RS e Pelotas na obra de Machado de AssisParte 04
A. F. Monquelat [revisão]
Jonas Tenfen
Começamos,
com este texto, a segunda parte da presente série. Depois de esquadrinharmos as
crônicas de Machado de Assis atrás de referências ao estado do Rio Grande do
Sul, passamos a analisar a obra do bruxo do Cosme Velho atrás de referências à
cidade de Pelotas. Há uma referência bastante popular e conhecido, e há várias
pouco estudadas.
Primeiramente,
uma alusão que pode ser Pelotas. Em 8 de dezembro de 1861, teve início as
crônicas do Dr. Semana – a saber, um pseudônimo de Machado de Assis, publicadas
pela Semana Ilustrada. Aqui um exemplo da ironia, pois o médico “tem a honra de
participar ao respeitável público, que se acha nesta corte, onde fixou sua residência,
pronto sempre a ministrar aos necessitados os socorros de sua infalível
ciência”: a escrita.
Em
carta ao Imperador da China, nas Calendas de abril de 1864, o Dr. Semana fala
de seus dotes linguísticos:
“Celestial Senhor. — Pretendia escrever a Vossa
Obesidade na linguagem de Confúcio, visto como sou poliglota superior a Pico de
laMirandola e ao cardeal Mezzofante.
V. O. deve de saber que, em questões de línguas, nada
tenho de invejar às charqueadas do Rio Grande do Sul.
Gorou-me, porém, o desejo a falta de tipos chineses
neste império de terrícolas, aonde há multiplicidade de outros tipos; e é por
isso que escrevo a V. O. no idioma português, ainda hoje falado pelos gafanos
da Goa luso-chinesa. “
Destacamos
que é uma alusão, não referência, pois é erro histórico supor que só se
produziu charque, e em quantidade, na cidade de Pelotas durante o período.
Contudo, cruzando este dado com as demais obras do escritor, vemos a tendência
dele se referir a Pelotas como cidade de muito dinheiro e cosmopolita, mesmo
não sendo capital da província.
As
crônicas “Bons dias!”, que começavam com esta saudação e encerravam com “Boas
noites”, foram publicadas pela Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, entre
1888 e 1889. Sobre uma declaração em um discurso, Machado de Assis cita Pelotas
em uma conversa fictícia, em crônica de 19 de julho de 1888:
“Não indo mais
longe, acabo de ler no discurso do Sr. Senador Leão Veloso uma frase, que, se
eu estivesse em Tunes, não lhe perderia o sentido. S. Exa. declarou que a
vitaliciedade do cargo não o segregou daqueles que o elegeram. Ora, os que o
elegeram vão morrendo e hão de ir morrer todos, como já devem ter morrido os
que elegeram o Sr. Visconde do Serro Frio. Como é que não há segregação? Há e é
uma das vantagens da instituição. Se em 1871 os Srs. Silveira Martins e Barão
de Mauá fossem vitalícios, não haveria o recurso aos eleitores, que pôs o Sr.
Mauá fora da Câmara. Quando o primeiro desafiasse o segundo a irem pleitear
ante os eleitores liberais o procedimento de ambos, responderia o Sr. Mauá:
— Mas, meu
caro colega, os meus eleitores estão mortos. Há dois dias vivia o Bandeira, de
Pelotas; pois morreu, aqui está o telegrama, que recebi agora mesmo da família.
Sabe que somos velhos conhecidos...”
A
referência mais famosa e corriqueira à cidade de Pelotas está no romance
“Quincas Borba”, publicado em 1892 pela Garnier. Embora já relatado por Mário
Osório Magalhães, em “Pelotas: toda a prosa”, segundo volume, citaremos aqui os
capítulos CXVIII e CXX.
Capítulo
CXVIII:
“— Vamos para lá, que lhe arranjarei casamento, disse ela. Conheço uma
moça de Pelotas, que é um bijou, e só casa com moço da Corte.
— Comigo, naturalmente?
— Da Corte e de olhos grandes. Olhe que não estou brincando. É uma
guasca de primeira ordem. Tenho aqui o retrato dela.
D. Fernanda abriu o álbum e mostrou o retrato da pessoa.
— Não é feia, concordou ele.
— Só?
— Sim, é bonita.
— Onde é que você bota os seus chinelos velhos, primo?
Carlos Maria sorriu sem responder; não gostou da expressão. Quis passar
a outro assunto. Mas D. Fernanda tornou ao casamento da amiga de Pelotas.
Mirava o retrato, coloria-o de palavras, dizendo como eram os olhos, os
cabelos, a tez; e depois fez uma pequena biografia de Sonora. Tinha este bonito
nome. O padre que a batizou hesitou em dar-lho, apesar do respeito e influência
do pai da menina, rico estancieiro; mas, afinal cedeu, considerando que as
virtudes da pessoa podiam levar o nome ao rol dos santos.
— Crê que ela vá ao rol dos santos? perguntou Carlos Maria.
— Se casar com você, creio.
— Não me explica nada; casando com o diabo sucederá a mesma coisa, e com
mais certeza, por causa do martírio. Santa Sonora, não é feio nome, responde
bem ao sentido. Santa Sonora... Em todo caso, prima...
— Você tem raça de judeu; cale-se, interrompeu ela. Recusa então a minha
guasca? continuou indo pôr o álbum no seu lugar.
— Não recuso; deixe-me ir indo com o meu celibato, que é meio caminho do
Céu.
D. Fernanda soltou uma gargalhada.
— Deus de misericórdia! Você acredita mesmo que vai para o Céu?
— Já cá estou, há vinte minutos. Pois que é esta sala, tranqüila,
fresca, tão longe da gente que anda lá fora? Aqui conversamos os dois, sem
ouvir blasfêmias, sem aturar espíritos aleijados, tísicos, escrofulosos,
insuportáveis, o próprio Inferno, em suma. Aqui é o Céu, — ou um pedaço do Céu;
uma vez que nós cabemos nele, vale pelo infinito. Conversamos de Santa Sonora,
de São Carlos Maria e de Santa Fernanda, que para contrastar com São Gonçalo,
fez-se casamenteira das moças. Onde é que há outro céu como este?
— Em Pelotas.
— Pelotas fica tão longe! suspirou ele estendendo as pernas e pondo os
olhos no lustre da sala.
— Está bom, é só a primeira investida; darei outras, até você acabar de
querer. “
E capítulo CXX:
“— Iria eu só, se pudesse ser, para lhe dar uma notícia muito comprida.
— Vamos então devagar, disse Carlos Maria à porta da igreja,
oferecendo-lhe o braço. E dois passos adiante: — Notícia importante?
— Importante e deliciosa.
— Querem ver que Deus, sempre misericordioso, vai levar para si o nosso
querido Teófilo, deixando aqui ao desamparo a mais gentil de todas as viúvas...
Não precisa fazer essa cara, prima; deixe estar o braço. Vamos à notícia.
Chegou a moça de Pelotas, aposto?
— Não direi o que é, se você me não jurar ouvir seriamente.
— Seriamente.
D. Fernanda confessou-lhe que hesitava em casá-lo com a patrícia de
Pelotas; não queria remorsos; descobrira aqui alguém que tinha ao primo um
imenso amor. Carlos Maria sorriu, iniciou um gracejo, mas a notícia
esporeou-lhe o espírito. Imenso amor? Imenso amor, paixão violenta, confirmou a
prima, acrescentando que talvez a definição já não coubesse bem ao atual
sentimento da pessoa. “
Rubião
herdou de seu mestre de filosofias um cachorro e uma herança bastante
significativa. Humor machadiano, tanto o mestre quanto o cachorro levavam o
nome Quincas Borba, bem como o romance. Cansado da vida em Barbacena, Minas
Gerais, Rubião se muda para a corte onde passa os dias dando almoços e
distribuindo charutos, frequentando jantares, patrocinando jornais e políticos,
nutrindo amores por uma mulher casada. A ideia de D. Fernanda (destaque para o
uso do termo “guasca”) de casá-lo com uma prima esbarra no mote machadiano de
os personagens darem desculpas ruins para se evadirem de casamentos. Desde “Porque
bela, se coxa, porque coxa, se bela?”até “Pelotas é tão longe”.
No
próximo capitulo, último da série, um conto machadiano que se passa em Pelotas.
Continua...
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Fonte: há muitas obras completas
de Machado de Assis disponíveis online, para este texto utilizamos o site
Domínio Público (domíniopublico.gov.br). A imagem da pintura de Debret é Wikicommons.a
foto da coleção do Globo das Obras Completas é de autoria de Jonas Tenfen, a
foto de Machado de Assis e Joaquim Nabuco está disponível no site Brasil
Escola.