Dois Anúncios
A. F.
Monquelat
Jonas Tenfen
“O tempo-areia que escorre entre as mãos
viu-se emaranhado ao longo da formação histórica de Pelotas pelos espectros da
escravidão. Em meio a este emergiram batuques e sambas apresentando outras
histórias, outras formas de estar no mundo.”
Dessa forma
que Jarbas Lazzari inicia seu texto no segundo volume do Almanaque do
Bicentenário; de forma sucinta, porém clara, apresenta os objetos de estudo que
o acompanham em décadas de trabalho intelectual. Buscar organizar em narrativa
cartesianamente organizada a história do cotidiano é segurar um punhado deste
tempo-areia nas mãos e buscar contar os grãos ali contidos. Apesar de ser árdua
a tarefa, há facilidade em perceber os espectros da escravidão na história do
cotidiano.
Cotidiano
difícil de ser matizado pela brutalidade dos trabalhos nas charqueadas. Mário
Osório, em “Pelotas toda a prosa”, traz tradução de excertos da descrição da
cidade, região e do trabalho na charqueada feita por Nicolau Dreys quando em
visita a Pelotas. A frase que se tornou mais ou menos canônica: “Uma charqueada
bem administrada é um estabelecimento penitenciário”. Lida em separado do texto
de Dreys, pode-se concluir que ali há uma severa crítica ao trabalho escravo,
quando seguidamente o autor dá escusas às culpas e penas que o trabalho impunha
aos escravizados. Mesmo a questão da penitenciária é uma metáfora, logo em
seguida explicada que não ocorrem crimes nas charqueadas e dá um leve elogio
aos cerceamentos da liberdade, pois “numa charqueada ou numa estância há menos
facilidades de nascerem e de se alimentarem os vícios comuns dos negros”.
Um outro
exemplo, a cena de abertura do filme “Concerto Campestre” (de 2005). A música é
alegre e vibrante, embora levemente entrecortada por mugidos e gritos de peões.
Apresenta-se sucintamente as etapas do trabalho da indústria saladeiril, de
forma a entender seus processos e a rudeza do trabalho. Trabalho este que causa
movimento, movimento que é sinônimo de vida, ambos ao som da empolgante trilha
sonora, torna possível ver na tela a exploração dos escravizados como abertura
de um filme romântico. A nós é agradável a canção do progresso quando
assistimos aos outros na dança do trabalho.
Depois
da consolidação do centro urbano, houve diversificação das atividades laborais
dos escravizados, antes centradas na produção do charque e na construção civil.
Torna-se financeiramente possível a figura do “escravo de ganho”, e sua
presença será bastante frequente a levar em conta a imprensa da época.
Observemos dois anúncios de jornal.
O
primeiro, do Diário de Pelotas, de julho de 1876: “Ama de Leite. Precisa-se
alugar uma ama de leite, sadia, sem cria e de boa conduta. Para tratar em cada
de Luiz Maurel. Rua de Yatahy, nº 110.” (Em agosto do mesmo ano, há outro
anúncio da mesma natureza no jornal: “Preciza-se de uma ama de leite, livre ou
escrava, porém sem cria, que seja carinhosa, não se fazendo questão do preço.
Para informações, nesta tipografia”. Como não se pode mais buscar aquela
tipografia para mais informações, impossibilitado fica de saber se era o mesmo
anunciante ou outro.)
O
segundo, do jornal Paiz, de dezembro de 1876: “Ama de leite. Vende-se uma
escrava moça, superior ama de leite, sadia, de bons costumes, engoma e cozinha
perfeitamente. Rua 16 de Julho, nº 17, Casa Vermelha.”
Sobre
este segundo anúncio que vamos nos deter mais atentamente. Há muito da história
da cidade que salta aos nossos olhos, muito da história do cotidiano nessas
poucas linhas de um anúncio de uma tentativa de transação comercial. Há também
uma tragédia que se mostra depois de desvelados alguns detalhes que se perderam
no cotidiano de outrora. Este segundo anúncio é quase imperceptível na página
do jornal, pois compete em atenção com grandes eventos. Contudo, está impresso,
testemunha em papel enfrentando as traças e a memória.
A
saber, a rua 16 de Julho teve seu nome mudado para Dr. Cassiano, que é o nome
atual. Há época, concentrava alguns prostíbulos, sendo frequente sua presença
nas páginas policiais por motivos de brigas e outros barulhos. Podemos entender
que a anunciante é desse ramo, além da localização, o complemento que ela dá ao
endereço “Casa Vermelha”. Pode-se inferir que uma escrava, alugada como
prostituta, engravidou em decorrência da função e está sendo vendida como ama
de leite.
A
ausência fala mais alto. Quem anuncia fala dos bons costumes e de outras
atividades que a escravizada pode desempenhar, mas o maior chamariz para o
negócio é o que ela não leva. Nos predicados, nada acerca do filho, pois a
levar em conta o primeiro anúncio, não havia interesse em se adquirir uma ama
de leite com o filho que a tornou mãe. Uma boca a mais para alimentar, mais uma
pessoa a ocupar a casa. O destino dessa ama de leite é o de ser separada do
filho, sendo essa criança deixada para trás na Casa Vermelha, sendo essa criança
dada à caridade de alguma instituição.
Pesquisa
historiográfica é um jogo de quebra-cabeças em que se trabalha mais com as
peças que faltam do que com as disponíveis. Não nos é possível dizer o destino
dessas pessoas, se a transação fora concluída, ou se a exploração sexual dessa
mulher acabaria se saísse da Casa Vermelha. Maio de 1888 está distante quase
doze anos do anúncio, mas pensar a abolição como o fim da exploração dos – daí
então – libertos, como o fim da escravidão no Brasil a partir de um golpe de
pena, é um acalanto de esperança em dias melhores. Estatisticamente falando, é
mais provável que esta mãe tenha passado toda a sua vida fazendo as mesmas
atividades e nunca reencontrado este filho.
Para
encerrar, novamente com Jarbas Lazzari: “Afinal, como sabia Walter Benjamin, o
inconformismo dos vivos não existe sem o inconformismo dos mortos, pois ‘nem
estes estarão a salvo do inimigo se este vencer’. E este tem vencido. E no caso
da história de Pelotas, o vencedor nos fez servos do capital e herdeiros do
imaginário senhorial escravista. Para irmos além desta condição histórica
teremos de enfrentar nossas mais torpes memórias, em especial os espectros da
escravidão.” As ruas de Pelotas gritam, basta querer ouvir.
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Fontes; CEDOV – Bibliotheca
Pública de Pelotas; imagem da ama de leite é wikicommons
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