quarta-feira, 27 de novembro de 2019

RS e Pelotas na obra de Machado de Assis Parte 04


RS e Pelotas na obra de Machado de AssisParte 04


A. F. Monquelat [revisão]
Jonas Tenfen




            
            Começamos, com este texto, a segunda parte da presente série. Depois de esquadrinharmos as crônicas de Machado de Assis atrás de referências ao estado do Rio Grande do Sul, passamos a analisar a obra do bruxo do Cosme Velho atrás de referências à cidade de Pelotas. Há uma referência bastante popular e conhecido, e há várias pouco estudadas.
            Primeiramente, uma alusão que pode ser Pelotas. Em 8 de dezembro de 1861, teve início as crônicas do Dr. Semana – a saber, um pseudônimo de Machado de Assis, publicadas pela Semana Ilustrada. Aqui um exemplo da ironia, pois o médico “tem a honra de participar ao respeitável público, que se acha nesta corte, onde fixou sua residência, pronto sempre a ministrar aos necessitados os socorros de sua infalível ciência”: a escrita.
            Em carta ao Imperador da China, nas Calendas de abril de 1864, o Dr. Semana fala de seus dotes linguísticos:
“Celestial Senhor. — Pretendia escrever a Vossa Obesidade na linguagem de Confúcio, visto como sou poliglota superior a Pico de laMirandola e ao cardeal Mezzofante.
 
V. O. deve de saber que, em questões de línguas, nada tenho de invejar às charqueadas do Rio Grande do Sul.
 
Gorou-me, porém, o desejo a falta de tipos chineses neste império de terrícolas, aonde há multiplicidade de outros tipos; e é por isso que escrevo a V. O. no idioma português, ainda hoje falado pelos gafanos da Goa luso-chinesa. “
           
            Destacamos que é uma alusão, não referência, pois é erro histórico supor que só se produziu charque, e em quantidade, na cidade de Pelotas durante o período. Contudo, cruzando este dado com as demais obras do escritor, vemos a tendência dele se referir a Pelotas como cidade de muito dinheiro e cosmopolita, mesmo não sendo capital da província.
            As crônicas “Bons dias!”, que começavam com esta saudação e encerravam com “Boas noites”, foram publicadas pela Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, entre 1888 e 1889. Sobre uma declaração em um discurso, Machado de Assis cita Pelotas em uma conversa fictícia, em crônica de 19 de julho de 1888:
“Não indo mais longe, acabo de ler no discurso do Sr. Senador Leão Veloso uma frase, que, se eu estivesse em Tunes, não lhe perderia o sentido. S. Exa. declarou que a vitaliciedade do cargo não o segregou daqueles que o elegeram. Ora, os que o elegeram vão morrendo e hão de ir morrer todos, como já devem ter morrido os que elegeram o Sr. Visconde do Serro Frio. Como é que não há segregação? Há e é uma das vantagens da instituição. Se em 1871 os Srs. Silveira Martins e Barão de Mauá fossem vitalícios, não haveria o recurso aos eleitores, que pôs o Sr. Mauá fora da Câmara. Quando o primeiro desafiasse o segundo a irem pleitear ante os eleitores liberais o procedimento de ambos, responderia o Sr. Mauá:
— Mas, meu caro colega, os meus eleitores estão mortos. Há dois dias vivia o Bandeira, de Pelotas; pois morreu, aqui está o telegrama, que recebi agora mesmo da família. Sabe que somos velhos conhecidos...”

            A referência mais famosa e corriqueira à cidade de Pelotas está no romance “Quincas Borba”, publicado em 1892 pela Garnier. Embora já relatado por Mário Osório Magalhães, em “Pelotas: toda a prosa”, segundo volume, citaremos aqui os capítulos CXVIII e CXX.


Capítulo CXVIII:

— Vamos para lá, que lhe arranjarei casamento, disse ela. Conheço uma moça de Pelotas, que é um bijou, e só casa com moço da Corte.

— Comigo, naturalmente?

— Da Corte e de olhos grandes. Olhe que não estou brincando. É uma guasca de primeira ordem. Tenho aqui o retrato dela.

D. Fernanda abriu o álbum e mostrou o retrato da pessoa.

— Não é feia, concordou ele.

— Só?

— Sim, é bonita.

— Onde é que você bota os seus chinelos velhos, primo?

Carlos Maria sorriu sem responder; não gostou da expressão. Quis passar a outro assunto. Mas D. Fernanda tornou ao casamento da amiga de Pelotas. Mirava o retrato, coloria-o de palavras, dizendo como eram os olhos, os cabelos, a tez; e depois fez uma pequena biografia de Sonora. Tinha este bonito nome. O padre que a batizou hesitou em dar-lho, apesar do respeito e influência do pai da menina, rico estancieiro; mas, afinal cedeu, considerando que as virtudes da pessoa podiam levar o nome ao rol dos santos.

— Crê que ela vá ao rol dos santos? perguntou Carlos Maria.

— Se casar com você, creio.

— Não me explica nada; casando com o diabo sucederá a mesma coisa, e com mais certeza, por causa do martírio. Santa Sonora, não é feio nome, responde bem ao sentido. Santa Sonora... Em todo caso, prima...

— Você tem raça de judeu; cale-se, interrompeu ela. Recusa então a minha guasca? continuou indo pôr o álbum no seu lugar.

— Não recuso; deixe-me ir indo com o meu celibato, que é meio caminho do Céu.

D. Fernanda soltou uma gargalhada.

— Deus de misericórdia! Você acredita mesmo que vai para o Céu?

— Já cá estou, há vinte minutos. Pois que é esta sala, tranqüila, fresca, tão longe da gente que anda lá fora? Aqui conversamos os dois, sem ouvir blasfêmias, sem aturar espíritos aleijados, tísicos, escrofulosos, insuportáveis, o próprio Inferno, em suma. Aqui é o Céu, — ou um pedaço do Céu; uma vez que nós cabemos nele, vale pelo infinito. Conversamos de Santa Sonora, de São Carlos Maria e de Santa Fernanda, que para contrastar com São Gonçalo, fez-se casamenteira das moças. Onde é que há outro céu como este?

— Em Pelotas.

— Pelotas fica tão longe! suspirou ele estendendo as pernas e pondo os olhos no lustre da sala.

— Está bom, é só a primeira investida; darei outras, até você acabar de querer. “

E capítulo CXX:
“— Iria eu só, se pudesse ser, para lhe dar uma notícia muito comprida.

— Vamos então devagar, disse Carlos Maria à porta da igreja, oferecendo-lhe o braço. E dois passos adiante: — Notícia importante?

— Importante e deliciosa.

— Querem ver que Deus, sempre misericordioso, vai levar para si o nosso querido Teófilo, deixando aqui ao desamparo a mais gentil de todas as viúvas... Não precisa fazer essa cara, prima; deixe estar o braço. Vamos à notícia. Chegou a moça de Pelotas, aposto?

— Não direi o que é, se você me não jurar ouvir seriamente.

— Seriamente.

D. Fernanda confessou-lhe que hesitava em casá-lo com a patrícia de Pelotas; não queria remorsos; descobrira aqui alguém que tinha ao primo um imenso amor. Carlos Maria sorriu, iniciou um gracejo, mas a notícia esporeou-lhe o espírito. Imenso amor? Imenso amor, paixão violenta, confirmou a prima, acrescentando que talvez a definição já não coubesse bem ao atual sentimento da pessoa. “



            Rubião herdou de seu mestre de filosofias um cachorro e uma herança bastante significativa. Humor machadiano, tanto o mestre quanto o cachorro levavam o nome Quincas Borba, bem como o romance. Cansado da vida em Barbacena, Minas Gerais, Rubião se muda para a corte onde passa os dias dando almoços e distribuindo charutos, frequentando jantares, patrocinando jornais e políticos, nutrindo amores por uma mulher casada. A ideia de D. Fernanda (destaque para o uso do termo “guasca”) de casá-lo com uma prima esbarra no mote machadiano de os personagens darem desculpas ruins para se evadirem de casamentos. Desde “Porque bela, se coxa, porque coxa, se bela?”até “Pelotas é tão longe”.
            No próximo capitulo, último da série, um conto machadiano que se passa em Pelotas.



Continua...

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Fonte: há muitas obras completas de Machado de Assis disponíveis online, para este texto utilizamos o site Domínio Público (domíniopublico.gov.br). A imagem da pintura de Debret é Wikicommons.a foto da coleção do Globo das Obras Completas é de autoria de Jonas Tenfen, a foto de Machado de Assis e Joaquim Nabuco está disponível no site Brasil Escola.

quarta-feira, 20 de novembro de 2019

RS e Pelotas na obra de Machado de Assis Parte 03


RS e Pelotas na obra de Machado de AssisParte 03


A. F. Monquelat [revisão]
Jonas Tenfen

 
O vidigal diante da casa de Vidinha, de Firmino Monteiro (1880)

Continuemos em 1894. Em 25 de novembro, Machado de Assis começa sua crônica com um longo debate filológico sobre as origens e grafias para a palavra piquenique (aqui, na grafia contemporânea, sem o hífen, o que seria o horror para o autor). Depois de contrapor opiniões de Caldas Aulete e Castro Lopes (o suposto criador da palavra “convescote”), Machado debate a origem da palavra “mentira” depois entra em um caso ocorrido na semana. Em reunião do Conselho Municipal, no Rio de Janeiro, capital do Brasil à época, apareceu hasteada a bandeira do positivismo: hasteamento discreto e anônimo que ouriçou os humores. Aqueles que consideraram o ato odioso lembram que foi o positivismo a origem da revolução em RS. Por fim, a conclusão do cronista sobre a origem da bandeira:

“De resto, a agitação é sinal de vida e melhor é que o Conselho se agite que durma. Esta semana o caso da bandeira, que é um dos mais graciosos, agitou bastante a alma municipal. Se o leste, é inútil contar; se o não leste,é difícil. Refiro-me à bandeira que apareceu hasteada na sala das sessões do Conselho, em dia de gala, sem se saber o que era nem quem a tinha ali posto. Pelo debate viu-se que a bandeira era positivista e que um empregado superior a havia hasteado, depois de consentir nisso o presidente. O presidente explicou-se. Um intendente propôs que a bandeira fosse recolhida ao Museu Nacional, por ser “obra de algum merecimento”. Outro chamou-lhe trapo. O positivismo foi atacado. Crescendo o debate, alargou-se o assunto e as origens da revolução do Rio Grande do Sul foram achadas no positivismo, bem como a estátua de Monroe e um episódio do asilo de mendicidade.”
[...] 
“A bandeira não teve destino, foi a conclusão de tudo, e não ser de admirar que torne a aparecer no primeiro dia de gala, para dar lugar a nova discussão, — coisa utilíssima, pois da discussão nasce a verdade. Para mim, a bandeira caiu do céu. Sem ela esta página que começou pedante, acabaria ainda mais pedante.”


Iniciemos 1895. Em 11 de agosto, uma crônica que reuniu colagem de impressões e leituras, crítica velada ao poder das letras. Do estado do Rio Grande do Sul, a menção a uma figura do senado:

“A impressão de que falei, vem de anos longos. Desde muito morrera Paraná e já se aproximava a queda dos conservadores, por intermédio de Olinda, precursor da ascensão de Zacarias. Ainda agora vejo Nabuco, já senador, no fim da bancada da direita, ao pé da janela, no lugar correspondente ao em que ficava, do outro lado, o Marquês de Itanhaém, um molho de ossos e peles, trôpego, sem dentes nem valor político. Zacarias, quando entrou para o Senado foi sentar-se na bancada inferior à da Nabuco. Eis aqui Eusébio de Queirós, chefe dos conservadores, respeitado pela capacidade política, admirado pelos dotes oratórios, invejado talvez pelos seus célebres amores. Uma grande beleza do tempo andava desde muito ligada ao seu nome. Perdoe-me esta menção. Era uma senhora alta, outoniça... São migalhas da história, mas as migalhas devem ser recolhidas. Ainda agora leio que, entre as relíquias de Nélson, coligidas em Londres, figuram alguns mimos da formosa Hamilton. Nem por se ganharem batalhas navais ou políticas se deixa de ter coração. Jequitinhonha acaba de chegar da Europa, com os seus bigodes pouco senatoriais. Lá estavam Rio Branco, simples Paranhos, no centro esquerdo, bancada inferior, abaixo de um senador do Rio Grande do Sul, como se chamava? — Ribeiro, um que tinha ao pé da cadeira, no chão atapetado, o dicionário de Morais e o consultava a miúdo, para verificar se tais palavras de um orador eram ou não legítimas; era um varão instruído e lhano. Quem especificar mais? São Vicente, Caxias, Abrantes, Maranguape, Cotegipe, Uruguai, ltaboraí, Otoni, e tantos, tantos, uns no fim da vida, outros para lá do meio dela, e todo presididos pelo Abaeté, com os seus compridos cabelos brancos.”
           
A figura cujo nome estava incompleto e não mereceu machadianamente uma pesquisa para contrapor a lacuna da memória era José de Araújo Ribeiro, Visconde de Rio Grande (1800 – 1879). Herdeiro de charqueada, advogado, escritor e diplomata, foi neste último campo que possuiu mais relevo reorganizando as relações diplomáticas entre Brasil e Portugal depois da Independência, por exemplo.

Machado de Assis
Em 18 de agosto, uma crônica sobre a escalada da violência urbana. O mote inicial fora o tiro no pé que acidentalmente vitimara um ex-presidente do Uruguai, Sr. Herrera y Obes: o revólver que trazia no bolso disparou enquanto assistia a uma peça de teatro. Do revólver no descuidado bolso uruguaio, para o uso do revólver no Brasil, em contraposição da navalha, uma descrição da violência crescente na cidade do Rio de Janeiro e a boa lembrança de tempos antigos: “Tempo houve em que esta boa cidade dormia com as janelas abertas e as portas apenas encostadas. Não se andava na rua, à noite. O painel do nosso Firmino Monteiro mostra-nos o famoso Vidigal e dois soldados interrogando um tocador de viola. As noites eram para as serenatas, e ainda assim até certa hora. O capoeira ia surgindo; multiplicou-se; fez-se ofício, arte ou distração...”
            A crônica trata da defesa da vida e da propriedade que, afinal, era o que importava. RS aparece como um exemplo, uma frase rápida, mostrando desdobramentos do encerramento da Federalista: “Sem querer, estou falando da vida e da propriedade, e suas garantias, que é o assunto que se examina agora no Rio Grande do Sul. O mundo afinal reduz-se a isto”. É hábito antigo da mídia brasileira reclamar para o endurecimento das leis, aumento da força policial e expansão da repressão como forma efetiva de garantir a paz na sociedade.
              Em 1 de março de 1896, crônica com notícias do fim da Federalista. Peça literária importante para quem se interessa por este episódio da história do Brasil:

“Um dia acabou a revolta, — ramal ou prolongamento da revolução do Rio Grande do Sul, que também acabou. Petrópolis, lá de cima, espiou cá para baixo e, vendo tudo em paz segura, sarou de repente. Achou-se, é certo, convertida em capital de um Estado, único prêmio (salvo alguns discursos e artigos) que a triste Praia Grande colheu do combate de 9 de fevereiro. Não contesto que os Estados devam andar asseados e mudar de capital como nós de camisa; mas, enfim, a velha Praia Grande pode suspeitar que foi por estar manchada de sangue que a degradaram, quando a verdade é que a troca de capital não nasceu senão de um sentimento de elegância muito respeitável. O que a pode consolar é que Petrópolis não tem vocação administrativa nem política. Naturalmente faz que não vê o governador do Estado, não ouve nem lê os discursos da assembleia, e trata de se refazer e continuar o que dantes era.”

O fim da federalista foi o fim da atenção do cronista Machado de Assis sobre o Rio Grande do Sul, pelo menos nas folhas de “Gazeta de Notícias”. Cabe-nos agora discutir Pelotas na obra do escritor, que pode ser percebida na crônica...

Continua...

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Fonte: há muitas obras completas de Machado de Assis disponíveis online, para este texto utilizamos o site Domínio Público (domíniopublico.gov.br). A imagem de Machado de Assis é Wikicommons. O quadro de Firmino Monteiro, com excelente texto sobre, está disponível no site do Itaú Cultural (http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra19942/o-vidigal-diante-da-casa-de-vidinha).


quarta-feira, 13 de novembro de 2019

RS e Pelotas na obra de Machado de Assis Parte 02


RS e Pelotas na obra de Machado de AssisParte 02



A. F. Monquelat [revisão]
Jonas Tenfen
 

            Continuemos em 1892. Em 14 de agosto, o estado do Rio Grande do Sul é cenário, mencionando uma anedota casuística ocorrida com Honório Bicalho, engenheiro responsável, entre outras obras, pela Estrada de Ferro Pedro II. O processo mental que leva até o cenário que é indicativo das ideias que o autor possuía sobre o estado. Naquela semana, houve parte do debate no Senado Federal sobre a permissão ou não da imigração chinesa – dentre outros temas envolvendo a ocupação da terra. Os assuntos vão sendo concatenados, por fim o Rio Grande do Sul como palco para uma população que estava no Brasil, mas não eram brasileiros:

E aí estão quatro tiras escritas, e aqui vai mais uma, cujo assunto não sei bem qual seja, tantos são eles e tão opostos. Vamos ao Senado. O Senado discutiu o chim, o arroz, e o chá, e naturalmente tratou da questão da raça chinesa, que uns defendem e outros atacam. Eu não tenho opinião; mas nunca ouso falar de raças, que me não lembre do Honório Bicalho. Estava ele no Rio Grande do Sul, perto de uma cidade alemã. Iam com ele moças e homens a cavalo — viram uma flor muito bonita no alto de uma árvore, Bicalho ou outro quis colhê-la, apoiando os pés no dorso do cavalo, mas não alcançava a flor. Por fortuna, vinha da povoação um moleque, e o Bicalho foi ter com ele.

            Em 4 de dezembro, o ano se mostrava muito longe do fim. Um tema em especial deu protagonismo ao Rio Grande do Sul à pena de Machado de Assis: a Revolução Federalista (ocorrida entre 1893 – 1895). Lembrando que esta crônica é do ano anterior ao início da Revolução, vemos os desenhos dos motivos que acabariam por tornar belicoso os planos políticos. O primeiro parágrafo do texto trata de uma dúvida sobre como – ou melhor, qual – tema abordar para a crônica semana, quando o segundo:

Justamente o que ora me sucede. Toda esta semana falou-se na invasão do Rio Grande do Sul. Realmente, a notícia era grave, e, embora não se tivesse dado invasão, falou-se dela por vários modos. Alguns têm como iminente, outros provável, outros possível, e não raros a creem simples conjetura. Trouxe naturalmente sustos, ansiedade, curiosidade, e tudo o mais que aquela parte da República tem o condão de acarretar para o resto do país. Imaginei que era assunto legítimo para abrir as portas da crônica.

            Semana seguinte, a pena – que é da galhofa – volta a falar do estado, mas agora na figura de seus partidos. Depois de iniciar o texto falando do chupim (“chopim”, não grafia utilizada pelo autor), aborda

Outra questão complicada é (ornitologicamente falando) a dos pica-paus e dos vira-bostas, que são os nomes populares dos partidos do Rio Grande do Sul. Eu, quanto à política daquela região, sei unicamente um ponto, é que a Constituição política do Estado admite o livre exercício da medicina. Conquanto seja lei somente no Estado, não faltará quem deseje vê-la aplicada, quando menos ao distrito federal; eu, por exemplo. Neste caso, entendo que não se pode cumprir a notícia dada pelo Tempo de hoje, a saber, que vai ser preso um curandeiro conhecidíssimo, do qual é vítima uma pessoa de posição e popular entre nós.

            Inicia-se o ano de 1893. No dia 11 de fevereiro, debates sobre justiça, o vislumbre da pólvora que parecia querer estourar pelo Brasil, bombons de dinamite na casa do governador de São Paulo (“excelente produto da indústria local, que conseguiu reduzir um explosivo tão violento a simples doce de confeitaria.”), mas, em resumo, uma crônica sobre a paz. Várias províncias se mostravam em polvorosa, e na lista, o estado não ficaria de fora:

 Não falo de Pernambuco, nem do Rio Grande do Sul, nem das amazonas de Daomé, nem das danças de Madri, a que chamaram tumultos, por ignorância do espanhol, nem da Guaratiba, nem de tantas outras partes e artes, que são consolações da nossa humanidade triunfante.

            Em 9 de abril, uma nota sobre tentativa de lei para regulamentar o trabalho doméstico. O debate assume a direção de que a lei só terá efeito pelo medo que as pessoas terão da coerção, um tema bastante frequente nos debates ainda hoje. Falando em eficácia da lei, alguns parágrafos mais adiante:

Tudo isto quer dizer que a legislação, como a vida, é uma luta, cujo resultado obedece à influência mesológica. Oh! a influência do meio é grande. e vemos no Rio Grande do Sul? Combate-se e morre-se para derrocar e defender um governo. Venhamos a Niterói, mais próximo do teatro lírico. Trata-se de depor a intendência. Reúnem-se os autores e propugnadores da idéia, escrevem e assinam uma mensagem, nomeiam uma comissão, que sai a cumprir o mandato. A intendência, avisada a tempo, está reunida; talvez de casaca. A comissão sobe, entra, corteja, fala: [...]

            Em seguida, há algumas falas de uma cena teatral que, se não fosse tragédia, facilmente é identificável com comédia.
            Em 13 de agosto, desdobramentos da Federalista em Santa Catarina. Para ser mais exato, grande parte da crônica são as impressões da recepção de um telegrama deixado por Hercílio Luz, e amplamente divulgado por seus correligionários:

 Entre tantos sucessos desta semana, que valeu por quatro, um houve que principalmente me encheu o espírito. Foi a proclamação do ex-governador Hercílio, ao deixar o poder de algumas horas.
 Talvez o leitor nem saiba dela, tão certo é que os vencidos não merecem compaixão. Eu também não a li; não sei se é longa ou breve, nem em que língua é escrita, dado que os revolucionários fossem alemães, como disseram telegramas, — ou teuto-brasileiros, fórmula achada no Rio Grande do Sul para exprimir a dupla origem de alguns concidadãos nossos. Também ignoro se a proclamação ataca o poder federal, como fez um telegrama do próprio ex-governador. Propriamente, a minha questão não é política. A parte política só me ocupa, quando do ato ou do fato sai alguma psicologia interessante.
Talvez o leitor nem saiba dela, tão certo é que os vencidos não merecem compaixão. Eu também não a li; não sei se é longa ou breve, nem em que língua é escrita, dado que os revolucionários fossem alemães, como disseram telegramas, — ou teuto-brasileiros, fórmula achada no Rio Grande do Sul para exprimir a dupla origem de alguns concidadãos nossos. Também ignoro se a proclamação ataca o poder federal, como fez um telegrama do próprio ex-governador. Propriamente, a minha questão não é política. A parte política só me ocupa, quando do ato ou do fato sai alguma psicologia interessante.

            Chama atenção que ao cronista faltou tempo, e algum disciplina, para ler o telegrama, algo honestamente revelado nas linhas acima. Até mesmo Machado de Assis, sobre a história e política do Brasil, dedicou a alguns temas nada mais que uma orelhada.

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Fonte: há muitas obras completas de Machado de Assis disponíveis online, para este texto utilizamos o site Domínio Público (domíniopublico.gov.br). As imagens que ilustram o texto são Wikicommons.

quarta-feira, 6 de novembro de 2019

RS e Pelotas na obra de Machado de Assis Parte 01

RS e Pelotas na obra de Machado de Assis
Parte 01

A. F. Monquelat [revisão]
Jonas Tenfen

Gumercindo e Aparício Saraiva ao centro da foto

         
         Machado de Assis dedicou sua pena da galhofa aos mais variados gêneros literários, em especial ao conto, crítica literária, crônicas, poesia, romance e teatro. Debate longo se tradução seria ou não um gênero literário, contudo, o autor também ensaiara traduções (além do famoso “O Corvo”, de Edgar Alan Poe, também “Os trabalhadores do mar”, de Victor Hugo, e “Oliver Twist” de Charles Dickens, citando apenas dois). Nas obras completas, sempre incompletas, de Machado de Assis, costuma aparecer uma categoria no mínimo curiosa onde se põe tudo o que ele escreveu que não se classifica em gêneros propriamente ditos: miscelânea.
         Desenvolvemos mais um pouco a ideia de que as obras completas são sempre incompletas. Consta que o primeiro problema de xadrez escrito por um brasileiro tenha sido ideado por Machado de Assis, que apreciava muito a contenda de cavalos e bispos (da mesma forma que apreciava o jogo do bicho). O problema, publicado originalmente pela “Ilustração Brasileira”, foi compilado por Arthur Napoleão em sua “Caissana brasileira” (1898). Hoje há especulação sobre a personalidade – e sempre a genialidade – do Bruxo do Cosme Velho a partir de uma abordagem de um aspecto à margem de suas atividades.
            Parece que esta é a abordagem que se pode fazer atualmente à obra do autor escapando dos grandes temas, como se traiu ou não traiu. Como escreveu bastante – a coleção completa de sua obra pela Editora do Globo tem 31 volumes – é comum aos leitores e aos críticos se concentrarem em obras-chave, como a Trilogia Realista, para se relacionarem com o autor. Há muito, porém, que desse modo fica de lado.
           Quanto às menções ao Rio Grande do Sul, abordaremos aqui as 14 vezes que o estado é mencionado nas crônicas “A Semana”, publicadas pela Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, de 1892 a 1897, depois em 1900. Rio Grande do Sul figura quase sempre com belicosidade  afinal, as crônicas estão às voltas com a Revolução Federalista  e como não integrando totalmente o Brasil, em especial pela expressiva presença de imigrantes europeus que não falavam a língua portuguesa.
           As crônicas, quase sempre escritas em primeira pessoa, dão muito a entender do método de trabalho utilizado. São comentários de notícias que chegam ao autor por meio de telegrama. Por isso, há assuntos tão variados como o suicídio de uma bailarina russa ou o espanto de achar um esqueleto com algemas durante a demolição de uma casa. A ideia inicial é a de escolher um telegrama e dele fazer uma crônica, mas, rapidamente, tem-se um telegrama inicial – que é o mote do texto – para depois nos últimos parágrafos encontrarmos miscelânea de notícias que chegaram naquela semana, que dariam um texto, mas que acabaram no cesto do lixo por causa do espaço. O tempo, cronologicamente falando, se mostra algoz da musa, pois as notícias, com o advento do telegrama, envelheciam rápido.
          Comecemos por 1892. Em 26 de julho, a crônica é iniciada falando da demissão de um ministro grego, mote incontornável para se falar da literatura clássica e de seus desdobramentos e influências antes de chegar ao Brasil, onde há bulícios de revolução também na Bahia. 
Outro telegrama conta-nos que alguns clavinoteiros de Canavieiras (Bahia) foram a uma vila próxima e arrebataram duas moças. A gente da vila ia armar-se e assaltar Canavieiras. Parece nada, e é Homero; é ainda mais que Homero, que só contou o rapto de uma Helena: aqui são duas. Essa luta obscura, escondida no interior da Bahia, foi singular contraste com a outra que se trava no Rio Grande do Sul, onde a causa não é uma, nem duas Helenas, mas um só governo político. Apuradas as contas, vem a dar nesta velha verdade que o amor e o poder são as duas forças principais da Terra. Duas vilas disputam a posse de duas moças; Bagé luta com Porto Alegre pelo direito do mando. É a mesma Ilíada.
     Em 3 de julho, sobre as vésperas do dia de São Pedro, digressões sobre sinos das igrejas e carrilhões. É crônica de especial interesse para quem gosta de assuntos religiosos, pois é feita uma abordagem machadiana do espiritismo e da transmigração. Por mais que ocorram digressões 
voltemos ao carrilhão. Já referi que entrara na igreja, não contei; mas entende-se, que na igreja não entram revoluções, por isso não falo do Rio Grande do Sul.
Machado de Assis por Henrique Bernadeli, 1905
      
      Em 31 de julho, a crônica disserta sobre uma senhora que teve suas debêntures (espécie de título público) furtadas da bolsa. Machado acha interessante especular com títulos e monta uma estratégia de investimentos, sem esquecer a parte do santo em velas. Ao fim da crônica, uma nota sobre as constituições provinciais e a abordagem conhecida ao chimarrão: 
A rigor, devia acabar aqui; mas a notícia que acaba de chegar do Amazonas obriga-me a algumas linhas, três ou quatro. Promulgou-se a Constituição, e, por ela, o governador passa-se a chamar presidente do Estado. Com exceção do Pará e Rio Grande do Sul, creio que não falta nenhum. Sono tutti fattimarchesi. Eu, se fosse presidente da República, promovia a reforma da Constituição, para o único fim de chamar-me governador. Ficava assim um governador cercado de presidentes, ao contrário dos Estados Unidos da América, e fazendo lembrar o imperador Napoleão, vestido com a modesta farda lendária, no meio dos seus marechais em grande uniforme.
 Outra notícia que me obriga a não acabar aqui, é a de estarem os rapazes do comércio de São Paulo fazendo reuniões para se alistarem na guarda nacional, em desacordo com os daqui, que acabam de pedir dispensa de tal serviço. Questão de meio; o meio é tudo. Não há exaltação para uns nem depressão para outros. Duas coisas contrárias podem ser verdadeiras e até legítimas conforme a zona. Eu, por exemplo, execro o mate chimarrão, os nossos irmãos do Rio Grande do Sul acham que não há bebida mais saborosa neste mundo. Segue-se que o mate deve ser sempre uma ou outra coisa? Não; segue-se o meio; o meio é tudo.


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Fonte: há muitas obras completas de Machado de Assis disponíveis online, para este texto utilizamos o site Domínio Público (domíniopublico.gov.br). As imagens que ilustram o texto são Wikicommons.