terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Devaneios (5)

Balançar o saco, nem pensar 





     Terminei de secar a última panela, guardei-a no paneleiro e joguei o guardanapo molhado dentro do tanque, conforme instruções dadas pela matriarca, e tratei de cair fora daquela cozinha, antes que me arrumassem alguma outra tarefa, o que naquela casa, não seria novidade alguma.
      Ali, toda vez que terminava ou faltava alguma coisa, era sempre depois que eu chegava do colégio.
     “Bem, Domenico, é hora de cuidar dos teus interesses; portanto, mãos à obra”. Era ela.
     Ouvi aquilo meio desconfiado; pois, por primeira vez, desde que ela aparecera, para encher o meu saco, dizia algo coerente. Do contrário, era só “Domenico, olha bem o que tu vais fazer”. “E olha isso”, e “olha aquilo”, e “aquele outro”. Desde que a vozinha surgira, e de onde, era coisa que eu ainda não descobrira, ela não me dava trégua. Era eu passar, e pronto. Ela se manifestava.
     Tracei a minha estratégia, que consistia em um único ponto: todo e qualquer vidro, inteiro ou quebrado, pedaços de ferro e ossos que estivessem na superfície, solo ou subsolo do nosso território, daquele momento em diante seria confiscado e considerado propriedade do Domenico. Que era eu.
     O primeiro passo a dar, para a perfeita perfeição do plano, era fazer o percurso palmo a palmo da área compreendida, tendo o maior cuidado com os canteiros da minha mãe, que ocupavam pelo menos a metade da horta, que ficava no fundo do terreno da casa. Lá, no lado direito de quem entrasse, minha mãe plantava uma variedade de legumes e hortaliças, cuja produção aliviava as despesas da casa.
     Por sorte do verdureiro não dependia ele para sobreviver das compras que não eram feitas pela minha mãe. Poucas, pouquíssimas vezes a vi comprar alguma coisa. Vez que outra, um ou dois pés de couve; do contrario, melancias, que eram familiarmente devoradas sob a sombra da enorme parreira que havia ao fundo da horta, do lado esquerdo de quem ali entrasse.
     O verdureiro estacionava a charrete bem na frente de nossa casa, que ficava no meio da quadra, não sem antes bater fortemente com o cabo do relho na madeira da charrete, anunciando pra toda a vizinhança sua chegada: “Verdureiro, olha o verdureiro e a verdura bem novinha. Verdureiro, olha o verdureiro...”.
     Aquele anúncio de chegada do verdureiro era mágico. As portas, janelas e portões das casas em volta abriam-se para que as donas de casa surgissem, como que por encanto, para aproveitarem e saber umas das vidas das outras e como iam os filhos de todas. Desfeito o enxame de vizinhas, voltavam elas para suas vidinhas com suas tarefas diárias nos seus fogões a lenha a prepararem os almoços. E lá ia o verdureiro em direção à quadra seguinte: “Vâmo égua, vâmo...”.
     Nem bem a égua se afastava, lá vinha o: “Domenico, recolhe a bosta da égua do seu Paulo com a pá lá no meio da rua, e coloca ao lado do portão da horta”.
     Minha mãe aproveitava tudo, foi com ela que o Lavoisier teria aprendido que nada se perde, tudo se transforma; enquanto que eu, era aproveitado para fazer o trabalho sujo: recolher a bosta deixada pela égua do verdureiro, e era bom fazer o quanto antes, pois alguma carroça poderia passar e espalhar o bolo pelos paralelepípedos do calçamento, o que seria uma tragédia. Portanto, Domenico, pá na bosta.
     Palmilhado o lado direito, deixei espalhado pelos corredores, entre os canteiros, tudo o que encontrei à vista. A coleta, dar-se-ia após eu ter feito o mesmo no lado esquerdo. Lado em que eu contava ter mais sorte, principalmente perto da figueira, local que servia como um depósito de lixo seco.


     Ao passar pela frente do portão, que ficava no centro da horta, o Fiel latiu. Tentava, com as patas, abri-lo. Nessa hora, o galo estava em posição de briga. A rixa do galo com o Fiel era uma rixa antiga. Afinal de contas, muitas de suas galinhas haviam sido mortas pelo Fiel.
     Tratei logo de abrir o portão e pô-lo para dentro da horta, caso contrário, as galinhas, que temiam o Fiel, ficariam alvoroçadas. Lá dentro a preocupação era menor, havia apenas o casal de quero-queros, com os quais o Fiel, não sei bem por que, não implicava. E eles tinham para com o Fiel a mesma postura. De forma que eu e o Fiel fomos para um lado, e o casal da família dos Caradriíedos, Belonopterus cayennensis para o outro.
     Da maneira, cabisbaixa, com que o Fiel me acompanhou até a figueira, me pareceu que ele já havia provado do poder daqueles esporões. Mas, como minha missão ali era outra, querelas entre bípedes e um quadrúpede não era coisa que me levasse a desviar a atenção dos objetos que estavam à minha frente; aí então falei para ele: “Fiel, vamos estrear no mundo dos negócios, em pesado estilo. Olha só, quanto ferro e garrafas têm aqui”.
     Ele fez uma cara de desinteressado, e se deitou virado de frente para o lado que os quero-queros estavam. Sobre os ossos, não achei conveniente comentar alguma coisa com ele.
     A questão, naquele momento, era o que fazer com todo aquele monte de coisas que, até então, eu julgava inúteis, sem despertar a curiosidade da tríade ou a da minha mãe.
     “Domenico, o que é que tu estás fazendo aí?” – Era ela, com suas eternas perguntas. “Puta que o pariu, porque será que mãe tá sempre perguntando o que não é pra perguntar?”. Foi a pergunta que me fiz, enquanto pensava no que responder ao que ela não era para ter perguntado. E respondi:
     “Tô olhando a figueira, para ver se já se pode arrancar os figos”.
     “Domenico, tu tá mentindo para a tua mãe. E isso é feio Domenico”. Foi o que eu ouvi, da que não deveria ter se pronunciado. A tal de vozinha, que não soltava do meu pé. Mas, deixei para lá. Afinal de contas, o assunto era entre eu e minha mãe.
     “Acho que daqui uns dias mais já dará”. Estarão no ponto”.
     Doce de figo foi, é e será o meu doce preferido. Principalmente o que era feito pelas mãos da minha mãe, que o deixara de fazer bem antes de sua morte.
     Há poucos dias, uma das Três Marias me trouxe um vidro cheio de doce de figo. Não perguntei a ela, mas acho que era a primeira vez que o fazia. Nem de longe se parecia aos feitos pela nossa mãe. Isto, eu não lhe disse. Ao contrário, dei-lhe algumas sugestões, que ela disse que ia aproveitar.
     Dias depois, ela me aparece com um segundo vidro, que, à primeira vista, me pareceu estar quase no ponto certo.
     Quando se faz doce de figo, o que eu nunca fiz, não se pode fazê-lo enganando a receita. Senão, não há colher de pau ou mão que consiga dar o ponto certo. O ponto, é isto!
     Faltava o ponto exato para que os figos daquela figueira pudessem virar um bom doce de figo.
     Natal sem doce de figo, para mim, era o mesmo que ver um Papai Noel sem o saco. E saco, era o que meu pai não tinha. Creio ser por isso, que ele não esperava chegar a meia-noite. Deitava logo a seguir à ceia, que fazíamos juntos.
     Nos primeiros natais, o que o Papai Noel me deixava eu recebia sem perguntar nada. Depois, comecei a desconfiar do que me diziam: “Olha Domenico, o Papai Noel trouxe para ti”. E olha isto, e olha aquilo e olha aquele outro.
     “Olha Domenico, que caminhãozinho lindo”. “Vejam a bola que o Domenico ganhou do Papai Noel”.
     Ora bolas! Como é que um velhinho gordo, barbudo e carregando um saco enorme nas costas, conseguiria entra na minha casa que nem chaminé tinha? Além do mais, antes de deitarmos, minha mãe trancava tudo; portanto, não havia como ele entrar, e muito menos com o saco nas costas. Sem falar no Fiel, sempre atento a tudo e qualquer coisa que se mexesse, dentro ou fora do território dele.
     Ai do saco do Papai Noel, caso viesse a balançá-lo perto do Fiel.


______________________________________________________
Imagem: acervo do autor
Postagem: Bruna Detoni

Nenhum comentário:

Postar um comentário