se ao ridículo ritual, que o patife lhe impunha, começando por aquele banho, que o espertalhão lhe dava, de narinas abertas debochadamente, tornando-se, assim, senhor dos mais íntimos segredos físicos e morais da infeliz senhora.
         Acabada a cerimônia, entrou a súcia nos pitéus que os crentes mandavam à casa do Eusébio para os santos, ficando os pratos limpos.
         Os ossos das galinhas assadas e as migalhas do festim eram postas em um fogareiro de brasas, colocado perto do altar e do qual saíam línguas de um fogo azulado produzido por enxofre.
         Ficavam, assim, todos purificados e o Eusébio com a semana garantida para novas patifarias.
         Eram inúmeras as façanhas do madraço. Tudo quanto a fantasia dos beócios lhe exigia ele executava, com a certeza de que tudo era feito a peso de dinheiro.
         Quando o jornalista saiu da casa de Eusébio, não conseguia acreditar que tudo aquilo se passasse no coração da cidade de Pelotas.
         Urgia que a polícia iniciasse um inquérito em torno desse perigoso elemento social, capaz de todos os delitos, dos mais infames atos, das mais sórdidas intrigas, pois que tipos como aquele, que estava simultaneamente incorrendo em dois ou mais artigos do Código Penal, não deveriam ter residência no seio da sociedade, pois, segundo o jornalista, pertenciam às galés.


                                                                                     Continua...
                                                                          
        
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Fonte de pesquisa: Bibliotheca Pública de Pelotas/CDOV
 Revisão do texto: Jonas Tenfen

Postagem: Bruna Detoni

terça-feira, 21 de março de 2017

Eusébios: três feiticeiros da pequena África pelotense

(parte 4)

                                                   


                                                  A.F. Monquelat



         - Volte, volte – disse-lhe a “preta velha”, de chato nariz africano a se esparrinhar pelas bochechas gordachudas e luzidias.
         - Não é só o senhor que o tem procurado hoje. – continuou a preta velha - A senhora X (e citou o nome de uma mulher bastante conhecida e importante da cidade) também hoje já aqui esteve, e ficou de voltar amanhã.
         Interessado, indagou o jornalista:
         - Também sofre essa senhora?
         - Sofre, mas não é da sua moléstia. É cá uma coisa... Amanhã o Eusébio virá – afirmou ela.
         No dia seguinte, a mesma decepção: a clientela do Eusébio não o havia deixado regressar de Rio Grande.
         Dias depois de frustradas tentativas, finalmente Eusébio foi encontrado pelo jornalista.
         Ele mesmo nos veio abrir a porta, já prevenido, naturalmente da nossa visita e informado dos nossos males, narrou o jornalista.
         O repórter foi recebido com “carinho paternal”.
         O Eusébio, segundo o jornalista, descendia em linha reta de pretos da África. Os seus traços étnicos eram inconfundíveis: era gordo, nédio [reluzente], retinto, espadaúdo, porejando fartura, confiante no êxito da vida.
         Era um indivíduo de 35 anos mais ou menos. Usava cabelo curto, “como os de sua raça”, bigode à americana que lhe cobria o grosso lábio superior. Era maneiroso, melífluo [doce, suave], de gesto estudado e frase calculada.
         Usava uma larga pulseira de ouro no braço esquerdo.
         Com a sua voz aflautada, fez o repórter entrar e o introduziu na sala de visitas. Longe do que o supunha ,nada ali havia que demonstrasse estar em pleno templo da mandinga: nenhum sinal cabalístico, nada de corujas, nem gatos pretos, nem caveiras.
         Tratava-se de uma sala mobiliada com uma tentativa esmerada de luxo.
         De extraordinário, o jornalista notara apenas uma mesa redonda, ao centro da sala, um alguidar de barro vidrado com canjica fumegante, um prato com um frango assado, uma grande travessa com batatas fritas, um  prato com batata doce cozida, uma travessa com pombos assados, uma com enorme polpa de carne assada, arroz e outras iguarias.
         Uma fruteira com bananas e laranjas completavam a mesa, que bem parecia um mostruário de restaurante.
         Ante toda aquela provisão, o jornalista fez-lhe uma pergunta altamente ingênua:
         - Vai jantar? Queira desculpar o virmos interromper.
         - Oh! Não – atalhou Eusébio.  – Isto são promessas para dar de comer aos santos!
         E, convencido de que o jornalista acreditara naquela “patranha deslavada”, retirou-se para o interior da casa.
         Logo em seguida, a mesma preta velha, gorda e senhorial que lhe atendera dias antes à porta, foi fazer-lhe sala.
         Sempre parecendo o mais tolo possível, dentro de poucos minutos a interlocutora viu que não era preciso grandes artifícios com o “cliente” e entrou logo no assunto.
         Perguntou-lhe por e para que procurava o Eusébio.
         Disse-lhe ser filho de além-mar, e que há muito não recebia notícias de seus familiares. Que isto lhe proporcionava péssimos momentos. Parecia ter ele alguma coisa dentro do corpo que não o deixava sossegar, nem mesmo à noite, e que decidiu ir ali com o propósito de Eusébio o livrar daquela aflição.
         A mulher pensou um pouco e depois disse, com o maior descaramento:
         - O meu filho vai deixá-lo bem (soube o repórter então, que se tratava da mãe de Eusébio).
         - Quando ele vier (continuou ela) lhe dirá “uá”, que quer dizer dinheiro. Diga-lhe que sim, conte 30$000 [réis], bote esse dinheiro na palma da mão e o bafeje três vezes.
         Instruído nos primeiros mistérios do Eusébio, retirou-se a “ridícula mestra dos noviços”, não tardando que fosse ouvida a voz aflautada do meliante, que se mostrava irritado com um recado que recebera de alguém, que reclamara uns objetos ali deixados, por um cliente que falecera.
         - Não se entrega nada. – vinha Eusébio berrando – Quem morreu, morreu!
         E entrou na sala, calculadamente alheado da presença do jornalista, para evitar que este supusesse que a companheira de farsa o houvesse inteirado de alguma coisa a respeito.
         De acordo com o previsto, foi ele ao encontro do “cliente” e disse :
         - Uá?
         Respondeu o jornalista que sim, e foi convidado, então, a entrar para outro compartimento.
         No quarto em que Eusébio armara o “templo”, dentro do qual “pontificava” para os incautos, de quem arrancava generosas contribuições, havia um armário formado de pequenas gavetas sobrepostas.
         Ao centro desse armário, em um vão, havia uma boa quantidade de bananas.
         Mais em baixo, sobre um banco, tudo religiosamente disposto como se tratasse de um armário, vários pratos com convidativos manjares.
         Pelas paredes, diversos objetos do “ofício”, que Eusébio disse ao jornalista ter herdado do pai.
         No ambiente, havia um forte aroma de incenso misturado com o alho das iguarias que ali estavam.
         Entrando no “templo”, o consumado explorador lhe ordenou que depositasse o dinheiro, os tais 30$000 [réis], perto dos pratos que ali se achavam postos com carne assada, peixe frito e elementos de paparóca.
         Obedeceu-o. Pegou então Eusébio algumas contas semelhantes a nozes, mas pintadas de preto, e grunhiu:
         - Atenção, meu irmão. Uá. Chuá. Uá. Chuá
         Inquirido pelo jornalista sobre aquilo, disse que estava chamando os santos, que lhe protegeriam.


                                                                                              Continua...
                                                                          
        
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Fonte de pesquisa: Bibliotheca Pública de Pelotas/CDOV
 Revisão do texto: Jonas Tenfen
Postagem: Bruna Detoni

terça-feira, 14 de março de 2017

O ato de criação do Mercado Central de Pelotas e outros atos



                                                                   A.F.Monquelat



         Em entrevista concedida ao jornal A Opinião Pública sobre a Pelotas do passado, disse o longevo Francisco Nunes Garcia, no ano de 1945, aos 119 anos de idade, que antes da instalação do Mercado Central na área adquirida em 1846, para tal propósito, ali funcionava uma pequena casa de comércio, que fornecia mercadorias aos moradores das redondezas.
         Embora a área tenha sido adquirida em 1846, sua construção deu-se entre os anos de 1849 e 1853.
         O ato de criação do Mercado Central de Pelotas ocorreu através do Projeto de Lei Nº 27, no qual “A Assembléia Legislativa Provincial decreta:
         Artigo 1º - O Presidente da Província fica autorizado a despender a quantia de dez contos de réis para a compra de um terreno na cidade de Pelotas, em que deve ser edificada uma Praça de Mercado.
         Artigo 2º - A compra será realizada por intermédio da Câmara Municipal daquela cidade.
         Artigo 3º - A mesma Câmara será obrigada a apresentar na futura sessão legislativa não só a planta, e orçamento daquela obra, como também os meios, que julgar convenientes à pronta construção da dita obra.
         Artigo 4º - Fica revogada qualquer disposição em contrário. Sala das Sessões, 13 de março de 1846”.
         Na obra “Colleção das Actas da Camara Municipal D’esta Cidade no Anno de 1853. Impressão oferecida à mesma por Cândido Augusto de Mello” lê-se a página 6, com o título de “Obras municipais”, que: aplicou a camara as sobras da sua receita à edificação da praça do Mercado. Este edifício de abóbada e soteia, elegante vasto e bem construído (citarei com louvor o nome do empresário o Sr. Theodolino Farinha) não tem comparação com alguma das praças da província, e é mesmo superior o da capital do império, segundo a opinião de pessoas habilitadas.

Quanto à cisterna do Mercado e sua importância para a cidade
         Os gastos da Câmara com o edifício foram de 70:452$920 réis, incluindo a sua cisterna para 900 pipas de água. Obra sem dúvida digna da praça em que está colocada.
         No capítulo “Fontes de água potável”, é dito que: à exceção das denominadas cacimbas do mato, e de algumas que a câmara mandou abrir na direção das ruas que correm de Este para Oeste, nenhuma outra existe, não se tendo podido aproveitar a do tanque feito em 1848, junto daquelas cacimbas. Suponho que só com grande despesa se poderá obter água potável suficiente para abastecer a cidade, e é por isso que disse ser de muita utilidade e valor a cisterna do Mercado.

O Código de Posturas e o Regulamento da Praça do Mercado         Como consequência ainda da edificação do Mercado Central, surgiu, propositalmente, ao Código de Posturas do Município da Cidade de Pelotas, o 1º Regulamento da Praça do Mercado da Cidade de Pelotas, compilado em 1850 e editado em 1865 na Typographia do Commercio.
Quanto aos negros
         Dentre os artigos contidos naquele Regulamento, constava no Artigo 15 que: Fica proibido andarem pretos de ganho [negros contratados ou alugados por dia ou tarefa, geralmente escravos] dentro da praça e os escravos que forem ali mandados por seus senhores às compras, não se deverão demorar além do tempo necessário para efetuá-las: o fiscal os mandará dispersar.

Quanto aos animais
         Segundo o Artigo 16: Fica proibido entrarem pessoas a cavalo dentro da praça, bem como quaisquer animais, ainda mesmo puxados pela rédea, ou por outra qualquer coisa: também fica proibido amarrar-se nos portões. Os infratores serão multados em 6 réis, e o animal apreendido e posto em depósito até a satisfação da multa.

Quanto aos ajuntamentos
         Dizia o Artigo 17 que: É absolutamente proibido todos e quaisquer ajuntamentos, tocatas, danças, jogos, palavras ofensivas à moral pública. Os infratores incorrerão nas multas do artigo 77 das posturas.



O mercado e os quitandeiros antes da construção do Mercado
         Na Planta do Rio de São Gonçalo, levantada pelo segundo-tenente da Armada, Pedro Garcia da Cunha, em 1838, é visto, com a denominação de “lugar destinado para praça da quitanda”, onde, de acordo com o vereador Nascimento Filho, em sessão realizada em 11 de junho de 1849, estavam localizados os quitandeiros e quitandeiras, geralmente negros, em Pelotas.
         Propunha aquele edil à câmara, que os quitandeiros instalados no limitado espaço de terreno [localizado próximo à Igreja Matriz] em que estava colocado o “chamado mercado”, e bem assim ao exorbitante preço que estes, ali instalados, eram obrigados a pagar mensalmente pelo chão que ocupavam as pequenas barracas que construíram, para se abrigarem do rigor da estação e os objetos que vendiam: que a Câmara ordenasse  ao Fiscal desta para que, no improrrogável prazo de trinta dias, fizesse mudar o “dito mercado” para o terreno comprado por essa “para semelhante fim”, permitindo que no mesmo construíssem barracas de 15 palmos [em torno de 3 metros] de frente, e os fundos que quisessem os mencionados quitandeiros, os quais deveriam ficar dez palmos para o interior das ruas de São Miguel [atual 15 de Novembro] e Martins Coelho [atual Tiradentes] para onde fariam fundos; cobrando-se dois mil réis mensais por aluguel do terreno que ocupasse cada barraca, que passaria a fazer parte da renda mensal, tornando-se pública tal resolução para que as partes interessadas tivessem tempo de efetuar sua mudança.
         Apesar de aprovada a proposição, com alguma alteração, tal não ocorreu, pois a Câmara suspendeu a mudança antes desta ser posta em prática.

Outros atos
         O Mercado Central de Pelotas, hoje com seus 171 anos de idade, desde o ato da sua criação até os dias atuais, tem sido guardião e palco de ações e cenas que compõe a memória da cidade.
          Nele se desenvolveu muitas cenas, desde grandes espetáculos públicos, quanto de violência e degradação humana.
         Em seu interior, bem como em seu em torno, ocorreram diversas cenas de barbárie. Foi ele palco de perseguições e capturas de escravos por parte de capitães do mato e soldados a soldo dos senhores de escravos, agressões a negros, escravos ou não, quitandeiras, pobres, prostitutas, boêmios e até mesmo viajantes estrangeiros, que ali procuraram abrigo junto às bancas do peixe nas noites frias ou por bebedeira. Também foi palco de contravenções e apreensões, por jogatina em suas bancas, tentativa de estupro em uma menor por parte de um de seus comerciantes, ou até mesmo ponto de caftinagem. Em fim, ocorrências que, considerada a sua natureza fizeram e fazem parte do cotidiano de um mercado.
         Para exemplificar o que dissemos, selecionamos quatro entre centenas de episódios envolvendo o Mercado Central e seus atores, dentre esses os que envolveram quitandeiros:
A atividade quitandeira, pelo menos em Pelotas, era exercida geralmente pelas negras minas, fossem elas livres ou escravas de ganho.

Atenção Sr. Subdelegado , estão bulindo com as quitandeiras no Mercado
O jornal Onze de Junho fora informado que na Praça do Mercado, cotidianamente, se davam cenas vergonhosas entre “algumas pretas quitandeiras e uns sujeitinhos dali, que se divertem à custa das infelizes”.
Ainda na véspera, seis de junho de 1883, uma daquelas pobres fora vítima da estupidez e grosseria de um indivíduo, que além de lhe comer parte da quitanda julgou-se com direito de esbofeteá-la.
E, como era de se esperar, a quitandeira não podendo apelar para a força muscular, recorreu à da língua, proferindo uma longa cantiga pouco adequada para lisonjear ouvidos acostumados ao lírico.
Tais cenas, dizia o jornalista, não eram de hoje.
Quem frequentasse o Mercado Público pela manhã, seguidamente presenciava cenas idênticas.
Até então havia muita tolerância para com aqueles fatos; mas, já era hora de reprimi-los.

“Quando o macaco anda infeliz, não há galho que o aguente”
É o que achava o jornal Rio-Grandense com relação ao capitão Tibério, em sua edição de sete de julho de 1885, isto porque aquele domingo tinha sido um dia azarento “para esse herói”.
Logo pela manhã, no Mercado, sofrera ele um descalabro terrível. O caso foi que Tibério, querendo exercer as funções de fiscal da Câmara, proibira que as quitandeiras falassem em voz alta; as filhas da África, não satisfeitas com a determinação deram-lhe uma vaia, que o obrigou a sair dali apressadamente; e tão apressadamente saiu que no portão que dava para a Rua São Miguel (atual 15 de Novembro) esbarrou com “um pobre preto” que vendia mondongos, derrubando o vendedor e os mondongos no chão.

A morte da quitandeira
         Aos 26 de abril de 1890, o jornal Correio Mercantil publicava sob o título de “Morte súbita” que, no dia anterior pela manhã, morrera repentinamente a preta Maria, moradora em uns quartos da Rua Independência [atual Rua Uruguai] nº5, quando se preparava para, como de costume, vender as suas quitandas no Mercado Público.

O espancamento do quitandeiro
         O Sr. Dr. Antero Moreira Leivas, promotor público da comarca de Pelotas apresentou, em 17 de maio de 1921, denúncia contra Carlos Peters, o violento fiscal do Mercado Central, e Ataíde Bonifácio da Silva, Henrique Augusto Prates e Jacinto Rossalvo dos Santos, soldados da polícia administrativa, mandante e autores do bárbaro espancamento de que fora vítima o quitandeiro Silvino Moreira da Silva.

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Fonte de pesquisa: Bibliotheca Pública de Pelotas/CDOV e Mercado Central Pelotas 1846-2014, Klécio Santos – Pelotas, Fructos do Paiz, 2014.

 Revisão do texto: Jonas Tenfen

Postagem: Bruna Detoni

terça-feira, 7 de março de 2017

Eusébios: três feiticeiros da pequena África pelotense

(parte 3)


                                                                                                          A.F. Monquelat




         O jornal O Dia aos 11 dias do mês de setembro de 1916 anunciava, como reportagem sensacional, “Uma digressão ao mundo dos exploradores”, com o intuito de mostrar aos seus leitores como se vivia em Pelotas à custa da ingenuidade religiosa dos incautos.
         Para tal finalidade a redação daquele jornal foi “Ver” e “Colher” nos esconsos [escorregadios, ocultos, esconderijos] sítios de Pelotas, nos quais centenas de pessoas, de boa fé, eram asquerosa e miseravelmente exploradas, e onde se tramavam as maiores intrigas contra a tranquilidade das famílias, quiçá, contra a honra e a vida privada, segundo o redator.
         Além das provas circunstanciais, o jornal dizia ter recolhido, também, as de ordem material, para levá-las, oportunamente, à presença da polícia.
         A sociedade pelotense, que vivia despreocupadamente em família, confiante nela própria, não sabia que no bas-fond da cidade, elementos de fora gravitavam criminosamente em torno das suas presas, nelas saciando a ganância que os movia.
         Parecendo tratar-se de um assunto irrelevante, aos poucos os leitores iriam se convencendo de que o tema era de extrema importância, urgindo, por parte da polícia, uma rápida e enérgica medida, no sentido de varrer do nosso meio uns tantos “patifes lombrosianos” que, vivendo fartamente, iam fazendo as suas vítimas.
         Dando início à sua proposta, diz-nos o jornalista que, há dias conversando com uma senhora idosa e da boa fé, relatou-lhe ela que, entre outras penas do passado, tivera ela um filho, já moço, forte, que lhe era toda a razão de existir.
         O filho adoeceu e, depois de ter sido tratado por vários médicos, fora, a conselho de alguém, consultar a uma mulher que praticava “criminosamente a feitiçaria”.
         O rapaz, “espírito fraco, educado sob o pavor dos augustos mistérios que os professores de catecismo mandam decorar”, mas não sabiam explicar, entregando-se inteiramente às benzeduras e aos exorcismos da “bruxa”, passou depois a medicar-se com umas beberagens.
         Dias depois, morria o infeliz, vitimado, talvez, pelo charlatanismo e exploração da velha mandingueira.
         Diante daquele relato, é que resolveu o jornalista de O Dia, então, ir pessoalmente aos muitos “templos” onde se explorava a ingenuidade religiosa de muita gente, inclusive de pessoas que, pela sua posição social e aparência moral, deveriam estar fora do alcance dos exploradores da credulidade pública, no entendimento do repórter.
         Visitou ele então, um a um, os antros obscuros nos quais os mandingueiros, com o maior cinismo e despudor, teciam as suas intrigas e fabricavam as suas poções suspeitas.
         Assim, dizia o repórter ter coletado grande série de fatos e não menor número de provas.
         Conseguira saber nome por nome de pobres senhoras e cavalheiros que, habitualmente, frequentavam os “templos” dos manipansos, ali deixando dinheiro, saúde, segredos da vida, habilmente colhidos pelos exploradores para fins inconfessáveis e, prestando-se ainda, a infeliz clientela a papéis pouco edificantes.
         Havia, em Pelotas, feiticeiros espíritas falsificados, falsos sacerdotes, médicos charlatães, etc. que, agindo com o maior descaramento e com a mais deslavada pouca vergonha.  Iam ganhando fartamente a vida, à revelia da polícia e, por consequência, da justiça.
         Havia, também, no bas-fond de Pelotas as feiticeiras denominadas de fazedoras de anjos, as quais se dedicavam ao caftismo e também as que se encarregavam de provocar abortos.
         Todos eles, dizia o jornalista, estavam incursos nas penas da lei.
         Havia, em poder do jornalista, garrafas de “remédios” fornecidas pelos intrujões, das quais análise química ele iria mandar proceder.
         O artigo 157 previa a prática do espiritismo, magia, uso de talismãs e cartomancias, para despertar sentimentos de ódio e amor        , a aplicação das penas de um a seis meses de prisão e multa de 100$000 a 500$000.
         Para levar a cabo a completa reportagem, prestou-se o repórter a fazer o papel de cliente de toda a espécie.
         E assim, vamos encontrá-lo:


No “templo” do famoso explorador Eusébio

         Um mulatão nédio [reluzente], moço, forte, que tinha a sua tenda à Rua 3 de Maio nº254, da qual extraía os maiores e melhores proveitos em dinheiro e os mais fartos pitéus em nome e benefício dos “santos”, os quais ele tinha de sustentar todas as sextas-feiras.
         Parado em frente ao número indicado da 3 de Maio, deparou-se o repórter com uma casa de boa aparência, limpa por fora e aparentando uma agradável residência, o que o deixou indeciso quanto a ser ou não, ali, o “antro do mandingueiro”.
         Bateu ele de forma decidida. Instantes de espera, e depois atendido.
         Ao encontro do jornalista veio uma mulher negra, de idade avançada, gorda, flácida, reluzente, expressão tranquila e irônica na fisionomia patusca [divertida, cômica, brincalhona], limpa, tirando grandes tragadas de um cigarro de papel, procurando estender a frase “com o acento demorado das lendárias senhoras de engenho”.
         - É aqui que mora o Sr. Eusébio? – indagou o jornalista.
         - Que quer com o Sr. Eusébio? – perguntou a interlocutora, sem ter respondido a pergunta, mas que, de forma indireta, o deixou com a certeza de que não se enganara de endereço.
         E, com toda a habilidade, transformou-se ele, aos olhos da mulher, em um dos muitos ingênuos que formavam a vasta clientela do feiticeiro.
         Fazendo-se de vítima de um mal secreto que o atormentava e fazendo crer que ali estava convencido de que todos os manipansos conhecidos e por conhecer é que os haviam inspirado a procurar o sacerdote dos mistérios insondáveis “da magia e da canalhice”.
         Não demorou muito para que ela o julgasse, de fato, um cliente sincero, e confessou que o Eusébio que ele buscava era o que ali morava, capaz de com suas orações e exorcismos lhe tirar o “bruxedo” do corpo.
         Mas, o famoso curandeiro não estava em casa, pois havia viajado para a cidade vizinha, Rio Grande, para atender a um chamado.
         A fama do intrujão era conhecida, também, na cidade de Rio Grande.
         Paciencioso, o jornalista disse a ela que voltaria no dia seguinte.


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Fonte de pesquisa: Bibliotheca Pública de Pelotas/CDOV
 Revisão do texto: Jonas Tenfen

Postagem: Bruna Detoni

quarta-feira, 1 de março de 2017

Eusébios: três feiticeiros da pequena África pelotense
 (parte 2)


         Cândida e sua filha Brandina acusaram Eusébio de praticar a feitiçaria e de viver à custa da exploração feita a pobres mulheres, que moravam em sua companhia.

        
      Acrescentaram elas que o dinheiro ganho por aquelas mulheres, em seus empregos, era por ele usufruído.
         Segundo as duas “pretas”, a casa de Eusébio Silva era um verdadeiro “museu de feitiçaria”.
         De acordo com informações colhidas pelo jornalista, na casa de Eusébio, que ficava no centro da cidade, realizavam-se seguidamente batuques, os quais, não raro, acabavam em grosso sarilho.
         Cândida tinha mais duas filhas menores, Palmira e Maria Emília, as quais se achavam em companhia de Eusébio.
         Em seguida que as filhas de Cândida estiveram no 1º posto, este comunicou a denúncia ao 3º posto, a cuja circunscrição estava afeto o caso.
         Na Rua General Argolo nº 456, estiveram dois guardas do 3º posto, para tomarem conhecimento do fato.
         Cândida foi intimada a prestar depoimento naquele posto policial.
         No dia seguinte ao ocorrido, voltava o jornal A Opinião Pública a trazer  novas notícias sobre o fato. Informava que o “preto Eusébio”, morador à Rua Andrade Neves nº861 e contra quem a “infeliz preta” Cândida Silva se queixara de tê-la espancado brutalmente, fora preso pelo Sr. tenente Francisco Vernetti, subintendente do 1º distrito.
         Na residência de Eusébio, foi encontrado um verdadeiro arsenal de bugigangas que serviam, segundo o jornal, para confirmar as informações recebidas de que “aquele indivíduo exercia a feitiçaria”.
         Entre esses objetos achavam-se dois bonecos, aos quais Eusébio dava o nome “de São Cosme e São Damião”, além de outro, maior, chamado Santo Antônio.
         O Sr. tenente Vernetti apreendeu tais objetos, fazendo recolher o “feiticeiro” ao 3º posto.
         Dali, foi Eusébio removido para o 6º posto policial, no Areal.
         São Cosme e São Damião que o valessem, finalizava o jornalista.
         Aos 20 dias do mês de dezembro de 1912, o jornal a Opinião Pública referindo-se a Eusébio, denominando-o de curandeiro manque [fracassado, charlatão], dizia que este estava se tornando cada vez mais célebre pelas suas façanhas, arvorando-se em curandeiro.
         Informava a matéria, que há algum tempo, enfermava no lugar conhecido como Passo do João Padre, pouco além do Monte Bonito, a mulher do pardo Paulo de tal, empregado na turma de operários da estrada da colônia Santo Antônio.
         Agravando-se os padecimentos da referida mulher, Paulo trouxe-a para a cidade, a fim de consultar um médico.
         Aqui chegando, Paulo foi levado à casa do “patife curandeiro”, o qual lhe pediu a importância de 40$000 [réis], uma cabrita e uma ovelha, bem gordas, dizendo que com o sangue destes animais ele faria o remédio para curar a enferma.
         Paulo tratou, em seguida, de providenciar, conseguindo com grande sacrifício a importância, a cabrita e a ovelha.
         Eusébio, segundo o jornalista, naturalmente guardou os bichos para festejar o Natal, realizando em sua casa batuques, que tanto incomodavam a vizinhança.
         Depois de ingerir o remédio fornecido pelo “explorador”, a infeliz mulher” começou a manifestar sintomas de loucura.
         O fato foi levado ao conhecimento do capitão Francisco Vernetti, subintendente, que mandou intimar Eusébio, que viajara para Rio Grande.
         Com aquele ocorrido, dizia o jornal, era o terceiro ou quarto fato grave, cometido por Eusébio, a quem aquela autoridade deveria dar o castigo merecido.
         A última notícia encontrada sobre o nosso personagem, nos vem através do jornal O Rebate de 21 de dezembro de 1917, na qual sob a denominação de “Queixa”, nos é informado que o Sr. Gabriel Barcellos, residente à Rua Marquês de Caxias [atual Rua Santos Dumont] nº 570, apresentara, naquele dia, queixa na delegacia de polícia contra o “curandeiro” Eusébio Silva dizendo que, tendo “há dias” falecido um homem de “cor preta”, que morava próximo a sua residência, o qual durante a sua enfermidade fora cliente do “referido curandeiro” e este, como uma formalidade da sua “maneira de tratar”, despiu o cadáver e jogou todas as vestes deste, bem como roupa de cama, colchão e travesseiros, em um poço ali existente, e de onde todos os moradores daquelas imediações se abasteciam de água.
         Dias depois, por acaso, descobriram “essas imundícies” no citado poço, pois, tendo caído um balde ali e alguém tratando de apanhá-lo, ao invés de pegar o balde começou a recolher as vestes que pertenceram ao cliente de Eusébio, vindo então a descobrirem o ocorrido.
         Já era muita falta de escrúpulo, dizia o jornal.
                                                                                                      
                                                                                                                                                                                                     Continua...
                           
        
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Fonte de pesquisa: Bibliotheca Pública de Pelotas/CDOV
 Revisão do texto: Jonas Tenfen

Postagem: Bruna Detoni