o pARAÍSO PERDIDO
Nada é tão prazeroso quanto
o escrever ou falar em mulheres. Muitos homens já o fizeram e, certamente,
muitos e muitos outros também o farão. Afinal, felizmente, fazem elas parte de
nossas vidas.
Embora desnecessário, não é
por demais lembrar que toda e qualquer opinião aqui expressa é puramente
pessoal e fruto da minha convivência e relacionamento com as muitas e mais
diversas mulheres que fizeram, e fazem parte do meu histórico de vida.
Meu primeiro contato com a
realidade deu-se através de uma mulher, minha mãe que, para me recepcionar,
contratou uma outra mulher – a parteira.
Naquele tempo, tempo do meu
nascimento, quase que sem exceção, nascia-se pelas mãos dessas mulheres, que
tão logo nos arrancavam fazendo-nos despertar e sair do paradisíaco útero, nos
aplicavam a primeira porrada da vida extra paraíso – maldita e despropositada
palmada.
Ou você leitor, tem alguma dúvida
que o único e verdadeiro paraíso de nossa existência dura apenas nove meses?
Tem? Pois então pense, e descubra algum outro lugar que você possa viver e que
lhe proporcione tudo o que se perde ao nascer. Não acredito que exista, ou você
o encontre. Hóspede da vida intrauterina não paga água, luz, prestação, cartão
de crédito, aluguel, imposto de renda, IPTU, IPVA e muitas outras e
intermináveis invenções, afora o pedágio que os políticos nos aplicam pela
estrada da vida. Ah! os políticos e seus execráveis governos, inferno de nossas
existências.
Não foi por devaneio,
divergência ou desvio de assunto que lhe propus essa viagem, e sim para lhe
mostrar, ou tentar lhe dizer que o paraíso perdido, é o útero – a estalagem que
o tempo, ou a vida, não mais nos devolverá.
Voltando à realidade, não
esqueci do início deste texto onde eu disse, e agora repito, que não há algo
tão prazeroso quanto o escrever ou falar em mulheres.
Nasci, e me criei cercado
por mulheres. Além da minha mãe, quatro irmãs, que me encheram de palmadas e
carinho. E, para ser sincero, recebi mais carinho do que palmadas, uma das
razões para que até hoje mantenha com elas uma relação de afeto e amizade.
À exceção de uma tia,
nenhuma outra mulher me infernizou a vida quando criança ou adolescente. Quanto
a esta tia, por conselho de minha mãe, ignorei-a sempre que possível.
Uma das mulheres mais
marcantes da minha vida foi minha avó paterna. Desta portuguesa herdei a
franqueza e bastante conhecimento sobre as mulheres.
Vó Dorva não tinha papas na
língua. E aquela língua sabia, como nenhuma outra, cada palavrão que nem é bom
falar.
Uma das frases que me
marcou, das tantas ditas por ela e que vez por outra me repetia era: “Meu neto,
cuidado com as rachadas. Te cuida das rachadas”. Acho até desnecessário
explicar quem e por que ela, minha avó, chamava de rachadas.
Dormi dezenas de vezes com
vó Dorva. É, acho melhor esclarecer isto, ou dizer de outra maneira: dormi
dezenas de vezes no quarto da minha avó. E sempre, luz apagada ou acesa, vó Dorva
ficava conversando, até que de repente ela dizia: “Agora chega. É hora de
dormir”.
Quase todas as noites, que
no quarto dela dormi, ela falava sobre o meu avô Michelangelo. Um italiano de
quatro costados, embora nascido em Pelotas. Minha bisavó, mãe do Michelangelo,
veio jovem da Itália e com destino a Buenos Aires, assim como meu bisavô,
Domenico, e milhares de outros italianos que por razões políticas ou não, imigraram.
Domenico e Maria Luiza,
minha bisavó, casaram em Buenos Aires e depois, grávida de meu avô, vieram para
Pelotas. Não os conheci. Tampouco conheci meu avô Michelangelo, que morreu
jovem. Domenico, assim como o Michelangelo eram “artistas”, que era o mesmo que
artífices e o mesmo que artesãos, isto no entender dos funcionários dos
Cartórios de Registros; mas, que podemos simplificar para sapateiros, isso é o
que eles eram.
Das histórias que vó Dorva
contava, as sobre o meu avô Michelangelo eram minhas preferidas. Uma dessas
histórias, em especial, era a que eu mais gostava. Aquela em que minha avó, no
decorrer da narrativa as palavras eram acompanhadas de gestos, a certa altura
dizia: “O teu avô, ó, só queria montar”. Ao dizer isso, ela estendia um dos
dedos da mão, e com dois outros dedos da outra mão, abertos, ela fazia o gesto
de montar, o que não deixava dúvidas quanto ao que ela dizia e nem tampouco o
que o Michelangelo queria: ó, só montar.
A seguir os dedos eram
desmontados, e ela me contava outras histórias do italiano, que lamento não ter
conhecido.
Também minha mãe contava
histórias sobre o Michelangelo. Uma das quais era mais ou menos assim: “O teu
avô gostava de um maxixe. E uma ou duas vezes por semana, lá ia ele pro tal de maxixe,
de onde voltava de madrugada. Tua avó não se importava que ele fosse e até, com
muita paciência e dedicação, desde cedo aprontava a roupa, que ela passava e
engomava com o maior cuidado, e sem a menor reclamação. O teu avô, aquele
italiano, era fogo meu filho”.
Vou abrir aqui um parêntese,
para lhes fazer uma confissão: até o presente eu não sabia direito o que era o
tal de maxixe, mas eu imaginava fosse algo lascivo, pecaminoso, erótico e por
aí afora, até que, ao escrever esta parte do maxixe do Michelangelo, resolvi
olhar no “Dicionário de Música” e, com a frieza com que os dicionários nos
explicam as coisas que não sabemos, lá estava: “maxixe – Dança urbana surgida
no Rio de Janeiro por volta de 1875, de que se originou um gênero musical.
Considerada a primeira dança genuinamente brasileira, antecessora do samba,
resultou musicalmente da fusão do tango brasileiro e da habanera, pelo aspecto
rítmico, com a polca, pelo andamento, com adaptação da síncope afro-portuguesa,
segundo Mário de Andrade. É binária como essas outras formas, de caráter mais
vivo que o tango ou o choro”.
Visto assim, de maneira tão
técnica e fria, prefiro continuar com a minha forma de pensar o maxixe, e
imaginar o Michelangelo dançando com sua parceira de maxixe, que, segundo minha
mãe, era uma mulata extremamente bonita e sensual, que uma ou duas vezes por
semana, com a complacência de vó Dorva, servia de par e companheira do meu avô Michelangelo,
um italiano nascido em Pelotas, sapateiro, boêmio e que, segundo minha avó: “ó,
só queria montar”.
Com o decorrer dos dias,
meses e anos, passei a ver minha vó com menos frequência. Culpa das “rachadas”?
Talvez. Circunstâncias da vida? Talvez.
De qualquer forma, e sem
sentimento de culpa algum, lamento não ter perguntado tantas outras coisas
sobre o Domenico, Maria Luíza, Michelangelo e tudo o mais que ela, com certeza,
me responderia.
Pouco antes de sua morte,
visitei-a no hospital. Daquele nosso último encontro, guardo-lhe o olhar maroto
e o sorriso debochado que conservou até o médico deixar o quarto, não sem antes
recomendar-lhe que não comesse doce algum. Tão logo ficamos sós, descobri a
razão daquele olhar; pois vó Dorva, diante da proibição feita pelo médico,
escondera uma caixa de goiabada debaixo do travesseiro e, em seguida que o
médico fechou a porta, ela, com a certeza da minha cumplicidade, mostrou-me a
caixa de goiabada, que algum outro cúmplice lhe havia levado, e disse: “Não
posso comer doce é, ó, aqui pra esse doutorzinho de merda”. Essa talvez tenha
sido sua última irreverência.
Não muitos dias depois de
minha visita, vó Dorva morreu. Pouparam-me da notícia de sua morte. Acharam
melhor. Fiquei sabendo um mês depois, tempo que levei para voltar a Pelotas.
Assim que soube fui ao cemitério realizar a cerimônia do adeus e ali, diante de
seu túmulo, fiquei a olhar o retrato daquela mulher, vó Dorva, minha primeira
heroína.
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Imagem: acervo do autor
Imagem: acervo do autor
Postagem: Bruna Detoni
Amei este texto. acho que é a lembrança doce e fiel de momentos lindos da infância e que por serem importantes,se perpetuam na nossa memória.
ResponderExcluirRealmente, Rita. Grato pelo belo comentário.
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