quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

Chafariz das Nereidas, Sereias e Walt Disney


Chafariz das Nereidas, Sereias e Walt Disney

A. F. Monquelat
Jonas Tenfen



            O texto de hoje foi motivado por uma pergunta feita durante uma caminhada. Cortando pela Praça do Chafariz, fui interpelado sobre a razão de as figuras em forma de sereia terem duas pernas, mesmo que com escamas, no lugar daquele formato de corpo de peixe, como estamos acostumados a ver em filmes e animações. Recorrendo à história de Pelotas, mitologia clássica e aos estúdios Disney, a explicação se mostra fácil.
            O livro “Fontes d’Art no/au Rio Grande do Sul”, de José Francisco Alves, nos informa que “A instalação deste chafariz foi aprovada e, 23 de abril de 1873, para a então Praça Dom Pedro II, atual Praça Coronel Pedro Osório, a Principal de Pelotas. Seu funcionamento efetivo – fornecer água potável – ocorreu em 1874, conforme comunicado da Companhia Hidráulica à Câmara, em 4 de abril. O chafariz, instalado até hoje no mesmo local, foi o principal desses equipamentos que a cidade recebeu, sendo mais conhecido como ‘Chafariz das Nereidas’. Trata-se do mesmo modelo, em “escala reduzida”, do famoso chafariz apresentado pelas Fundições DURENNE na Exposição Universal em Londres (1862), lá instalado até 1872. Posteriormente, esse mesmo chafariz teria sido transladado para a capital da Escócia, Edimburgo, transformando-se naquele que é hoje um dos mais divulgados cartões-postais daquele país: o Chafariz Ross [Ross Fountain]. O notável modelo foi criado pelo escultor ornamentista Jules Klagmann, com a colaboração de Ambroise Choiselat.”
            Algumas páginas adiante no mesmo livro, encontramos a descrição de todo o chafariz, mas vamos citar apenas da Base: “no centro do tanque principal (interno, de ferro) ergue-se a estrutura central, vertical, do chafariz propriamente dito. Sua larga base com um diâmetro de aproximadamente 1,5 m e altura de 1,2 possui quatro nichos. Em cada um deles, consta um par de ninfas e uma carranca de leão no centro. Os pares de ninfas, em pose simétrica, vertem água das ânforas que apoiam em seus ombros para dentro de conchas com bordas rebuscadas. Das bocas dos leões também verte água para as mesmas conchas. As ninfas, que estão recostadas na estrutura sobre as conchas, estão seminuas e têm cauda de peixe em lugar das pernas, como bem devem ser essas típicas entidades mitológicas do reino de Tritão [Netuno]”.
            Ao autor da descrição faltou um pouco de atenção ao detalhe de que estas ninfas, como notou a autora da pergunta que nos motiva a escrever este texto, não têm caudas de peixe no lugar das pernas. Dois pares de pernas para cada uma, com saliências que lembram escamas e nadadeiras no lugar dos pés.
            Havemos de falar sobre nereidas, ninfas e sereias. A tradução do dicionário de mitologia de Pierre Grimal manteve a versão mais afrancesada da palavra, por isso encontramos na obra a entrada “nereides” (embora apresente como válida a versão aportuguesada). Filhas de Nereu e Dórias, netas de Oceano, sua quantidade é bastante variada, havendo assim entre 50 e 100 destas entidades. Seria muito interessante descobrir se as quatro figuras do Chafariz da Praça representam alguma nereida específica, como Tétis, Cálice ou Iera. Segundo o dicionário, “elas personificam, talvez, as inúmeras vagas do mar.”
            As ninfas, por sua vez, são representações várias dos campos, bosques e das águas, no mais das vezes, das águas doces. Sua ascendência muda dependendo do pesquisador, mas a versão mais corrente é que são filhas de Zeus. Divindades secundárias, estão no mundo, se cronologia é possível, a menos tempo que as nereidas e intervém mais nos afazeres e acontecimentos humanos.


            Por fim, as sereias. Ainda com Grimal, “as Sirenes viviam numa ilha do Mediterrâneo e, com a sua música, atraíam os marinheiros que passavam nas redondezas. Os barcos aproximavam-se perigosamente da costa rochosa da ilha, despedaçavam-se e as Sirenes devoravam os imprudentes. Conta-se que os Argonautas passaram perto das Sirenes, mas Orfeu cantou tão melodiosamente enquanto o navio Argo este ao alcance da sua música que os heróis não sentiram qualquer tentação de abordar a ilha [...] Quando por lá passou, Ulisses, prudente e curioso ao mesmo tempo, ordenou a todos os marinheiros que tapassem os ouvidos com cera e o amarrassem ao mastro, proibindo aos seus homens que o soltassem quaisquer que fossem os pedidos que ele lhes fizesse”.
            Os mitos mais antigos sobre as sereias as representam como parte humana, parte ave. Com o tempo, talvez por se tratar de uma ilha no mediterrâneo o lar dessas criaturas, pareceu mais conveniente aos artistas atribuírem a elas feições de peixe. Contudo, papel importante para a passagem de ave para peixe tiveram os marinheiros ao longo da história, pois vendo grandes mamíferos nadando – como a beluga – à noite, acabaram por enxergar ali formas femininas.
            Voltando às pernas, é muito mais comum encontrar representações para sereias como as ninfas do chafariz, do que da maneira como estamos condicionados a imaginá-las. O problema de imaginar um ser aquático feminino nadando é o inconveniente moralista de imaginá-las despidas. Parece que é algo muito antigo, mas é mais recente do que muitos imaginam: a marca da rede de café Starbucks é baseada em uma representação escandinava de uma sereia. Como o passar do tempo, a marca foi ficando mais estilizada e cada vez mais próxima da face da entidade mitológica, tentando disfarçar o exercício de flexibilidade que esta fazia.
            Problema semelhante enfrentou Walt Disney quando quis fazer uma animação com sereias para suas Silly Simphonies. Um monarca do fundo do mar tem suas amadas sereias sequestradas por piratas e a narrativa se desenrola para o resgate. Mas como fazer um desenho animado para crianças sobre sedutoras figuras femininas nadando sem vestimenta? A solução foi dar a elas cauda de peixe da cintura para baixo: ainda femininas, mas assexuadas. Esse é o enredo do episódio “King Neptune”, da série Silly Simphonies, de 1932. Essa animação popularizou o formato ocidental mais aceito da entidade mitológica, sendo à exaustão reproduzido em livros infantis, filmes e séries de televisão. De forma algum se quer afirmar que foram os Estúdios Disney os primeiros a desenharem sereias do modo como estamos habituados, basta olhar para o Brasão de Armas de Varsóvia, que é baseado em imagens do século XV. Afirma-se que, tal qual o monstro de Frankenstein, foi um filme que popularizou uma forma de uma personagem de ficção.

            Se hoje o Chafariz das Nereidas fosse montado, é possível que as figuras que despejam águas nas conchas tivessem outro formato, mais familiar a nós. Por falar em familiaridade, talvez seja esse o espanto da interlocutora ao questionar sobre as figuras do Chafariz: ela mesma nunca antes havia notado que elas possuíam pernas.
            Para encerrar, uma nota filológica. A palavra “sereia” como utilizamos vem do português arcaico “sereã”, que, por sua vez veio do latim, “sirena, -ae”, que por sua vez veio do grego. É raro o uso em português de “sirene” para “sereia”, embora a tradução do dicionário de Pierre Grimal a utilize. “Sereia” e “sirene” têm o mesmo radical, e, digamos, sempre prestamos atenção ao canto de ambas. “Serenata” e “seresta”, contudo, têm outra origem etimológica.

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Fontes: Consultamos a 5º edição do Dicionário de Mitologia Grega e Romana, de Pierre Grimal, publicado no Brasil pela Bertrand, e também o “Fontes d’Art no/au Rio Grande do Sul”, de José Francisco Alves. A imagem do Brasão de Armas de Varsóvia é wikcommons.

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