quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

Dois Anúncios


Dois Anúncios



A.    F. Monquelat
Jonas Tenfen

 
“O tempo-areia que escorre entre as mãos viu-se emaranhado ao longo da formação histórica de Pelotas pelos espectros da escravidão. Em meio a este emergiram batuques e sambas apresentando outras histórias, outras formas de estar no mundo.”
Dessa forma que Jarbas Lazzari inicia seu texto no segundo volume do Almanaque do Bicentenário; de forma sucinta, porém clara, apresenta os objetos de estudo que o acompanham em décadas de trabalho intelectual. Buscar organizar em narrativa cartesianamente organizada a história do cotidiano é segurar um punhado deste tempo-areia nas mãos e buscar contar os grãos ali contidos. Apesar de ser árdua a tarefa, há facilidade em perceber os espectros da escravidão na história do cotidiano.
Cotidiano difícil de ser matizado pela brutalidade dos trabalhos nas charqueadas. Mário Osório, em “Pelotas toda a prosa”, traz tradução de excertos da descrição da cidade, região e do trabalho na charqueada feita por Nicolau Dreys quando em visita a Pelotas. A frase que se tornou mais ou menos canônica: “Uma charqueada bem administrada é um estabelecimento penitenciário”. Lida em separado do texto de Dreys, pode-se concluir que ali há uma severa crítica ao trabalho escravo, quando seguidamente o autor dá escusas às culpas e penas que o trabalho impunha aos escravizados. Mesmo a questão da penitenciária é uma metáfora, logo em seguida explicada que não ocorrem crimes nas charqueadas e dá um leve elogio aos cerceamentos da liberdade, pois “numa charqueada ou numa estância há menos facilidades de nascerem e de se alimentarem os vícios comuns dos negros”.
Um outro exemplo, a cena de abertura do filme “Concerto Campestre” (de 2005). A música é alegre e vibrante, embora levemente entrecortada por mugidos e gritos de peões. Apresenta-se sucintamente as etapas do trabalho da indústria saladeiril, de forma a entender seus processos e a rudeza do trabalho. Trabalho este que causa movimento, movimento que é sinônimo de vida, ambos ao som da empolgante trilha sonora, torna possível ver na tela a exploração dos escravizados como abertura de um filme romântico. A nós é agradável a canção do progresso quando assistimos aos outros na dança do trabalho.


            Depois da consolidação do centro urbano, houve diversificação das atividades laborais dos escravizados, antes centradas na produção do charque e na construção civil. Torna-se financeiramente possível a figura do “escravo de ganho”, e sua presença será bastante frequente a levar em conta a imprensa da época. Observemos dois anúncios de jornal.
            O primeiro, do Diário de Pelotas, de julho de 1876: “Ama de Leite. Precisa-se alugar uma ama de leite, sadia, sem cria e de boa conduta. Para tratar em cada de Luiz Maurel. Rua de Yatahy, nº 110.” (Em agosto do mesmo ano, há outro anúncio da mesma natureza no jornal: “Preciza-se de uma ama de leite, livre ou escrava, porém sem cria, que seja carinhosa, não se fazendo questão do preço. Para informações, nesta tipografia”. Como não se pode mais buscar aquela tipografia para mais informações, impossibilitado fica de saber se era o mesmo anunciante ou outro.)
            O segundo, do jornal Paiz, de dezembro de 1876: “Ama de leite. Vende-se uma escrava moça, superior ama de leite, sadia, de bons costumes, engoma e cozinha perfeitamente. Rua 16 de Julho, nº 17, Casa Vermelha.”
            Sobre este segundo anúncio que vamos nos deter mais atentamente. Há muito da história da cidade que salta aos nossos olhos, muito da história do cotidiano nessas poucas linhas de um anúncio de uma tentativa de transação comercial. Há também uma tragédia que se mostra depois de desvelados alguns detalhes que se perderam no cotidiano de outrora. Este segundo anúncio é quase imperceptível na página do jornal, pois compete em atenção com grandes eventos. Contudo, está impresso, testemunha em papel enfrentando as traças e a memória.


            A saber, a rua 16 de Julho teve seu nome mudado para Dr. Cassiano, que é o nome atual. Há época, concentrava alguns prostíbulos, sendo frequente sua presença nas páginas policiais por motivos de brigas e outros barulhos. Podemos entender que a anunciante é desse ramo, além da localização, o complemento que ela dá ao endereço “Casa Vermelha”. Pode-se inferir que uma escrava, alugada como prostituta, engravidou em decorrência da função e está sendo vendida como ama de leite.
            A ausência fala mais alto. Quem anuncia fala dos bons costumes e de outras atividades que a escravizada pode desempenhar, mas o maior chamariz para o negócio é o que ela não leva. Nos predicados, nada acerca do filho, pois a levar em conta o primeiro anúncio, não havia interesse em se adquirir uma ama de leite com o filho que a tornou mãe. Uma boca a mais para alimentar, mais uma pessoa a ocupar a casa. O destino dessa ama de leite é o de ser separada do filho, sendo essa criança deixada para trás na Casa Vermelha, sendo essa criança dada à caridade de alguma instituição.
            Pesquisa historiográfica é um jogo de quebra-cabeças em que se trabalha mais com as peças que faltam do que com as disponíveis. Não nos é possível dizer o destino dessas pessoas, se a transação fora concluída, ou se a exploração sexual dessa mulher acabaria se saísse da Casa Vermelha. Maio de 1888 está distante quase doze anos do anúncio, mas pensar a abolição como o fim da exploração dos – daí então – libertos, como o fim da escravidão no Brasil a partir de um golpe de pena, é um acalanto de esperança em dias melhores. Estatisticamente falando, é mais provável que esta mãe tenha passado toda a sua vida fazendo as mesmas atividades e nunca reencontrado este filho.
            Para encerrar, novamente com Jarbas Lazzari: “Afinal, como sabia Walter Benjamin, o inconformismo dos vivos não existe sem o inconformismo dos mortos, pois ‘nem estes estarão a salvo do inimigo se este vencer’. E este tem vencido. E no caso da história de Pelotas, o vencedor nos fez servos do capital e herdeiros do imaginário senhorial escravista. Para irmos além desta condição histórica teremos de enfrentar nossas mais torpes memórias, em especial os espectros da escravidão.” As ruas de Pelotas gritam, basta querer ouvir.
           

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Fontes; CEDOV – Bibliotheca Pública de Pelotas; imagem da ama de leite é wikicommons


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