Ao vencedor, a louça para secar
Não
sei se o Fiel pensava; mas mordidas, ele não errava. Todas as tentativas ou
investidas eram certeiras. Nem mesmo com os de casa ele baixava a guarda, era
um escoteiro: sempre alerta. Mordeu quase todos, exceto minha mãe e eu. O que
se compreende.
Levava ele o papel de guardião tão a sério,
que quase arruinou a minha estréia no mundo dos negócios. A coisa aconteceu,
mais ou menos assim: um certo dia de uma certa hora de um certo almoço, alguém
bateu palmas no portão da frente da casa. Por preguiça das minhas irmãs – ou
por fome – e hierarquia dos meus pais, acabou sobrando para mim ver quem era, e
de quê se tratava. O Fiel, acorrentado que estava, apenas latiu. No portão, me
deparei com um senhor, que me pareceu bastante velho, coisa que naquela época
era bastante comum, as pessoas parecerem mais velhas do que eram; mas, o que me
chamou a atenção era o volume dos sacos que ele tinha nas costas. Eram dois ou
três sacos, parecendo tão pesados quanto volumosos.
Além
dos sacos, outro detalhe que me deixou curioso foi um objeto metálico, com um
gancho na ponta, e que durante nossa conversa eu fiquei sabendo se tratar de
uma balança, que ele portava presa ao cinto da calça.
Conversa vai, e conversa vem, acertamos que
ele passaria uns dias depois quando, então, faríamos o nosso primeiro negócio.
Voltei para o almoço, animado pelo negócio
que eu e o meu futuro sócio, o homem da balança presa na calça, dentro de
poucos dias estaríamos realizando.
“Quem era?”. Foi a pergunta que me fizeram.
Dei uma desculpa qualquer aos curiosos, e me atraquei na comida; porém, meus
olhos percorriam todos os pratos atento aos ossos de cada um deles, sem
descuidar da sopeira onde restavam outros à espera de alguém que os desnudasse.
Tudo isso, sem chamar a atenção.
Terminado o almoço, esperei a faxina dos
pratos e, como sempre o fazia, levei as sobras para o Fiel. Enquanto ele
tratava da fome dele, eu aproveitei para dizer-lhe que daquele almoço em
diante, quem ficaria com os ossos era eu. Portanto, ele que os mordesse e
descarnasse, mas que não os roesse demais e muito menos que os enterrasse. Acho
que ele entendeu, pois em seguida pegou o maior dos ossos, e o levou para
dentro da casinha.
Fiquei na minha, naquelas horas não era muito
aconselhável contrariá-lo. E muito menos se ele estivesse com algum osso na
boca, que era exatamente a situação. Com o Fiel, o melhor mesmo era esperar
pela hora da séstea, que ele não dispensava.
Voltei
para dentro de casa com o prato raspado e fui direto à cozinha, onde o deixei
perto da encarregada de lavar a louça naquele dia e fui saindo de fininho,
quando ouvi uma das três falar bem alto: “Ô mãe,...”. Como eu já sabia o que
viria depois do “Ô mãe”, nem esperei para ouvir o “Ajuda as tuas irmãs, seca a
louça pra elas”. Voltei, e desta vez sem retrucar ou dizer algo que não fosse:
“tá bem mãe”.
Ter
de secar louça é um trauma que até hoje não consegui superar. Era muita louça.
Secar aquela louça toda ia me roubar um
tempão, o negócio era agir. E agir imediatamente para escapar daquela tarefa
inútil. Olhei então para aquela tríade, e optei por Beatriz. Não que as outras
duas não merecessem me fazer aquele favor, e sim por achar que, dentre elas, as
três que estavam ali na cozinha. Beatriz era a de raciocínio, digamos, mais
lento, embora as outras não fossem lá umas mentes muito brilhantes. Cheguei,
então, o mais perto dela que pude, e lasquei: “Escuta aqui, preciso que tu me
faças um favor”. Ela, de costas para mim, falou: “Eu?”. Depois daquela resposta
não tive mais dúvidas, era a escolha certa: “Diz que tu vais secar a louça no
meu lugar, tá bem? Depois te explico o porquê”. Ela, sem me encarar, seguiu
limpando a chapa do fogão a lenha, e respondeu: “E por que é que eu faria isso
por ti?”. Depois de uma resposta-pergunta tão idiota, acabara de demonstrar o
quando eu estava certo com relação ao raciocínio lento, que desde há muito eu
já constatara.
“Ora, porque eu te disse que o porquê, eu
explicaria depois. Entendeste agora?”.
Virou-se para mim, e numa clara e evidente
evidência de não ter entendido, respondeu: “Olha aqui Domenico, vai te catar”.
Embora ainda eu não tivesse lido o velho Aristóteles, tive de concordar com
ele: “Nunca ofereças um cacho de bananas a alguém, cuja capacidade seja a de
apenas poder descascar uma por vez”.
Pegar o cacho de volta, foi o que fiz, ali,
parado em frente àquela ingrata. Desisti; mas deixei algo no meu olhar, que a
fez acreditar estar eu pensando exatamente aquilo que eu estava pensando, pois:
“Ô mãe, vem cá dar um jeitinho no Domenico”.
O jeitinho que a minha mãe costumava dar,
principalmente quando alguém interrompia a sua séstea, já me era bastante
familiar. E vinha quase sempre montado em um cabo de vassoura, embora antes
viesse o tradicional “Domenico não te faz de bobo, deixa as tuas irmãs em paz”.
Bater em retirada? Bati.
Vandré,
com toda a certeza se inspirou no “A Arte da Guerra”, quando uma década depois
disse: “Quem sabe faz a hora, não espera acontecer”. E isto, foi exatamente o
que fiz, não deixei acontecer.
Olhei pela janela da cozinha e vi, à sombra
da espinheira santa, o Fiel cochilando como era de hábito. Era hora de cuidar
dos meus interesses, não sem antes dizer para elas: “E apurem com esta louça”.
Sem
que o Fiel tivesse tempo de ver o acontecido, aconteceu: juntei os ossos todos
que ele havia espalhado inclusive o maior e o mais pesado deles, e me afastei.
Entender aquele meu gesto ele não iria, mas que fosse se acostumando com a
idéia de que daquele dia em diante ele não teria mais a oportunidade de
exercitar aquele hábito canino de sepultar ossos, porque um valor mais alto se
levantara. Foi por um triz, porque de pé ele já ficara. Apesar do seu escasso
vocabulário, e conhecendo os limites dele, que era do tamanho da extensão da
coleira acrescido do gancho e comprimento da corrente, não dei a mínima pro seu
tom de brabeza manifesto naquele, “Argh, argh, argh”.
“Domenico, porque é que o Fiel tá
brabo?”.
“E lá vou eu saber. Pergunta pra ele”.
Disse isso e me afastei, de lado, para que elas não vissem o butim em minhas
mãos. Joguei a pilhagem toda longe das patas e vistas do Fiel, e voltei.
Contrariado, mas ainda em tempo de ver o trio, qual as Três Marias, saindo pela
porta do fundo da cozinha em direção ao quarto delas. Quando fecharam a porta
estranhei o não terem dito: “E seca a loucinha bem direitinho Dominiquinho”.
Aí,
a mais velha abriu a porta, enfiou a cabeça e disse o que não tinham dito. Foi
o quanto ela tirou a cabeça, do contrário o guardanapo, qual um chicote, não
teria estalado na porta.
Ao
vencedor, a louça para secar.
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Imagem: acervo do autor
Postagem: Bruna Detoni
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