O velho Pongodó, Fiel e o equívoco de Heráclito
Tive uma infância
normal, com direito a chiqueirinho, chocalho, corneta, bico, mamadeira – isso
depois de ter largado a teta –, cobertor e travesseiro, no caso de sentir sono
e dormir ali mesmo – enchiqueirado.
Nessa
fase, tive também meu primeiro contato com a morte, embora disso, que eu vira,
somente mais tarde viesse a saber. Essa visão, a da morte, se deu da seguinte
maneira: uma parenta da minha mãe tinha ido nos visitar e, como era de costume,
essas visitas costumavam durar horas; foi então que a tal visita após o almoço
deitou-se para sestear, o que também era um hábito bastante freqüente, e não
mais acordou.
Minha
mãe cuidou para que a morta fosse velada na casa onde morrera, a nossa. Já noite
e posto para dormir, a certa altura acordei, desci da cama e caminhei no escuro
para investigar de onde provinham aqueles cochichos, que me tinham feito
despertar. No cochichódromo, a sala de nossa casa, havia muitas pessoas;
mulheres, em sua maioria. Corri os olhos e vi muitas daquelas mulheres, algumas
de luto preto, e de seus rostos não guardo a menor lembrança, sentadas em sua
maioria, cochichando umas nos ouvidos das outras.
Era
um mundo de adultos, e eu, ali, por certo, não deveria estar; mas estava, e não
me viram. E assim, sem entender nada daquilo, fui caminhando pelos espaços que
havia entre as pessoas que estavam em pé, e de costas para mim, até a mesa da
varanda, atraído pelas velas acesas e aquele enorme caixão preto. Dada a altura
da mesa, e a minha falta de altura, não consegui ver nada da morta, até que
alguém, e não sei quem, se deu conta da minha pequena e intrusa presença e
silenciosamente, decidiu me levar de volta para o quarto, e me pôr de novo a
dormir.
Muitos anos depois, relembrei daquele meu
episódio com a morte, lembranças não muito claras, e que precisavam ser
esclarecidas. E foi assim que, em conversa com minha mãe foram esclarecidos os
fatos quanto ao que eu vira quando pequeno, não sem antes ela, surpresa me
dizer: “Tu eras tão pequeno, como é que tu te lembras disso?”. O que eu não
lembro neste momento, é o que respondi para a minha mãe.
Não muitos dias depois do meu nascimento,
minha mãe e eu fomos visitar os pais da minha avó paterna, meus bisavós de
origem portuguesa e, segundo minha mãe, essa portuguesa ao me ver teria dito:
“Ô Celina, mas este menino já nasceu criado!”. Estas palavras, é todo o legado que
minha bisavó paterna me deixou. E o que ela quis dizer com isso é que eu havia
nascido grande e pesado. Do tamanho não lembro, mas meu peso ao nascer foi de
quase 5 quilos.
Do lado materno, não conheci avós ou bisavós.
Minha mãe ficou órfã de mãe muito cedo; e de pai, não muito tarde. Foi criada
pelo avô, que tomou conta da minha mãe e do meu tio. Este meu bisavô, também de
origem portuguesa, era oriundo do Povo Novo, e pelas coisas que dele ouvi,
relatadas por minha mãe, era um sujeito bastante temperamental. Contou-me ela
que, quando alguém o chamava de “pongodó”, ele ficava furioso e ameaçador.
Este apelido de “pongodó”, creio eu, era o
apelido que davam aos habitantes do Povo Novo por terem ali permanecido depois
da retomada do território pelos portugueses em 1776 e que, os que fugiam em
direção ao território castelhano, apavorados e temendo a represália por parte
das tropas portuguesas, ao passarem pelo Povo Novo diziam a todos aqueles que
ali se haviam arranchado ou permanecido durante a ocupação castelhana: “Pongo
dó en quien se quede acá”. O que, em tradução livre, entendo seja o mesmo que:
tenho dó de quem aqui ficar. Caso seja esta a origem, é bem possível que com o
passar dos tempos a expressão tenha adquirido, já contraída, uma conotação
pejorativa. Quem sabe? De qualquer maneira, se alguém quisesse provocar a ira
do velho José Manoel, meu bisavô, que o chamasse de “pongodó”.
Outra característica de meu bisavô, era a
forma ameaçadora que usava contra o meu tio e a minha mãe, em pequenos, quando
eles aprontavam alguma arte, ou algo que o contrariasse. A reação do “pongodó”
e o gesto ameaçador era imediato: “Olha crianças, que vos degolo de
orelha-a-orelha”. Ao ouvirem isso, o que mais os assustava era o gesto que o
velho José Manoel fazia: corria o dedo pelo pescoço, desde uma orelha até a
outra.
Acredito que aquelas palavras e o gesto que o
velho “pongodó” fazia, para assustar minha mãe e o meu tio, fossem
reminiscências da “Revolução Federalista”, da qual, o meu bisavô participara do
lado maragato.
Deste
“pongodó” federalista, segundo minha mãe, herdei a estatura e a cor dos olhos,
e hoje devo acrescentar a esta herança, uma simpatia pelos maragatos de
outrora.
Outro
personagem importante na minha vida, pelo menos durante os meus dois primeiros
sete anos, foi o Fiel. É claro que com este nome, Fiel, deste vocês devem ter
logo pensado tratar-se de um cachorro. E era; mas, não um cachorro qualquer.
Porque ele, embora bastardo, sempre foi tratado como meu irmão. Cachorro, porém
irmão.
Embora
eu e o Fiel tenhamos nascido no mesmo dia, não éramos irmãos gêmeos. De gêmeos,
tínhamos apenas o mesmo signo. Nascêramos de mães diferentes. A minha mãe era a
minha mãe, a do Fiel, uma cadela qualquer. Uma cadela de rua, uma vadia que meu
pai encontrou parindo. Para ser mais preciso, foi em uma valeta próximo do
local de trabalho do meu pai, que ele viu o recém nascido Fiel. Meu pai sempre
foi cachorreiro; não ao ponto de trazer a cadela e o resto dos bastardinhos,
daí ter levado apenas um dos filhos da vadia para a nossa casa, que foi o Fiel.
Era um dia de outono, aliás, um lindo, belo e
ensolarado dia de outono, segundo palavras da minha mãe. Palavras que me
levaram a pensar que, aquele dia, tinha sido o dia especial que foi, por causa
do meu nascimento; mas depois, me dei conta de que Fiel também tinha nascido no
mesmo dia, o que me levou a ter certa dúvida. Dúvida esta, que perdura até
hoje.
Bem,
como eu ia dizendo, o Fiel, ao ser apresentado para minha mãe, saiu do bolso do
casacão do meu pai e acho que naquele mesmo momento recebeu o nome que lhe
deram. Minha mãe foi bastante generosa em adotá-lo. Afinal, onde mama um mamam
dois. Eu no peito, ele na mamadeira que os dois improvisaram para ele, que
certamente foi uma das que estavam destinadas a mim. E assim, transcorreram os
dias, cada qual na sua teta. Bons dias, dias de come e dorme e dorme e come,
até que terminou a mamata para o Fiel que foi despejado para o pátio da casa.
Eu fiquei vigiando o movimento interno, o Fiel, o externo, o da rua.
Com
a premeditada intenção de tornar o Fiel mais eficiente e perigoso, e evitar que
ele virasse um cachorro bundão, minha mãe passou a misturar pimenta na comida
dele. Também suspeito que a mesma atitude ela teve comigo; mas são apenas
suspeitas e isto, porque adoro pimenta. Não por saber ser a pimenta um
afrodisíaco natural, coisa que descobri muito depois. E sim, porque gosto de
pimenta.
E assim, de mordida em mordida e de cadela em
cadela, foi o Fiel levando a sua vidinha de cachorro, com casa, comida e pelos
lavados.
E falando em banho, vou aproveitar para lhes
dizer que eu e o Fiel, somos prova de que o avô da dialética, o tal de
Heráclito, estava redondamente enganado quanto aquela afirmação de que a mesma
água não serve para banhar um antes e o outro depois; pois o Fiel tomava o
banho dele, quando nenê, na água que eu tinha me banhado; portanto, ao
contrário do que pensa o professor de filosofia, João Hobuss, os gregos não
acertaram ou pensaram tudo.
______________________________________________________Imagem: acervo do autor
Postagem: Bruna Detoni
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