terça-feira, 17 de janeiro de 2017

Devaneios (4)

Ao vencedor, a louça para secar



                                                                                                 A.F. Monquelat
           
           
          Não sei se o Fiel pensava; mas mordidas, ele não errava. Todas as tentativas ou investidas eram certeiras. Nem mesmo com os de casa ele baixava a guarda, era um escoteiro: sempre alerta. Mordeu quase todos, exceto minha mãe e eu. O que se compreende.
          Levava ele o papel de guardião tão a sério, que quase arruinou a minha estréia no mundo dos negócios. A coisa aconteceu, mais ou menos assim: um certo dia de uma certa hora de um certo almoço, alguém bateu palmas no portão da frente da casa. Por preguiça das minhas irmãs – ou por fome – e hierarquia dos meus pais, acabou sobrando para mim ver quem era, e de quê se tratava. O Fiel, acorrentado que estava, apenas latiu. No portão, me deparei com um senhor, que me pareceu bastante velho, coisa que naquela época era bastante comum, as pessoas parecerem mais velhas do que eram; mas, o que me chamou a atenção era o volume dos sacos que ele tinha nas costas. Eram dois ou três sacos, parecendo tão pesados quanto volumosos.
         Além dos sacos, outro detalhe que me deixou curioso foi um objeto metálico, com um gancho na ponta, e que durante nossa conversa eu fiquei sabendo se tratar de uma balança, que ele portava presa ao cinto da calça.
          Conversa vai, e conversa vem, acertamos que ele passaria uns dias depois quando, então, faríamos o nosso primeiro negócio.
           Voltei para o almoço, animado pelo negócio que eu e o meu futuro sócio, o homem da balança presa na calça, dentro de poucos dias estaríamos realizando.
           “Quem era?”. Foi a pergunta que me fizeram. Dei uma desculpa qualquer aos curiosos, e me atraquei na comida; porém, meus olhos percorriam todos os pratos atento aos ossos de cada um deles, sem descuidar da sopeira onde restavam outros à espera de alguém que os desnudasse. Tudo isso, sem chamar a atenção.
           Terminado o almoço, esperei a faxina dos pratos e, como sempre o fazia, levei as sobras para o Fiel. Enquanto ele tratava da fome dele, eu aproveitei para dizer-lhe que daquele almoço em diante, quem ficaria com os ossos era eu. Portanto, ele que os mordesse e descarnasse, mas que não os roesse demais e muito menos que os enterrasse. Acho que ele entendeu, pois em seguida pegou o maior dos ossos, e o levou para dentro da casinha.
           Fiquei na minha, naquelas horas não era muito aconselhável contrariá-lo. E muito menos se ele estivesse com algum osso na boca, que era exatamente a situação. Com o Fiel, o melhor mesmo era esperar pela hora da séstea, que ele não dispensava.
         Voltei para dentro de casa com o prato raspado e fui direto à cozinha, onde o deixei perto da encarregada de lavar a louça naquele dia e fui saindo de fininho, quando ouvi uma das três falar bem alto: “Ô mãe,...”. Como eu já sabia o que viria depois do “Ô mãe”, nem esperei para ouvir o “Ajuda as tuas irmãs, seca a louça pra elas”. Voltei, e desta vez sem retrucar ou dizer algo que não fosse: “tá bem mãe”.
         Ter de secar louça é um trauma que até hoje não consegui superar. Era muita louça.
          Secar aquela louça toda ia me roubar um tempão, o negócio era agir. E agir imediatamente para escapar daquela tarefa inútil. Olhei então para aquela tríade, e optei por Beatriz. Não que as outras duas não merecessem me fazer aquele favor, e sim por achar que, dentre elas, as três que estavam ali na cozinha. Beatriz era a de raciocínio, digamos, mais lento, embora as outras não fossem lá umas mentes muito brilhantes. Cheguei, então, o mais perto dela que pude, e lasquei: “Escuta aqui, preciso que tu me faças um favor”. Ela, de costas para mim, falou: “Eu?”. Depois daquela resposta não tive mais dúvidas, era a escolha certa: “Diz que tu vais secar a louça no meu lugar, tá bem? Depois te explico o porquê”. Ela, sem me encarar, seguiu limpando a chapa do fogão a lenha, e respondeu: “E por que é que eu faria isso por ti?”. Depois de uma resposta-pergunta tão idiota, acabara de demonstrar o quando eu estava certo com relação ao raciocínio lento, que desde há muito eu já constatara.



           “Ora, porque eu te disse que o porquê, eu explicaria depois. Entendeste agora?”.
          Virou-se para mim, e numa clara e evidente evidência de não ter entendido, respondeu: “Olha aqui Domenico, vai te catar”.
          Embora ainda eu não tivesse lido o velho Aristóteles, tive de concordar com ele: “Nunca ofereças um cacho de bananas a alguém, cuja capacidade seja a de apenas poder descascar uma por vez”.
           Pegar o cacho de volta, foi o que fiz, ali, parado em frente àquela ingrata. Desisti; mas deixei algo no meu olhar, que a fez acreditar estar eu pensando exatamente aquilo que eu estava pensando, pois: “Ô mãe, vem cá dar um jeitinho no Domenico”.
          O jeitinho que a minha mãe costumava dar, principalmente quando alguém interrompia a sua séstea, já me era bastante familiar. E vinha quase sempre montado em um cabo de vassoura, embora antes viesse o tradicional “Domenico não te faz de bobo, deixa as tuas irmãs em paz”.
          Bater em retirada? Bati.
          Vandré, com toda a certeza se inspirou no “A Arte da Guerra”, quando uma década depois disse: “Quem sabe faz a hora, não espera acontecer”. E isto, foi exatamente o que fiz, não deixei acontecer.
           Olhei pela janela da cozinha e vi, à sombra da espinheira santa, o Fiel cochilando como era de hábito. Era hora de cuidar dos meus interesses, não sem antes dizer para elas: “E apurem com esta louça”.
         Sem que o Fiel tivesse tempo de ver o acontecido, aconteceu: juntei os ossos todos que ele havia espalhado inclusive o maior e o mais pesado deles, e me afastei. Entender aquele meu gesto ele não iria, mas que fosse se acostumando com a idéia de que daquele dia em diante ele não teria mais a oportunidade de exercitar aquele hábito canino de sepultar ossos, porque um valor mais alto se levantara. Foi por um triz, porque de pé ele já ficara. Apesar do seu escasso vocabulário, e conhecendo os limites dele, que era do tamanho da extensão da coleira acrescido do gancho e comprimento da corrente, não dei a mínima pro seu tom de brabeza manifesto naquele, “Argh, argh, argh”.
         “Domenico, porque é que o Fiel tá brabo?”.
         “E lá vou eu saber. Pergunta pra ele”. Disse isso e me afastei, de lado, para que elas não vissem o butim em minhas mãos. Joguei a pilhagem toda longe das patas e vistas do Fiel, e voltei. Contrariado, mas ainda em tempo de ver o trio, qual as Três Marias, saindo pela porta do fundo da cozinha em direção ao quarto delas. Quando fecharam a porta estranhei o não terem dito: “E seca a loucinha bem direitinho Dominiquinho”.
         Aí, a mais velha abriu a porta, enfiou a cabeça e disse o que não tinham dito. Foi o quanto ela tirou a cabeça, do contrário o guardanapo, qual um chicote, não teria estalado na porta.
         Ao vencedor, a louça para secar.


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Imagem: acervo do autor

Postagem: Bruna Detoni       

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