sexta-feira, 30 de outubro de 2015

A modernização das charqueadas pelotenses

        
         O redator da Gazeta de Porto Alegre,  quando de sua visita a Pelotas, ano de 1880, logo fazendo publicar uma série de artigos nos quais descreve de forma otimista o progresso da cidade desde sua visita anterior, o que ocorrera na década de 60 do mesmo século.          Quase no final da descrição, diz ele haver  no entanto um lado escuro “neste quadro de luz e brilho...”: eram as charqueadas pelotenses, que constituíam a principal fonte de riqueza da “florescente cidade”e ainda trabalhavam nas mesmas condições  do começo daquele século.
         Nenhum dos modernos melhoramentos era ali adotado, fervia-se a graxa “hoje” como há 50 anos, em tinas de madeira, consumindo 36 horas num serviço que cilindros de ferro levariam de 5 (cinco) a 6 (seis) horas.
         Encerrando, se perguntava: “Quando teremos ocasião de noticiar algum progresso nesse ramo da indústria provincial?”. 
         Quatro anos antes da visita do jornalista da Gazeta de Porto Alegre, ano de 1876, Pelotas contava com 29 estabelecimentos de charqueada em funcionamento, quais sejam: Domingos Soares Barbosa, Wenceslau & Ribas, Cunha & Teixeira, Joaquim Rodrigues, Brutus & Evaristo, viúva Guilherme, Bernardino Almeida, Jacinto Antônio Lopes, Lúcio Lopes, Heleodoro Filho, Felisberto José Gonçalves Braga, Joaquim da Silva Tavares, Joaquim Rasgado, Porfírio Honório da Silva, João Gonçalves Lopes, Francisco Lobato, Barcelos & Irmão, João Maria Chaves, José Gonçalves Lopes, Joaquim José de Assumpção, Moreira & Campos, Francisco Costa, Evaristo & Gonçalves, José Simões Braga, Cunha & Belchior, visconde da Graça, barão de Butuí, Moreira & Neto e o de Antônio J. de A. Machado Filho.
         Dentre as charqueadas da época, pelo menos no período de 1875 a 1884, parece ter sido a de Junius Cássio Brutus de Almeida, filho de Domingos José de Almeida, se não a primeira uma das principais charqueadas de Pelotas; e, em função disso, vamos dar uma visita ao local e ver como estava, em janeiro de 1884, o estabelecimento do Sr. Junius Almeida, administrado por seu irmão, Sr. Bernardino Bráulio de Almeida.         A charqueada estava localizada na margem direita do Arroio Pelotas, no lugar denominado de Costa.
         O estabelecimento possuía duas (2) mangueiras, um curro [cercado junto ao gado] e um brete [lugar onde o boi era abatido].
         Logo em seguida estava a casa destinada a carnear, tendo próximo o galpão do charque, onde os quartos dos animais abatidos eram colocados em ganchos, tendo em frente os varais para o charque.
         Neste serviço, eram empregados quarenta e tantos homens entre escravos e livres.
         Ao pé, estava a casa da salga, tendo 5 (cinco) mesas para salgar e uma pilha de carne já preparada, empregando na salga 20 (vinte) homens.         Dali se passava para o galpão onde salgavam os couros, tendo logo à entrada um grande tanque para a salga, cabendo dentro deste entre 300 (trezentos) e 400 (quatrocentos) couros.
         Abaixo do tanque, ficavam as pilhas de couros já preparados, cabendo ali em torno de 12.000 (doze mil) couros prontos para embarque.
         No galpão da graxeira, havia 2 (dois) cilindros de fabricação nacional, procedentes da Fundição Dias.
         Havia um pequeno motor, também de fabricação nacional, para alimentar com água os cilindros.
         Ao pé, uma bomba aspirante movida à mão, que era utilizada nas ocasiões em que o pequeno motor estragava.
         Ao redor dos cilindros, estavam cinco grandes tinas de madeira para fabrico da graxa, cabendo em cada tina a ossamenta de 200 (duzentas) a 300 (trezentas) reses, onde gastavam de 36 (trinta e seis) a 40 (quarenta) horas para produzirem a graxa e, para tal, eram empregados 10 (dez) homens.
         Bem próximo, havia duas outras tinas, iguais , para o sebo, tendo ao lado destas dois tanques cimentados para lavagem desse.
         Havia um depósito de graxa refinada, onde tinha duas caldeiras de ferro, cabendo em cada cerca de 80 (oitenta) arrobas de sebo, e perto estavam os varais para dependurar as bexigas.
         O sebo não refinado era embarricado. Uma rês podia render de gorduras de 28 a 34 libras, e uma barrica comportava o peso de 14 a 16 gorduras de reses.
         Havia também uma prensa, de madeira, para extrair a graxa da carne cozida.
         Os ossos serviam para alimentar as fornalhas, evitando assim um enorme e dispendioso consumo de lenha. As cinzas eram aproveitadas.
         Passando-se a outro galpão, destinado à salga de carne, encontrava-se um tanque para salgar costelas e, próximo deste, no pátio anexo, havia outro tanque igual, cabendo em cada de 500 a 600 costelas. Estes tanques eram cimentados.
         No mesmo pátio, havia diversos tendais [varais nos quais se estendia o charque] onde ficavam os cavacos [pequenos pedaços de carne].
         Dali, se passava para o armazém do sal moído, que comportava no máximo 30 mil alqueires de sal e, desse, para o galpão do sal grosso, que tinha capacidade para armazenar 50 mil alqueires de sal.
         A atafona [engenho] para moer sal, era de fabricação nacional, feita de madeira e em Porto Alegre, e movida por um animal. Estava localizada perto do armazém de sal moído.
         A fim de simplificar, e tornar o serviço “agradável”, a charqueada tinha por toda a parte uma linha de trilhos cortando o terreno em diversas direções.
         Nos locais destinados à matança, ao charque, nas graxeiras e outras, havia canos de esgoto, que conduziam os detritos ao Arroio Pelotas, simplificando assim a limpeza, que era feita com frequência.
         O estabelecimento possuía 10 (dez) carroças com molas, 6 (seis) carroças de 2 (duas) rodas, que eram conduzidas à mão, e cerca de 20 carrinhos de mão, de 1(uma) só roda.
         Empregavam-se na charqueada 12 (doze) pessoas livres e 80 (oitenta) escravos.
         No pátio de entrada, existiam  2 (duas) grandes colunas de cimento e oito colunas de madeira, para colocar o charque, e varais para 1.600 reses.
         Em pequenos compartimentos, ficava a peça das ferramentas, o paiol dos mantimentos e o escritório.
         Num galpão próximo ao Arroio, havia uma prensa, para prensar carne em fardos de 4 arrobas cada, pelo sistema platino que podia enfardar, diariamente, 200 fardos e, neste serviço, era empregado 10 (dez) pessoas.
         Na época, ou pelo menos até janeiro de 1884, somente 2 (dois) estabelecimentos de charqueada possuíam tal prensa.
         Foi dito por todos aqueles que visitaram a Charqueda do Sr. Brutus de Almeida, que nela reinava o asseio e a presteza no serviço.
         Anualmente, eram ali abatidas de 20 a 27 mil reses.
         Tinha também naquela charqueada uma grande casa de moradia, cocheira, hospital para escravos, cozinha, senzalas e casa para o capataz.
         O Sr. Brutus Almeida estava contratando a construção de um cais de tijolos, onde facilmente atracariam os barcos que ali fossem carregar os mais diversos produtos.
          
                 
Fonte de consulta: Bibliotheca Pública Pelotense - CDOV
Revisão do texto: Jonas Tenfen        
Tratamento de imagem: Bruna Detoni

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

O projeto de branqueamento da mão de obra das charqueadas



            Pelotas, acompanhando as demais cidades de algumas províncias do Império, preocupada com a eminente e inevitável abolição da escravatura, tratou de procurar uma alternativa para substituir a mão de obra escrava até então utilizada em suas charqueadas, em uma clara disposição de não reaproveitamento do braço, que até então utilizara.
            Daí o Jornal do Comércio, em sua edição de 18 de agosto de 1880, diante da importante resolução tomada pelo então presidente da província, Sr. Dr. Henrique d’Ávila, ter publicado a resolução na íntegra, não sem antes manifestar sua satisfação em ver atendida “uma das mais sérias reclamações” da imprensa de Pelotas.
            Entendia aquele órgão da imprensa pelotense ser aquela uma das maiores preocupações; pois, o futuro da indústria saladeiril, com a extinção da escravatura, estaria fadado ao desaparecimento.
            Sendo o único meio de evitar tão desastroso futuro, era preciso criar trabalhadores aptos para aquele serviço. Não era, porém, aquilo fácil de ser realizado; pois, a criação de colônias próximas dos estabelecimentos de charqueadas, nas quais os colonos encontrassem trabalho, e assim fariam um aprendizado, habilitando-se para de futuro substituírem o braço do escravo, não poderia ser uma iniciativa particular.
            E, alertava o jornalista, quem soubesse das inúmeras despesas que tal iniciativa acarretaria aos charqueadores, já tão onerados de impostos, facilmente compreenderia os sacrifícios quase insuperáveis que lhes seria necessário transpor.
            Ao Sr. Dr. Henrique d’Ávila, que na presidência da província vinha prestando os mais relevantes serviços à causa pública, não poderiam passar despercebidas aquelas apreensões e os embaraços que estavam criando aos charqueadores.
            Por isso, fez baixar a seguinte portaria datada de 13 de agosto de 1880, e dirigida à câmara municipal de Pelotas: “Convindo criar uma colônia perto dessa cidade, que sirva ao mesmo tempo de centro agrícola e viveiro de trabalhadores para acudir às necessidades da importante indústria dessa cidade, e estando aberta a corrente de imigração espontânea, nos vindo constantemente a melhor qualidade de colonos nos vapores que chegam do Rio [de Janeiro], tornando necessário que vosmecês, consultando o cadastro existente em seu arquivo, e colhendo com cuidado e esmero informações, declarem com toda a urgência possível o seguinte:
            1º - Se há nesse município terras do estado. Sua área provável, e em que localidade estão situadas;
            2º - Natureza do solo e préstimo agrícola dessas terras;
            3º - Qual a distância em que se acham elas das estradas, dos portos de embarque e das praças do consumo;
            Se aí existirem terras em condição de serem colonizadas com aproveitamento, serão elas adjudicadas à província em pagamento das terras que o Estado lhes deve;
            Igualmente informem-me qual o concurso [participação, contribuição] que poderia esperar esta presidência dos particulares em empresa tão importante, por qualquer dos meios de cooperação eficaz”.
            Em vista de tal resolução, resolveu a câmara municipal de Pelotas convocar para domingo, 29 de agosto, uma reunião popular, a fim de nela serem combinados os meios de levar a efeito a fundação de uma colônia nos subúrbios de Pelotas, como fora indicado pelo Sr. presidente da província.
            No entanto, a tal sessão extraordinária da câmara municipal para presidir à reunião popular convocada para tratarem da fundação de uma colônia acabou não acontecendo, sendo a mesma transferida sine die.
            A imprensa lamentou tal fato, por ver preterido um assunto da maior importância para o futuro do município.
            Dia dois de setembro daquele mesmo ano, comunicava o Jornal do Comércio aos seus leitores ter em seu poder um escrito “do nosso distinto amigo e correligionário”, o Sr. Carlos Rheingantz, sobre o assunto. Porém, por ter chegado o tal escrito muito tarde, prometia o jornal dar no próximo número a sua publicação.
            O escrito do Sr. Carlos Rheingantz foi publicado no dia seguinte, sob o título de “Colonização do município de Pelotas”, cujo conteúdo é, de forma sucinta, o seguinte: que não tendo ainda a empresa da Colônia de São Lourenço, existente no município de Pelotas, se apresentado à câmara municipal desta cidade por esperar que, na sua qualidade de pioneira de uma colônia particular sem rival, fosse ela consultada a respeito do modo de dar-se à colonização neste município ainda maior impulso.
            E, sendo aquela empresa já tão conhecida nos centros de imigração e tendo ela dotado este município com a colônia particular mais importante do Brasil, sem que os cofres municipais tivessem para tal contribuído com qualquer coisa, devia ele esperar que, em consideração aos serviços prestados não fosse, como até aquele momento o fora, esquecida também naquela ocasião em que tanta importância se dava a colonização e nem sequer tenha sido mencionada, estando tão habilitada para ser ouvida a respeito.
            Sem parecer exigência de sua parte, ela ressentia-se ainda até aquele momento ser totalmente esquecida e, era por isso, que aguardara até aquele momento os passos dados pela municipalidade; porém, não tendo a primeira providência (a reunião popular) tido o efeito desejado, segundo parecia, e por estar a população ansiosa pelo êxito de sua aspiração, não queria aquela empresa por amor próprio ferido deixar de dar sua opinião em assunto tão importante, pedindo assim a publicação daquelas linhas.
            Entendia o Sr. Rheingantz, dentre outros itens, que o essencial era procurar-se gente sisuda, trabalhadora e ordeira; pois, sem isso de nada serviria a colonização, porque não era estável.
            Mas, para conseguir tão brilhante resultado, era necessário que a reputação da empresa estivesse firmada para atrair os bons imigrantes.
            O único modo de levar a efeito uma colonização rápida ao mesmo tempo morigerada era mandar vir colonos dos distritos conhecidos e de onde já tinham vindo imigrantes para São Lourenço.
            Apresentava ele, logo a seguir, as suas ideias sobre a melhor forma de levar a efeito a aspiração da opinião pública e esperava que sua desinteressada proposta, merecesse a atenção de todos que aspirassem pelo bom resultado da ideia levantada pelo Exmo. Sr. presidente da província.
             O Sr. Carlos Rheingantz dizia, no item 2, que o fim da associação seria colonizar estas terras, podendo entrar também as terras do município de Canguçu, de cuja colonização os interesses viriam imediatamente reverter em favor do município de Pelotas, por ser esta cidade o mercado que ela procuraria.
            No item 5, propunha o Sr. Rheingantz, que a colonização fosse feita somente em terrenos elevados e com bons matos, e deveria ser combinada com a colonização alemã, especialmente pomerana.
As terras do Laranjal deveriam convir mais para a colonização italiana, porque elas pareciam mais adaptadas para a plantação de arroz, em que os colonos italianos estavam mais práticos que os alemães.
Entendia ele que a colonização do Laranjal por agricultores italianos seria uma feliz tentativa e dela se poderia “esperar com mais razão braços para as charqueadas do que a colonização alemã”.
Por isso, nada obstava que ao mesmo tempo se tratasse da colonização do Laranjal e das terras disponíveis da Serra (dos Tapes).
Encerrava ele afirmando que no exposto fazia ver as suas ideias sobre o modo mais conveniente de levar adiante os desejos da municipalidade e de grande parte da população pelotense.
Influência ou não da sugestão apresentada pelo Sr. Carlos Rheingantz, dia 30 de março de 1883, o jornal A Nação comunicava ter chegado a Pelotas no dia anterior, oriunda de Montevidéu, uma comissão de colonos piemonteses (região do Piemonte, situada ao norte da Itália) a fim de examinar as terras das colônias municipais.
Estes colonos foram oferecidos à câmara municipal desta cidade pelo Sr. Fortinho.
A comissão veio com passagem paga pelo governo geral.
A municipalidade mandaria pessoas competentes acompanhar a comissão até as colônias. 
 Por sua vez, o charqueador escravista Sr. tenente-coronel Junius Brutus Cássio de Almeida, sem esperar que a iniciativa privada pusesse em prática a criação de uma nova colônia e viesse a  instalar colonos em volta das charqueadas, tratou de dar um giro pelo Rio da Prata e de lá trazer não somente mão de obra branca e qualificada, como também novas técnicas.
O resultado, pelo menos segundo a opinião do jornal Echo do Sul de 07 de outubro de 1884, foi o de ter o jornalista daquele órgão de imprensa ficado agradavelmente surpreendido, ao ver no armazém do Sr. Alfredo Doux, um fardo de charque beneficiado na charqueada do Sr. Junius Brutus Cássio de Almeida, cuja surpresa tinha toda a razão de ser: quem estava acostumado a ver o produto “da importante indústria de carne seca em nossa província”, fabricado pelo sistema primitivo e rotineiro, não deixaria de ter agradável impressão vendo aquele espécime da fábrica do Sr. Brutus, que mostrava os seus sinceros desejos de acompanhar o progresso que se notava nas repúblicas vizinhas em igual ramo de trabalho industrial.
Prosseguia o jornalista nos informando que o Sr. Brutus, em vista das dificuldades com que lutava o charqueador da província, tendo por competidor o produto similar do Rio da Prata, que ia cada vez mais ganhando terreno nos portos do Norte, e até no Rio de Janeiro, graças a sua incontestável superioridade, resolvera romper com o sistema “condenado” do antigo charqueador.
Assim, foi que visitando os saladeros do Rio da Prata, e convencendo-se da excelência do processo de trabalho por eles adotado resolvera contratar ali um grupo de trabalhadores habilitados e com eles introduzir em seu estabelecimento importantes reformas, das quais o resultado era a carne beneficiada em sua charqueada poder competir com a melhor dos saladeros orientais.
A sua aparência era a melhor possível, e bastava um simples lance de vista para que se salientasse a sua extraordinária superioridade sobre o charque fabricado pelo antigo sistema.
O Sr. Brutus resolvera também, como no Rio da Prata, fazer pilhas de inverno para exportar em fardos o produto do seu estabelecimento para os mercados do norte e Rio de Janeiro.
Sendo o Sr. Brutus o pioneiro naquele principal artigo de exportação da província, era digno de toda a admiração e dos louvores a “que fazem jus todos os homens empreendedores e progressistas”.
Oxalá, esperava o jornalista, que o Sr. Brutus encontrasse seguidores naquela notável iniciativa.
E concluía, afirmando ser somente por aquele meio, isto era, melhorando o beneficiamento do charque do Rio Grande, de maneira a poder ele competir com o do Rio da Prata, que se poderia garantir o futuro daquela importante indústria.
Dias depois, o jornal Onze de Junho acusava o recebimento de uma manta de carne seca, preparada no estabelecimento do Sr. tenente-coronel Junius Brutus de Cássio Almeida, “um dos industrialistas mais adiantados desta cidade”, preparada em sua charqueada segundo o processo adotado na república vizinha, e de uma maneira que nada deixava a desejar aos produtos similares produzidos naquele país.
Na verdade, dizia o autor da matéria, a vista do produto com que fora obsequiado, poderia se afirmar, sem ofensa dos demais charqueadores, “valiosos sustentáculos da indústria”, que estava muito superior aos melhores beneficiados em outras charqueadas que se encontravam perfeitamente montadas.
Havia o Sr. Brutus Almeida se desprendido da velha rotina, e “à custa de enormes sacrifícios” mandara vir com altos salários, pessoal habilitado, da República Oriental, aproveitando apenas como auxiliar o braço escravo.
Aquela inovação do trabalho produzira, “como era de se esperar”, os mais excelentes resultados, beneficiando-se a partir de então no estabelecimento do Sr. Brutus de Almeida, exatamente com a mesma perfeição, zelo e aparência, que apresentavam os produtos similares do Rio da Prata.
Ora, sabido como era que o charque produzido no Rio grande do Sul começava a encontrar difícil colocação nos mercados do Império, era justo afirmar-se que o Sr. tenente coronel Brutus de Almeida com a iniciativa que tomara, “salvou o nosso primeiro ramo de indústria, de uma inevitável ruína e decadência”.
Concluindo a matéria, o jornalista fazia votos para que o Sr. Brutus fosse recompensado dos infatigáveis esforços que havia despendido para “alevantar de seu abatimento sensível a indústria” que constituía a principal fonte de riqueza da província.
Um mês depois voltava o Onze de Junho a informar que, no último paquete procedente de Montevidéu, haviam chegado 27 trabalhadores de diversas nacionalidades, para trabalharem no importante estabelecimento de charqueada do Sr. Brutus Cássio de Almeida.
Aqueles trabalhadores eram peritos carneadores e salgadores, e grandes impulsos vinham dar à indústria do charque.
O Sr. Brutus de Almeida, o pioneiro na província a adotar o preparo do charque pelo sistema dos saladeros do Rio da Prata, não poupava esforços e sacrifícios para colocar seu estabelecimento a par dos melhores que existiam naquelas repúblicas, levantando assim do abatimento em que se encontrava “a nossa principal indústria”.
Oxalá, esperava o jornalista, que o Sr. Brutus encontrasse seguidores, para que assim o charque beneficiado em Pelotas tivesse mais aceitação nos mercados do norte do Império, e poder se encarreirar a exportação para os mercados de Havana e outros, onde obtinha boa saída o charque do Rio da Prata.
Para que os charqueadores tivessem melhor resultado do capital que empregavam nessa indústria, era preciso sair da antiga rotina e seguir o exemplo do Sr. tenente-coronel Brutus Almeida.
Encerrando a notícia, o jornalista felicitava a forma brilhante com que o Sr. Brutus estava desenvolvendo o seu estabelecimento, mostrando aos olhos dos rotineiros que sem trabalho não havia prosperidade possível.
Antes de darmos continuidade e vermos a questão dos imigrantes como provável e substituta mão de obra nas charqueadas de Pelotas, é preciso refletir sobre alguns pontos do então até aqui visto.
Em primeiro lugar, é quanto à questão do fantasma da abolição que rondava o futuro da indústria saladeiril de Pelotas que, “com a extinção da escravatura estaria fadada ao desaparecimento”. Ora, tal afirmação e preocupação nos faz pensar em uma clara intenção de não reaproveitamento do braço escravo, do qual por quase um século se servira aquela indústria, o que, por extensão, considerando que este seria substituído por imigrantes europeus, levaria ao branqueamento da mão de obra das charqueadas.
Por outro lado, a instalação de uma colônia próxima às charqueadas, sendo o único meio de evitar tão desastroso futuro, criaria trabalhadores aptos para aquele serviço; pois, a criação de colônias próximas dos estabelecimentos de charqueadas, nas quais os colonos encontrassem trabalho, e assim fariam um aprendizado, habilitando-se para de futuro substituírem o braço do escravo, nos leva a crer que o aprendizado seria feito junto aos escravos, portanto estaria assim solucionado o problema.
Mas, parece que a ruína da indústria saladeiril pelotense passava por outro e mais sério problema, o da má qualidade do charque até então produzido, do contrário, a atitude tomada pelo Sr. Junius Brutus de Cássio Almeida em tornar o seu produto muito superior aos melhores beneficiados em outras charqueadas que se encontravam perfeitamente montadas, não se justificaria com a simples contratação dos 27 trabalhadores de diversas nacionalidades, peritos carneadores e salgadores.
 O que o Sr. Brutus de Almeida, o pioneiro na província a adotar o preparo do charque pelo sistema dos saladeros do Rio da Prata e que não poupara esforços e sacrifícios para colocar seu estabelecimento a par dos melhores que existiam naquelas repúblicas, trouxe de novidade, levantando assim do abatimento em que se encontrava “a nossa principal indústria”, era uma nova-antiga técnica usada nos saladeros uruguaios e argentinos desde o final do século XVIII e que, dentre outras, até então fizera a diferença na baixa qualidade do charque sul-rio-grandense, quando comparado ao tasajo platino.
A mão de obra escrava não era a responsável pela má qualidade do produto, tanto que dela sairia o aprendizado dos colonos imigrantes, e tampouco estaria nos peritos carneadores importados pelo Sr. Brutus de Almeida a solução, toda a diferença estava nas mãos dos peritos salgadores. A salmoura, ou o método de salga utilizado pelos saladeristas rio-platenses, desde que D. Francisco de Medina, o saladerista Del Colla, um empreendedor de visão, o primeiro a conseguir em seu saladero, através da instalação de um laboratório montado no estabelecimento, dirigido por técnicos irlandeses, esta façanha e, tal feito, segundo palavras do Vice-rei Nicolás de Arredondo, ao falar sobre aquela técnica, é que Medina, no ano de 1787, “havia descoberto o segredo e as carnes rio-platenses venceram o mito de suas condições inferiores, pois jamais haviam obtido antes a cor e a consistência das do Norte”. Em nada mais consistia – acrescentou o monarca em relação à forma vencedora – que em sublimar “la salmuera del barril con una corta dosis de sal nitro” (MONQUELAT, 2009b, p. 95).                                                                      
 Mas, voltando aos imigrantes, noticiava o jornal A Discussão, de seis de outubro de 1884, que a Associação Comercial de Pelotas, por sua diretoria, antevendo o alcance da crise que, em futuro próximo, ameaçava abater-se sobre o comércio e as indústrias locais, aquele pela súbita mudança que teria lugar na ordem de coisas até então estabelecida, logo que fosse inaugurada ao tráfego a estrada de ferro do Rio Grande à Bagé, estas pelas dificuldades que para seu desenvolvimento e quiçá para a sua sustentação iriam originar-se da transição do trabalho escravo para o trabalho livre, e considerando que aquela Associação, mais do que nenhuma outra, como representante dessas importantes classes, cumpria providenciar enquanto era tempo, de forma a evitar tanto quanto possível as funestas consequências que sem dúvida daí adviriam; [...]; resolve promover a incorporação de uma sociedade anônima de responsabilidade limitada que, mediante um juro razoável, tenha por fim adquirir, medir e demarcar terras na Serra dos Tapes e suas imediações e vendê-las em lotes, em condições favoráveis, à imigrantes europeus, sob as seguintes bases:
1ª – A sociedade denominar-se-á Associação Colonizadora Pelotense. [...].
No dia 11 de outubro de 1884, informava o A Discussão que a Associação Colonizadora, que tratava de incorporar a ilustre diretoria da Praça do comércio, vinha encontrando o mais benévolo acolhimento por parte da população de Pelotas.
Já estavam adquiridas mais de 200 ações, pressagiando tudo que o maior êxito coroaria “a grandiosa tentativa dos honrados cavalheiros” que almejavam solidificar a grandeza e prosperidade de Pelotas.
Atualmente, dizia o jornalista, quando a escravidão tendia a desaparecer, tornando-se urgente preparar o espírito público para a transição, procurando-se encaminhar para a província a corrente imigratória.
Era, no seu entender, o único meio que lhes restava para salvarem-se da crise que os ameaçava.
E, Pelotas, tinha em si os elementos suficientes para combatê-la.
Em carta publicada pelo jornal A Discussão de 27 de outubro de 1884, o presidente da província, Sr. Dr. José Júlio de Albuquerque Barros, dentre outros assuntos abordados, informava sobre a recente visita feita a colônia de São Lourenço, na qual tinha firmado a sua convicção de que era de um grande futuro a colonização da Serra dos Tapes, onde já se encontravam estabelecidos cerca de 12.000 alemães e começava o estabelecimento de algumas famílias italianas nos dois núcleos recentemente fundados pelo governo sob a denominação de Maciel e Afonso Pena.
Aos 22 dias de mês de novembro de 1884, durante a 1ª sessão ordinária da edilidade pelotense, sob a presidência do Sr. comendador Bernardo de Souza, após a leitura da ata da sessão anterior, foi lido o requerimento do Sr. João C. Fortinho, relativamente a tapagem na estrada além da Barbuda, em direção às colônias Piemontesa e do Monte Bonito. Do qual ficou a Câmara inteirada.
Em nova sessão da câmara municipal realizada aos 27 dias do mês de novembro de 1884, sob a presidência do comendador Bernardo de Souza, depois de cumpridas as formalidades de praxe, foi lido um novo requerimento do Sr. João Fortinho, empresário da colônia Nova Piemonte, no qual o empresário pedia que a câmara reconsiderasse sua decisão sobre a abertura da estrada da Barbuda em direção ao Monte Bonito. Deliberou a câmara não tomar conhecimento e aguardar a decisão do presidente da província para quem o suplicante recorrera.
Em 6ª e última sessão ordinária realizada pela câmara, aos 28 dias do mês de novembro, foi lido o requerimento do Sr. João Fortinho, replicando sobre a resolução da câmara tomada na sessão anterior, a respeito do pedido para a reconsideração do ato relativamente à estrada da Barbuda em direção ao Monte Bonito, pela colônia Nova Piemonte de que o suplicante era empresário, visto não ter ele recorrido ao presidente da província. Após longa discussão foi deferido contra o voto dos Srs. Dr. A. e Souza e Barcelos.
Aos 22 dias do mês de dezembro de 1884, o jornal A Discussão informava que, como resultado da visita que o Sr. presidente  da província fizera à Serra dos Tapes, havia requisitado da inspetoria geral das terras e colonização  providências, no sentido de ser encaminhada parte da imigração italiana para aquele local, a fim de ali formar-se alguns núcleos que atraíssem a corrente espontânea.
Aos 26 dias do mês de fevereiro de 1885, o A Discussão noticiava que a Sociedade de Imigração de Pelotas, bem assim o Sr. comendador Bernardo de Souza, presidente da câmara, e o Sr. Pascoal Corte, cônsul italiano, tinham empregado valiosos esforços para conseguirem achar colocação que conviesse aos 450 imigrantes vindos de Buenos Aires, enviados pelo cônsul brasileiro Sr. Dr. Adrião Chaves.
Devido a iniciativa daqueles senhores, 100 dos imigrantes já tinham sido empregados em diversas charqueadas e estabelecimentos industriais, percebendo o salário de 52$000 (réis) mensais.
Muito, porém, havia feito a Sociedade de Imigração, de Pelotas, que contando apenas poucos dias de existência, além de contribuir com a quantia de 300$ réis para ser distribuído entre os mais necessitados, promovera todos os meios para conseguir-lhes colocação.
Concluindo estes apontamentos, queremos acrescentar ao muito que ainda poderia ser acrescido, um episódio ocorrido em uma charqueada pelotense dos tantos outros que ocorreram, tendo como protagonistas imigrantes europeus, que passaram a substituir, no todo ou pelos menos em parte a mão de obra escrava.

Assassinato de uma mulher na charqueada


            Na charqueada do Sr. Joaquim da Silva Tavares, ex-barão de Santa Tecla, aquém do Passo dos Negros, deu-se o seguinte fato que o Diário Popular passava a narrar tal qual “podemos compreender da algaravia” de uns polacos, testemunhas do ocorrido e únicos informantes que até então tinham sido interrogados.
            Disseram eles, os polacos, que, na charqueada, moravam em pequenos casebres, todos próximos uns dos outros.
            A mulher do polaco Matheus Felak, Theofila Felak, de 44 anos, dia 20 de agosto, às 20h, vendo seu marido ser agredido a pauladas pelo rondador da charqueada, um espanhol de nome Rafael de tal, correu em seu auxílio, pensando em apaziguar a contenda.
            Não sucedeu isso, porém, pois o rondador, que era homem de maus bofes, desferiu-lhe também grossa bordoeira, deixando-a toda contundida.
            Tudo isso foi mais ou menos presenciado por muitos trabalhadores polacos, “tão covardes” que não socorreram seus compatriotas.
            Parecia ao autor da notícia, que a briga entre o rondador e Matheus fora motivada por ter aquele proibido que os trabalhadores, depois de recolhidos, saíssem de seus cubículos e haver este transgredido a ordem, indo àquela hora tomar café com um seu vizinho.
            O que daquilo se depreendia era que naquela charqueada, aliás, de triste fama desde os tempos da escravatura, ainda operava o mesmo nefando regime de opressão...
            Depois daquela briga, recolheram-se as vítimas a seu quarto, onde se deitaram com a “sorte que os ajudou” e tudo ficou em silêncio profundo.
            Pela madrugada, despertou Matheus, e, qual não foi o seu espanto, ao verificar que sua mulher estava morta, rijamente estirada sobre a cama.
            Deu-se o alarme na charqueada e Rafael, de certo soube logo do fato, pôs-se em fuga na presença “daqueles polacos pamonhas”, atravessando o São Gonçalo em uma canoa.
            À simples vista, verificaram todos que Theofila morrera em consequência das pancadas que o rondador lhe dera.
            Avisada a autoridade do que se passara na charqueada, deu as providências que o caso exigia, mandando perseguir o assassino e transportar o corpo para a Santa casa, onde fizeram a autópsia os Srs. Drs. Alves Requião e Francisco Araújo que confirmaram a causa da morte.







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Fontes de consulta:CDOV- Centro de documentação e obras valiosas da Biblioteca Pública Pelotense.
Monquelat, A.F.; Marcolla, V. Apontamentos para uma história do charque no continente de São Pedro. (inédito).
Monquelat, A.F.; Marcolla, V. Desfazendo Mitos (notas à história do continente de São Pedro). Pelotas: Editora Livraria Mundial, 2010.
Monquelat, A.F. Notas à margem da história da escravidão. Pelotas: Editora Universitária/UFPEL, 2009.


Revisão de texto: Jonas Tenfen















  



sexta-feira, 23 de outubro de 2015

José Pinto Martins, um charqueador como tantos...




                A história da indústria saladeiril em Pelotas é, digamos, impossível de ser contada ou escrita por total falta de documentação que tornasse possível fazê-la, entretanto, e paradoxalmente, a história da cidade de Pelotas insiste em ser reiterada a partir de suposta instalação de certa fábrica de carne seca por um português oriundo de Aracati, Ceará, que de lá, fugindo de uma seca, veio parar aqui e logo orientou os demais a segui-lo nessa prática.

         Ora, se tal fato histórico tivesse um mínimo de credibilidade e uma fonte documental, por menor que fosse para atestá-lo, não haveria porque estarmos dizendo o até então já dito e menos ainda para dizermos o que, na continuidade, estaremos dizendo.

         O português José Pinto Martins esteve instalado com estabelecimento de charqueada às margens do Arroio Pelotas não há a menor dúvida e, para comprová-lo, existem diversos documentos que atestam tal ocorrência. Agora, insistirem em dizer que Pinto Martins chegou por volta de 1777-80 fugindo de uma seca e aqui se instalou, dando início a indústria do charque no território sul-rio-grandense já é outra narrativa, uma história que não aconteceu como já o documentamos em nosso livro, de parceria com V. Marcolla, Desfazendo Mitos ( 2010 ).

          Entretanto, não é por demais repetirmos que José Pinto Martins, a não ser que tivesse o dom da onipresença, não poderia andar embarcado, no eixo Mossoró-Aracati-Recife, transportando sal, charque e mercadorias para seus irmãos mais velhos, charqueadores e comerciantes no Ceará, até o ano de 1787, ano em que as viúvas dos irmãos comerciantes e charqueadores, com a morte dos maridos, resolveram acabar com os negócios desses e encerrarem tais atividades.

         É provável que José Pinto Martins e seu irmão mais moço, Antônio, somente a partir do ano de 1787 tenham vindo para o Sul e, em Pelotas, tenham se estabelecido por volta do ano de 1790, muito embora a primeira vez que surge o nome de José Pinto Martins, no continente de São Pedro do Sul, tenha ocorrido em 1796 conforme foi documentado em nosso trabalho, já citado.

         De qualquer forma, ainda que estranho e não admissível, é pessoas formadoras de opinião, inclusive inseridas ou parte do corpo de instituições, insistir em manter a ideia de José Pinto Martins ter chegado e com ele a técnica do fabrico do charque em 1780, algo equivocado já na ideia de que no Continente de São Pedro tal prática já não ocorresse. No Continente, desde a década de vinte, charqueava-se, e dessa prática há indícios inclusive toponímicos, e, se não fossem suficientes para demonstrá-la, há o fato documental atestado por Silva Paes em correspondência enviada ao Vice-rei, em fevereiro de 1737, que não deixa dúvida quanto ao ato e uso de charqueações na região da atual cidade de Rio Grande, o que também pode ser visto em nosso trabalho.

         Embora seja de alguma importância histórica saber-se quem foi o primeiro charqueador a instalar tal indústria no hoje município de Pelotas, é, em caráter mais amplo, um fato irrelevante considerando ter surgido a cidade de Pelotas como fruto do agropastoreio e, em especial, pela ação do governador Sebastião da Veiga Cabral da Câmara, quando então, movido pela necessidade de assentar alguns casais oriundos de Maldonado, na época domínio da coroa espanhola e que de lá haviam retornado para o domínio da coroa portuguesa passando dificuldades em Rio Grande, que não podia proporcionar-lhes terra para cultivo ou gêneros de subsistência, retirou parte da área da Sesmaria do Monte Bonito, em 1781, cujo sesmeiro era o capitão Ignacio Antônio da Silveira, e repartiu em datas nas quais instalou vinte casais de retornados, agricultores em sua maioria.

         Dessas datas, pequenas extensões de terra, irá surgir, na freguesia de Pelotas quase duas décadas depois daquele ato do governador Cabral da Câmara, certo número de charqueadas  não muito depois dessa decisão,  o que se pode verificar no Alvará de 31 de janeiro de 1812, concedido por Vossa Alteza Real, o príncipe regente D. João VI, reproduzido em nosso trabalho O processo de urbanização de Pelotas (2010), novamente em parceria com V. Marcolla.

         Disse e continuarei dizendo que a presença de José Pinto Martins não tem a menor relevância no contexto histórico da indústria do charque; assim como, sabermos ou não quem foi o primeiro charqueador de Pelotas é um fato irrelevante, pois, a cidade de Pelotas não tem a primazia no fabrico do charque no estado do Rio Grande do Sul.

         No hoje território do Rio Grande do Sul, charquear já era uma prática estabelecida desde os primórdios do século XIX, embora sem o intuito de comercialização ou abastecimento da armada portuguesa. Com tal propósito, documentalmente, podemos afirmar até agora ser uma atitude tomada por João Cardoso da Silva - o famoso personagem de João Simões Lopes Neto no conto “O mate do João Cardoso” – quando estabelecido com estância e charqueada às margens do Rio Piratini nas ruínas do Forte de São Gonçalo, hoje região pertencente ao município de Arroio Grande.

         É importante salientar que tal iniciativa de João Cardoso só foi possível ser levada adiante por contar com a aquiescência do então governador Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Câmara, o mesmo a quem a cidade de Pelotas deve o seu antecipado surgimento, que facilitou e estimulou as experiências para a produção do charque, pois, além de outros motivos, dentre eles estava o principal, desonerar os cofres da Coroa portuguesa bastante sangrada com as aquisições do charque junto aos irlandeses que a abasteciam, como também eram esses os que forneciam a carne de moura ou carne embarricada [charque] à armada espanhola.

         Dentre as facilidades proporcionadas ao até então pioneiro João Cardoso da Silva, esteve o acesso ao sal, produto indispensável no fabrico do charque, mas, que por força de contrato entre a Coroa portuguesa e o arrematante do Estanco do Sal, todo o sal transportado a partir de Santos (SP) em direção ao Rio grande do Sul, era considerado contrabando podendo ser apreendido pelo Contratador, situação que perdurou até próximo do ano de 1800. Esta proibição é dentre outras, uma das causas que invalida a tese da presença e todo o mais atribuído ao português José Pinto Martins no ano de 1780 e o início da produção em massa do produto charque na região de Pelotas.

         Quanto às experiências realizadas na charqueada de João Cardoso, segundo palavras do próprio quando afirmou em um dos documentos, que reproduzimos em nosso livro Desfazendo Mitos, “que o Suplicante [João Cardoso da Silva] é um vassalo benemérito, pelos bons serviços que tem prestado a Sua Alteza Real; que não tem outras terras, senão aquelas quatro léguas e meia compradas e que é um dos mais antigos colonos deste Continente [de São Pedro], que em grande parte lhe deve o seu aumento e auge em que se acha [encontra], por ter sido ele [João Cardoso] o primeiro que instituiu aqui [no Continente] a fábrica de carnes de charque, dando aos [de]mais as ideias e noções necessárias para um ramo  tão vantajoso ao Estado o que é bem conhecido de V. Exª”.

         Há ainda, dentre outros, o documento em que João Cardoso diz que “foi o primeiro que estabeleceu aqui a fábrica de carnes [charqueada], trazendo, para isso, mestres a sua custa, no ano de 1780”.

         Quanto ao português José Pinto Martins, que os desinformados e adeptos de pioneirismos teimam em afirmar ter sido e feito o que não foi e não fez, vamos encontrá-lo aqui, no Continente de São Pedro, por primeira vez em documento datado de 1º de outubro de 1796, assinando, junto a outros moradores do Continente, uma representação a Sua Majestade clamando por sal, para que pudessem praticar as suas charqueações.   

         Ficou claro o porquê do título “José Pinto Martins, um charqueador como tantos...”?

         “Oh! Crioulo!... olha esse mate, diabo”.






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Referências bibliográficas: Monquelat, A.F.; Marcolla, V. Desfazendo Mitos. Pelotas: Editora Livraria Mundial, 2010 – Monquelat, A.F.; Marcolla, V. O Processo de Urbanização de Pelotas. Pelotas: Editora Universitária/UFPEL, 2010.
Revisão de texto: Jonas Tenfen

terça-feira, 20 de outubro de 2015

A maldição da “princesa cigana”


                                                                                    

         Outra lenda urbana desta cidade é a que diz respeito à praga ou a maldição de uma princesa cigana que por aqui esteve no final do século XIX e que, durante esta estada em Pelotas, teria contraído uma doença, motivo pelo qual foi seu povo, preocupado com o estado de saúde de sua princesa que não apresentava melhoras, buscar auxílio entre os médicos da cidade. 
         Tendo os médicos se recusado a atendê-la, por se tratar de uma cigana, veio a princesa a piorar e morrer; porém, diz a lenda, pouco antes de expirar, teria amaldiçoado a cidade nos seguintes termos: “esta cidade de hoje em diante não mais prosperará”, pelo menos, estas eram as  palavras que ouvíamos toda vez que alguém reproduzia a lenda.
         Difícil saber quando e porque nasce uma lenda; agora, quando alguma dessas é desfeita, perde o imaginário popular e muito de sua construção estético-literária. As lendas, sem exceção, são sempre mais bonitas que a realidade do fato nelas contido. A da praga ou a da maldição da princesa cigana lançada sobre a cidade de Pelotas não somente serviu para que alguns, pelo menos os mais pessimistas, sobre o futuro econômico da cidade encontrassem uma justificativa para alguma crise ocorrida em dado momento, como também acabou contribuindo para que se estabelecesse outra, a de que, ainda hoje, caso algo seja pedido à princesa cigana venha o pedido a ser atendido.
         Vejamos, no entanto, o que existe de verdade nesta lenda urbana.
         Por volta do final de dezembro de 1882, chegou à cidade de Pelotas um grupo de mais ou menos 50 pessoas, entre homens, mulheres e crianças que, segundo a imprensa pareciam ser beduínos ou coisa que o valesse. 

         Este grupo assentou seus arraiais na extremidade da Rua Conde d’Eu [atual Avenida Bento Gonçalves], mais precisamente à Rua Manduca Rodrigues [atual Professor Araújo] dispondo as sete tendas que de acordo com um jornalista da época, simbolizavam os pecados capitais e ali estavam prontos a decifrarem, na cintilação das estrelas, o destino de “nós outros, simples mortais”.
        Dia 28 de dezembro, o “chefe da tribo” compareceu na Secretaria de Polícia, apresentando uma enorme quantidade de papéis a fim de receberem o competente visto para permanecerem acampados na cidade. 
         A presença de ciganos não era bem vista apenas em Pelotas, mas também em cidade alguma, pelo menos da província. As manifestações contrárias da imprensa eram publicadas desde a chegada, bastando qualquer incidente envolvendo-os para que, em seguida, houvesse denúncia e fosse pedido que as autoridades os enxotasse para fora da cidade. Assim sendo, dia 4 de janeiro de 1883, um jornal local se manifestava, através do noticiário, dizendo que diversos eram os comentários feitos quanto à estada, na cidade, “dos beduínos” acampados lá para os lados da Rua Manduca Rodrigues [atual Professor Araújo].
         Uns diziam serem eles uns especuladores, que andavam a explorar a credulidade das pessoas de “ânimo fraco”, apanhando-lhes o dinheiro com artimanhas e falcatruas; outros, que eram trabalhadores honestos procurando ganharem licitamente suas vidas empregando-se nos ofícios de caldeireiros e ferreiros; outros ainda, que os “beduínos” não passavam de uns espertalhões que “embaçavam” a quem lhes chegasse ao alcance das unhas.
         Considerando uns e outros juízos, concluía o jornalista por serem eles tanto uma coisa quanto outra, agora, culpado mesmo era aqueles que, acreditando nas teorias de Mesmer [Franz Anton, 1734-1815], René (?) e Catarina de Médici [1519-1589], e fazendo reviver o reinado da bruxaria, ali, no acampamento dos ciganos, iam consultar o oráculo, incomodando-se depois com os resultados.
         Quem não quisesse ser explorado que não os procurasse, advertia o jornalista, deixassem-nos em paz que não haveria razão para queixas.
         Pois é, tivesse o Sr. Carlos Ritter os deixado em paz não teria motivo para queixar-se, dia 10 de janeiro de 1883, nem pagar a exorbitância que lhe foi cobrada pelo conserto que deu aos “beduínos” fazer em utensílio de sua cervejaria, isso “por não querer se incomodar”. 
         É chegada a hora de vermos a morte da lendária princesa cigana ocorrida em Pelotas, e a famosa praga por ela lançada antes de expirar.
        A morte da “princesa cigana” se deu no dia 2 de março de 1883, em Pelotas, vítima de uma longa enfermidade da qual já sofria quando na cidade chegou.
         Em vista da morte, aqui ocorrida, os boêmios – outra das expressões usadas para se referir aos ciganos – adquiriram alguns palmos de terra no cemitério público da cidade e lá construíram o túmulo da “velha Cigana Terena”, mulher do chefe da tribo acampada em Pelotas desde dezembro de 1882.
         A morte da cigana Terena foi muito sentida pelo seu povo e, em vista do doloroso acontecimento, não lhes restou outra atitude que não a de observar o ritual que o caso exigia.
         O corpo de Terena foi colocado na tenda, do também velho chefe, sobre uma colcha caprichosamente bordada. Ao lado do cadáver, consternados puseram-se os ciganos, inclusive as crianças, sendo que os mais velhos empunhavam quatro enormes velas de cera.

         A cada momento o chefe dos ciganos começava um canto, espécie de miserere [composição musical], no que era acompanhado por crianças, homens e mulheres; formando-se uma gritaria melancólica envolta por uma nuvem de resina aromática que queimava junto ao corpo da cigana.
         Na madrugada do dia seguinte, duas das bandas da cidade contratadas pelos “beduínos” tocavam no velório, à entrada da tenda mortuária. O sepultamento dar-se-ia, com as honras que a alta hierarquia da finada exigia, dia quatro, pela manhã.
         Em sinal de respeito à memória da esposa do chefe da tribo, os ciganos andavam pelas ruas de Pelotas sem chapéu.
      Aos curiosos que ao acampamento afluíram nos dias dois e três, em número extraordinário, eram proibidos de entrar na tenda. Diz a imprensa, que ali compareceu, ser enternecedor e sublime contemplar a dor e o luto que ia naquela improvisada aldeola, em que a falecida era objeto de adoração.
         O enterro da cigana Terena Caldara, este era seu nome, diz a imprensa da época fora o mais concorrido que até aquele momento Pelotas havia presenciado.
         Da tenda mortuária, foi o corpo de Terena conduzido à mão até a ponte do arroio Santa Bárbara [local próximo ao “camelódromo”], sendo então colocado em um carro fúnebre de primeira classe
        Ao lado do carro fúnebre [coche, antiga carruagem fechada], segurando as alças do caixão, iam os boêmios, inclusive o velho chefe, levando cada um uma vela acesa com um tope de crepe.
         À frente daquele numeroso cortejo, iam as duas bandas de música, entoando tristes e melodiosos trechos musicais.
            Os ciganos durante todo o trajeto manifestavam a dor que sentiam em gritos de pesar e dramáticas entoações.   
        Os rituais da encomendação aconteceram na capela do cemitério, diante de expressivo número de curiosos.       
            O ataúde foi cercado por tochas acesas, conduzidas por lacrimosos rostos que refletiam a tristeza que lhes ia à alma.
            Depois, foi o cadáver colocado no túmulo construído pelos ciganos
       O caixão era de madeira polida, forrado interiormente de zinco e custosos adornos.
     O velho chefe abraçado ao cadáver de sua antiga companheira não tinha ânimo e resignação para dar-lhe o último adeus, sendo dali arrancado a muito custo.
         As mulheres e crianças soltavam gritos enternecedores.
       Finalmente, dado o corpo ao sepulcro aquele angustiado grupo de ciganos voltou as suas tendas.
         No dia seguinte, em romaria, ainda foram ao cemitério.
          Um dos vários jornalistas que cobriram a cerimônia fúnebre, encerrando a notícia, comentava o acontecido dizendo haver assistido a muitos funerais mais de acordo com as exigências requisitadas pela moda que tinha culto entre os povos civilizados, mas nunca tão tristes e mais sentimentais ou tampouco com o cunho de tão eloquente sinceridade. 
         Há de convir o leitor não haver na morte de Terena Caldara, aqui enterrada em um dos túmulos, hoje, o mais visitado de nosso cemitério público, o menor indício de omissão de socorro por parte dos médicos daquele período, além do que a cigana já chegou doente  em Pelotas, portanto, a enfermidade  que a matou não foi contraída nesta cidade.
         De qualquer forma, a razão do túmulo da cigana Terena ser o mais visitado e a ela serem atribuídos certos poderes, além de gozar da fama de atender aos pedidos daqueles que a ela recorrem, nos leva a perguntar: não será isso mais uma lenda urbana de Pelotas ? Quando e porque surgiu e se disseminou essa lenda?








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Fontes: acervo da Bibliotheca Pública Pelotense
Revisão do texto: Jonas Tenfen