terça-feira, 3 de janeiro de 2017

Devaneios (2)

o pARAÍSO PERDIDO

                                                                                                 

                                                                                                                      A.F. Monquelat

Nada é tão prazeroso quanto o escrever ou falar em mulheres. Muitos homens já o fizeram e, certamente, muitos e muitos outros também o farão. Afinal, felizmente, fazem elas parte de nossas vidas.
Embora desnecessário, não é por demais lembrar que toda e qualquer opinião aqui expressa é puramente pessoal e fruto da minha convivência e relacionamento com as muitas e mais diversas mulheres que fizeram, e fazem parte do meu histórico de vida.
Meu primeiro contato com a realidade deu-se através de uma mulher, minha mãe que, para me recepcionar, contratou uma outra mulher – a parteira.
Naquele tempo, tempo do meu nascimento, quase que sem exceção, nascia-se pelas mãos dessas mulheres, que tão logo nos arrancavam fazendo-nos despertar e sair do paradisíaco útero, nos aplicavam a primeira porrada da vida extra paraíso – maldita e despropositada palmada.
Ou você leitor, tem alguma dúvida que o único e verdadeiro paraíso de nossa existência dura apenas nove meses? Tem? Pois então pense, e descubra algum outro lugar que você possa viver e que lhe proporcione tudo o que se perde ao nascer. Não acredito que exista, ou você o encontre. Hóspede da vida intrauterina não paga água, luz, prestação, cartão de crédito, aluguel, imposto de renda, IPTU, IPVA e muitas outras e intermináveis invenções, afora o pedágio que os políticos nos aplicam pela estrada da vida. Ah! os políticos e seus execráveis governos, inferno de nossas existências.
Não foi por devaneio, divergência ou desvio de assunto que lhe propus essa viagem, e sim para lhe mostrar, ou tentar lhe dizer que o paraíso perdido, é o útero – a estalagem que o tempo, ou a vida, não mais nos devolverá.
Voltando à realidade, não esqueci do início deste texto onde eu disse, e agora repito, que não há algo tão prazeroso quanto o escrever ou falar em mulheres.
Nasci, e me criei cercado por mulheres. Além da minha mãe, quatro irmãs, que me encheram de palmadas e carinho. E, para ser sincero, recebi mais carinho do que palmadas, uma das razões para que até hoje mantenha com elas uma relação de afeto e amizade.
À exceção de uma tia, nenhuma outra mulher me infernizou a vida quando criança ou adolescente. Quanto a esta tia, por conselho de minha mãe, ignorei-a sempre que possível.
Uma das mulheres mais marcantes da minha vida foi minha avó paterna. Desta portuguesa herdei a franqueza e bastante conhecimento sobre as mulheres.
Vó Dorva não tinha papas na língua. E aquela língua sabia, como nenhuma outra, cada palavrão que nem é bom falar.
Uma das frases que me marcou, das tantas ditas por ela e que vez por outra me repetia era: “Meu neto, cuidado com as rachadas. Te cuida das rachadas”. Acho até desnecessário explicar quem e por que ela, minha avó, chamava de rachadas.
Dormi dezenas de vezes com vó Dorva. É, acho melhor esclarecer isto, ou dizer de outra maneira: dormi dezenas de vezes no quarto da minha avó. E sempre, luz apagada ou acesa, vó Dorva ficava conversando, até que de repente ela dizia: “Agora chega. É hora de dormir”.
Quase todas as noites, que no quarto dela dormi, ela falava sobre o meu avô Michelangelo. Um italiano de quatro costados, embora nascido em Pelotas. Minha bisavó, mãe do Michelangelo, veio jovem da Itália e com destino a Buenos Aires, assim como meu bisavô, Domenico, e milhares de outros italianos que por razões políticas ou não, imigraram.
Domenico e Maria Luiza, minha bisavó, casaram em Buenos Aires e depois, grávida de meu avô, vieram para Pelotas. Não os conheci. Tampouco conheci meu avô Michelangelo, que morreu jovem. Domenico, assim como o Michelangelo eram “artistas”, que era o mesmo que artífices e o mesmo que artesãos, isto no entender dos funcionários dos Cartórios de Registros; mas, que podemos simplificar para sapateiros, isso é o que eles eram.
Das histórias que vó Dorva contava, as sobre o meu avô Michelangelo eram minhas preferidas. Uma dessas histórias, em especial, era a que eu mais gostava. Aquela em que minha avó, no decorrer da narrativa as palavras eram acompanhadas de gestos, a certa altura dizia: “O teu avô, ó, só queria montar”. Ao dizer isso, ela estendia um dos dedos da mão, e com dois outros dedos da outra mão, abertos, ela fazia o gesto de montar, o que não deixava dúvidas quanto ao que ela dizia e nem tampouco o que o Michelangelo queria: ó, só montar.
A seguir os dedos eram desmontados, e ela me contava outras histórias do italiano, que lamento não ter conhecido.
Também minha mãe contava histórias sobre o Michelangelo. Uma das quais era mais ou menos assim: “O teu avô gostava de um maxixe. E uma ou duas vezes por semana, lá ia ele pro tal de maxixe, de onde voltava de madrugada. Tua avó não se importava que ele fosse e até, com muita paciência e dedicação, desde cedo aprontava a roupa, que ela passava e engomava com o maior cuidado, e sem a menor reclamação. O teu avô, aquele italiano, era fogo meu filho”.
Vou abrir aqui um parêntese, para lhes fazer uma confissão: até o presente eu não sabia direito o que era o tal de maxixe, mas eu imaginava fosse algo lascivo, pecaminoso, erótico e por aí afora, até que, ao escrever esta parte do maxixe do Michelangelo, resolvi olhar no “Dicionário de Música” e, com a frieza com que os dicionários nos explicam as coisas que não sabemos, lá estava: “maxixe – Dança urbana surgida no Rio de Janeiro por volta de 1875, de que se originou um gênero musical. Considerada a primeira dança genuinamente brasileira, antecessora do samba, resultou musicalmente da fusão do tango brasileiro e da habanera, pelo aspecto rítmico, com a polca, pelo andamento, com adaptação da síncope afro-portuguesa, segundo Mário de Andrade. É binária como essas outras formas, de caráter mais vivo que o tango ou o choro”.
Visto assim, de maneira tão técnica e fria, prefiro continuar com a minha forma de pensar o maxixe, e imaginar o Michelangelo dançando com sua parceira de maxixe, que, segundo minha mãe, era uma mulata extremamente bonita e sensual, que uma ou duas vezes por semana, com a complacência de vó Dorva, servia de par e companheira do meu avô Michelangelo, um italiano nascido em Pelotas, sapateiro, boêmio e que, segundo minha avó: “ó, só queria montar”.
Com o decorrer dos dias, meses e anos, passei a ver minha vó com menos frequência. Culpa das “rachadas”? Talvez. Circunstâncias da vida? Talvez.
De qualquer forma, e sem sentimento de culpa algum, lamento não ter perguntado tantas outras coisas sobre o Domenico, Maria Luíza, Michelangelo e tudo o mais que ela, com certeza, me responderia.
Pouco antes de sua morte, visitei-a no hospital. Daquele nosso último encontro, guardo-lhe o olhar maroto e o sorriso debochado que conservou até o médico deixar o quarto, não sem antes recomendar-lhe que não comesse doce algum. Tão logo ficamos sós, descobri a razão daquele olhar; pois vó Dorva, diante da proibição feita pelo médico, escondera uma caixa de goiabada debaixo do travesseiro e, em seguida que o médico fechou a porta, ela, com a certeza da minha cumplicidade, mostrou-me a caixa de goiabada, que algum outro cúmplice lhe havia levado, e disse: “Não posso comer doce é, ó, aqui pra esse doutorzinho de merda”. Essa talvez tenha sido sua última irreverência.
Não muitos dias depois de minha visita, vó Dorva morreu. Pouparam-me da notícia de sua morte. Acharam melhor. Fiquei sabendo um mês depois, tempo que levei para voltar a Pelotas. Assim que soube fui ao cemitério realizar a cerimônia do adeus e ali, diante de seu túmulo, fiquei a olhar o retrato daquela mulher, vó Dorva, minha primeira heroína.



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Imagem: acervo do autor
Postagem: Bruna Detoni       

2 comentários:

  1. Amei este texto. acho que é a lembrança doce e fiel de momentos lindos da infância e que por serem importantes,se perpetuam na nossa memória.

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  2. Realmente, Rita. Grato pelo belo comentário.

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