quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Charqueada do Sr. José Bento de Campos Filho



         A charqueada do Sr. José Bento de Campos Filho estava localizada à margem direita do Arroio Pelotas.
         Havia à entrada duas mangueiras, comportando em cada quatrocentas reses, o curro e, em seguida, a cancha, grande, de matança, tendo lugar para 44 carneadores.
         À direita, ficavam os varais, em número suficiente para comportar o charque de mil e tantas reses.
         Havia ao lado esquerdo da cancha um tanque de cimento para a lavagem do sebo.
         Ao pé, daquele tanque ficava um poço com 15 palmos de profundidade.
         Em seguida, estava o galpão de charquear, contendo ganchos para trezentas reses. Este galpão era, segundo descrição da época, enorme, e nele estavam duas mesas para a salga, nas quais trabalhavam quatro homens. Ainda no mesmo galpão estava a atafona, de madeira, para moer sal e cabendo ali em torno de quinze mil alqueires.
         Num galpão separado, havia três bons tanques de cimento sendo, um deles, para as costelas e dois para os couros. Podendo comportar cada trezentos couros. Ao pé estava a barraca, onde poderiam armazenar de oito a nove mil couros.
         Ao lado direito da cancha, estava um trilho de ferro, que ia até a graxeira.
         Naquele trilho, encontrava-se um carro, puxado por um animal cavalar, que servia para conduzir os couros, sebo, ossamenta, costelas, etc., para os respectivos compartimentos, abreviando assim o serviço.
         No pátio, tinha sete pilhas de madeira para charque, assentadas em pilares de cimento.
         Na graxeira, havia um bom cilindro, indústria nacional e, em redor, três tinas para graxa, comportando cada tina gorduras de duzentas a duzentas e cinquenta reses, e duas para o sebo.
         Próximo estava uma bomba aspirante feita em Pelotas, no Areal, na oficina de Bernardino ferreiro.
         Havia ainda duas fornalhas-caldeiras de ferro, para refinar graxa, comportando cada a graxa de três pipas.
         Ao pé, estava o depósito de graxa em bexigas e, fora, o depósito de sebo em barricas.
         A charqueada tinha três trapiches de embarque.
         Trabalhavam neste estabelecimento oitenta pessoas, das quais dez eram livres e, os demais, escravos.
         Tinha, para o serviço interno, dez carroças puxadas por um animal e trinta carrinhos de mão.
         No pátio, ficava uma boa casa de moradia, à beira do Arroio e, em seguida, a senzala, cocheira, cozinha, estrebaria e armazém.
         Havia na charqueada uma grande horta, duas quintas e dois potreiros, dos quais um era demasiadamente grande.
         Nesta charqueada, havia um animal cavalar, de raça, e seis animais vacuns.
         O que não se  aproveitava dos produtos bovinos era vendido à fábrica de guano do Sr. Elst.
         Todo o serviço da charqueada era fiscalizado pelo Sr. Jose Bento de Campos Filho.
         O serviço era “bem dividido não sendo demasiadamente pesado”, segundo palavras de um jornalista, que esteve em visita à charqueada, e acrescentou ainda, em 1884, que ali na charqueada do Sr. Campos Filho, “ a escravatura era bem tratada”.
         Pois, este mesmo jornalista é o autor de uma notícia veiculada em 10 de outubro de 1878, na qual era dito que tendo a senhora do Sr. J. Bento de Campos Filho, mandado à cidade um seu escravo, octogenário, vender quitanda e voltando este a casa depois da tarefa, com cinco patacas de menos, foi por seu senhor mandado estaquear e depois surrado até exalar o último suspiro.
         Prosseguindo a notícia, dizia o jornalista que, entretanto, são estes os homens que se dizem da ordem.
         E concluindo: “Por cinco patacas de pão, já se assassina nesta terra...”.

Bento Campos e o hediondo crime contra o pardo Vicente

         Este mesmo charqueador, Sr. José Bento de Campos Filho, foi o responsável, no ano de 1882, por um dos crimes mais hediondos praticados em Pelotas, contra a vida de um escravo.
       

  O fato, sucintamente, ocorreu da seguinte maneira: em janeiro de 1882, o pardo Vicente, escravo da charqueada do Sr. Bento de Campos Filho, foi visto por algumas pessoas, vindas da Serra dos Tapes, depois de se ter evadido do tronco em que se achava preso, na charqueada de seu senhor, por haver fugado.
         Informações do dia 30 daquele mês de janeiro davam conta de que Vicente fora visto, depois de ter passado pelo Arroio Corrientes, a caminho de São Lourenço.
         Atrás do pardo, havia muitas pessoas. Vicente jurara vingar-se daqueles que o haviam anteriormente capturado.
         Capturado novamente, Vicente foi posto outra vez no tronco e ali espancado brutalmente, por ordem de seu senhor.
         Segundo alguns órgãos           da imprensa, na época, Vicente teria sido açoitado em torno de 1.000 vezes, o que, como consequência, poucos dias depois do ocorrido, agosto de 1882, veio a falecer.
         A morte do Sr. José Bento de Campos Filho ocorreu, em Pelotas, no mês de setembro de l890.
        



Fonte de consulta: Bibliotheca Pública Pelotense - CDOV
Revisão do texto: Jonas Tenfen        
Tratamento de imagem: Bruna Detoni

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Com o Diabo na Praça da República



                                                                                  De dois cigarros dei cabo,
                                                                                  Fazendo esta versalhada;
                                                                                  Mas cigarros da afamada,
                                                                                  Da popular marca Diabo;
                                                                                  Os que mais são consumidos
                                                                                  Pelos fumantes bizarros,
                                                                                  E, como ouvi de diversos,
                                                                                  São dados, não vendidos.
                                                                                  Só gosto de ler bons versos,
                                                                                  Tendo ao lado bons cigarros... 
                                                                                              T.


         Em sessão realizada dia 10 de julho de 1901, à noite, foi lido pela diretoria da União Gaúcha um ofício encaminhado pelo Sr. João Simões Lopes, no qual era comunicado àquela instituição que ele iria dar à marca de fumo do estabelecimento industrial, que estava a instalar nesta cidade, a denominação de União Gaúcha.
         Em resposta ao ofício, decidiu a diretoria da União Gaúcha agradecer a gentileza da lembrança do “apreciável” industrialista.
         Cremos que a origem do empreendimento, que Simões Lopes Neto anunciava instalar, fosse a fábrica de fumos estabelecida há tempo e funcionando com regularidade à Rua Dr. Pio, na cidade de Rio Grande.
         Simões Lopes deve tê-la adquirido por volta do mês de novembro de 1900 dos Srs. Araújo Medeiros & Cia. e, logo a seguir, transferido o equipamento para Pelotas.
         Em janeiro de 1901, João Simões & Cia. comunicavam aos seus comitentes e amigos, que mudaram o seu escritório, da Praça da República [atual Coronel Pedro Osório], para junto do seu antigo depósito, à Rua Sete de Abril [atual D. Pedro II] nº 52.
         A fábrica de fumos e cigarros passou a funcionar regularmente em Pelotas, em agosto de 1901, sob a denominação de Diabo.
        
O estabelecimento dividia-se em duas instalações distintas: fábrica, à Rua Independência [atual Rua Uruguai] nº 73, depósito, e também manufatura à, Rua Sete de Abril nº 52.
         Thomaz, o Sagaz, em sua coluna intitulada De Plantão do dia 21 de agosto de 1901 se referindo à nova atividade de Simões Lopes, diz que todos nós sabíamos que o Bemol, o Sr. Serafim, [referência a um dos pseudônimos de Simões Lopes] era um notável em diversos misteres...
         Entendido em comércio, em indústria, em administração pública, versado em hipnotismo, graduado em militância, bacharel no teatro, maluco pela imprensa, o homem ainda teve tempo para dedicar-se a fumos.
         E... fez o diabo... Nem mais, nem menos...
         Agora mesmo, prosseguia Thomaz, ao deixar sobre a tira aquelas mal traçadas  linhas saboreava um adorável caporal da amostra farta que para a redação mandara o Bemol em latas e pacotinhos de vários tamanhos e feitios, irrepreensíveis no acondicionamento caprichoso, preciosos pela qualidade dos produtos que continha.
         Os companheiros aos quais chegou à distribuição do oportuno presente eram unânimes em elogios às diversas marcas que lhes coube, de onde podiam claramente concluir que os fumos que fazia o Bemol eram indistintamente de uma qualidade a toda prova.
         Tanto Thomaz, o colunista, quanto os companheiros não elogiavam mais, porque o fabricante era capaz de desconfiar.
         Que o fumo era bom, era a mais certa das verdades, e ele estava convencido que, apesar da sua origem diabólica, o Padre Eterno não arrumaria com outro o seu secular cachimbo.
         Thomaz encerrava a coluna chamando a atenção dos leitores: “Vejam só que reclame [propaganda] para o Bemol”.

Concurso de balões como forma de propaganda


       
  Integrando-se as comemorações do Jubileu da Imprensa de Pelotas, de cuja comissão João Simões Lopes Neto juntamente com os Srs. Tancredo Fernandes de Melo, Dr. Antônio Paiva, Dr. César Dias e Dr. João Coelho Cavalcanti, fazia parte, a recém-criada empresa João Simões & Cia., proprietários da marca de cigarros Diabo, promoveu esta um concurso de balões-reclames, cujas condições estavam publicadas em outro espaço da edição do jornal Correio Mercantil de 31 de outubro de 1901.
         O evento ocorreria na festa popular que teria lugar dia 10 de novembro, à noite, na Praça da República e, segundo constava ao jornal, outros concursos do mesmo gênero ocorreriam.

Com o Diabo na Praça da República

         Avultada multidão popular, desde as primeiras horas da noite do dia 10 de novembro de 1901,afluiu à Praça da República e arredores.
         Era profusa a iluminação nos corredores, jardins, a bicos Auer e lampiões venezianos, numa quantidade inumerável e variedade de copinhos, lanternas, placas de gelatina, etc., e etc. Nos quarteirões, eram queimados, seguidamente, fogos de bengala de várias cores.
         No chafariz e no lago, havia projeções luminosas.
         Pouco depois das 19 horas realizou-se o anunciado concurso de balões reclame “da importante fábrica de fumos e cigarros marca Diabo”.
         Dos quatro (4) balões inscritos, dois retiraram-se. Os dois que subiram, “aliás, de bonito efeito”, foram ambos desclassificados: o primeiro, com um lado preto e outro branco, tendo neste bem recortados em preto, os letreiros e a marca – figura do diabo – caiu pouco adiante.
         O segundo balão, realmente bem acabado e que deveria apresentar o mais vistoso aspecto, ao subir, perfeitamente equilibrado, por um descuido, deixou ficar em terra, o clou [atrativo principal] do reclame; a mesma figura diabólica da marca da Fábrica, levando presas diversas engenhosas lanternas representando exatamente os diversos tipos de pacotinhos dos fumos e dos cigarros daquela “conhecida e acreditada casa dos Srs. João Simões & Cia.”.
         Foram convidados para juízes o Sr. tenente-coronel Godoy, despachante Firmo Braga e inspetor Martins.
         Queremos aproveitar para dar nossa opinião a respeito da efemeridade da fábrica, pelo menos tendo Simões como proprietário, que em hipótese alguma aceitamos a ideia de ter sido em função do boicote da Igreja Católica aos cigarros, por levarem a marca Diabo.  Dentre outros, nos apoiamos no fato de não haver de forma impressa manifestação alguma neste sentido como, e principalmente, por ter Simões Lopes vendido a fábrica e a marca, que foi mantida pelos novos proprietários.
                 



Fontes: Bibliotheca Pública Pelotense – CDOV – Diário da Manhã, Pelotas, 07-08-2012, p. 15, A fábrica Diabo de João Simões & Cia.
Revisão de texto: Jonas Tenfen
Tratamento de imagem: Bruna Detoni

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

A charqueada do comendador Heleodoro de Azevedo Souza

                   
                                                                                     A.F.Monquelat


        
         O estabelecimento do Sr. Heleodoro de Azevedo Souza tido na década de 80 como único em seu gênero, pela limpeza e asseio, estava situado à margem esquerda do Canal São Gonçalo, no porto da cidade de Pelotas.
         À esquerda da entrada, estava a casa de moradia do Sr. Heleodoro, onde “se encontravam todas as comodidades”.
       À frente, estava a cancha da matança onde trabalhavam vinte e cinco carneadores, todos sob a supervisão e fiscalização do proprietário da charqueada.
         Qualquer rês abatida que, por uma eventualidade qualquer, se sujasse, era imediatamente lavada, bem como o local onde o fato ocorrera, de forma que a próxima rês encontraria tudo limpo.
         Ao lado, estava o galpão de charquear, com ganchos para duzentas reses.
         O galpão era assoalhado e, ali mesmo, estavam as mesas para a salga, em numero de três, trabalhando em cada mesa duas pessoas.
         Havia também, no mesmo galpão, um depósito de sal fino que comportava quatro mil alqueires. Ainda naquele local se faziam as pilhas de carne, costumando ser em número de quinze.
         A um canto estavam dois bons tanques de laje e cimento, para as costelas.
         Por encanamento, era aproveitada a salmoura, que ia ter ao tanque de couros, na barraca.
         No pátio, em frente, estavam os varais em número suficiente para a carne de mil e duzentas reses.
         Entre o galpão de charquear e a barraca, havia uma grande eira, de cimento, que servia para estender ao sol o sal a fim de secá-lo.
         À beira do Canal, estavam dois tanques grandes, de cimento, para a lavagem do sebo e tripas, tendo ao pé uma bomba aspirante, movida a mão, e uma torneira com encanamento da Companhia Hydraulica Pelotense.
         A barraca era o local onde faziam o descarne e, ao pé, estava o tanque de salmoura para duzentos couros, podendo esta barraca comportar cinco mil couros.
         Tinha esta charqueada três trapiches, sendo um para o embarque dos couros, outro para carnes e gorduras, e outro para o desembarque do sal.
         Na graxeira, havia um bom cilindro, de força de trinta cavalos dinâmicos, indústria nacional, fabricado na Costa, na oficina dos sucessores de Vidot.
         Em redor, estavam três tinas para graxa e uma para o sebo, comportando cada a gordura de duzentas reses.
         Em oito tinas, volantes, as gorduras esfriavam.
         Fora estavam quatro tanques de tijolo, que serviam para sangrar as tinas e como depósito de resíduos.
         O cilindro era suprido por água da Companhia Hydraulica Pelotense e, ao pé, havia ainda uma bomba aspirante, indústria nacional, também fabricada na sucessão Vidot, localizada na Costa.
         Perto dos tanques para resíduos, havia um poço de vinte palmos de profundidade.
         Ao pé das tinas, havia um compartimento, que servia de depósito de pipas vazias.
         No depósito de graxa, havia duas fornalhas-caldeiras, de ferro, comportando cada mil e duzentos quilos de graxa.
         Ao centro, havia outra caldeira de ferro para esfriar a graxa e embexigar.
         Em frente, estava o depósito de cinza, que servia também de depósito de barricas e cascos.
         No pátio, tinha oito pilhas de madeira para o charque, situadas à beira do Canal São Gonçalo.
         Nesta charqueada, os rondadores eram escolhidos entre os próprios escravos, sendo “tal distinção” determinada pelo charqueador. No ano de 1884, era seis o número de rondadores que a charqueada possuía.

      
  Em compartimentos separados, estava a casa de atafona para moer sal, tendo de cada lado um depósito de sal, sendo um para cinco mil alqueires e outro para vinte mil. Havia ainda, em outros compartimentos, um depósito para miudezas, cozinha, senzalas, hospital, um bom depósito para lenha, podendo este comportar a lenha de três barcadas, e um outro para mantimentos.

         Tinha uma boa casa para banho, com todas “as comodidades”, sendo o banheiro bem grande e todo de azulejos, também havia chuveiro.
         À direita da entrada, estava a casa do capataz.
         Trabalhavam nesta charqueada setenta pessoas, sendo vinte livres e cinquenta escravos.
         Tinham quatro carroças para o serviço, puxadas por animais cavalares, quatro carroças de mão e trinta carrinhos.
         A mangueira era de madeira e nela podiam caber mil e duzentos animais.
         Todo o serviço de cancha era feito com animais cavalares.
         O trabalho de matança e charquear eram sempre feitos de dia, o que era considerado uma ideia digna de imitação “pelos salutares resultados que apresenta”.
         Esta charqueada era a única que tinha encanamento da Companhia Hydraulica Pelotense.
         Todos os galpões eram assoalhados e “faz gosto ver a limpeza, quer no assoalho quer nas paredes”.
         Podia dizer-se, segundo palavras de um visitante, que uma senhora poderia visitar aquele estabelecimento levando calçados brancos, que não os mancharia com uma só gota de sangue.
         Em todo o serviço, só era desperdiçado o sangue dos animais abatidos, tudo o mais era aproveitado para diferentes fins.
         Possuía o Sr. Heleodoro quinze animais vacuns, de raça, e cinco cavalares.
         Tinha cinco potreiros grandes, dois menores e uma horta grande.
       Todo o serviço era fiscalizado pelo próprio Sr. Heleodoro de Azevedo, coadjuvado por seus filhos.
   Este estabelecimento industrial estava situado ao pé da cidade, no porto de desembarque e ponto terminal da linha de bondes, sendo por isso visitado diariamente por muitas pessoas.
         Aos 14 dias do mês de janeiro de 1886, um negro, escravo do Sr. Heleodoro de Azevedo Souza Filho, que fugira da charqueada, foi ferido com um tiro de bala, que lhe disparou um indivíduo que andava em sua procura para capturá-lo, segundo ordens do charqueador.
         O Sr. Heleodoro de Azevedo Souza faleceu na madrugada de 3 de agosto de 1887, em Pelotas.

        
        
Fonte de consulta: Bibliotheca Pública Pelotense - CDOV
Revisão do texto: Jonas Tenfen        
Tratamento de imagem: Bruna Detoni


terça-feira, 10 de novembro de 2015

Da Tablada à charqueada*





Estamos em abril de 1882. 




     O canal de São Gonçalo, um canal levemente tortuoso e que tem, em média, 400 metros de largura, é envolvido, de ambos os lados, por planícies baixas; avistando-se muitas léguas ao fundo, do lado do poente, morros arredondados.
As planícies aluviais, bem acima do nível do canal, em geral coberto de macegas, apresentam-se com uns grupos eventuais de árvores e uma linha tênue de matas encostando as margens.
A atividade comercial da cidade é demonstrada pelo grande número de embarcações do porto; há, pelo menos mais de 50, sem levarmos em conta os vasos miúdos e as chatas.
A cidade é bem traçada, com ruas largas e um extraordinário número de belos prédios públicos e particulares, muitos se defrontando a um grande largo, como se fosse um parque ou jardim, em volta de um hotel, o melhor da cidade. As ruas esgalham-se de ambos os lados, abrigando as principais casas de comércio. 
Há um grande número de armazéns, muitos dos quais nada devem aos do Rio de Janeiro e, pelas ruas, paira um ar de prosperidade.
Esta cidade, com seus 20.000 habitantes, deve toda a sua prosperidade à indústria do charque, ou ao comércio com o interior, que diretamente dependente desta.
A parte meridional é quase plana, porém é praticamente coberta por terrenos abertos, próprios para pasto.
Uma das mais características e ao mesmo tempo mais selvagens e interessantes vistas de Pelotas é a Tablada.
A Tablada é um descampado quase liso e extenso, onde, de dezembro a maio, se vendem os rebanhos que chegam. 
Ali, rudes gaúchos, vestidos com a habitual camisa de chita, ceroulas fofas ou bombachas e ponchos riscados, galopam em todas as direções, mantendo os animais nos lugares e tentando evitar que as tropas se misturem. O gado, exausto das longas jornadas e espantado com aquela estranha cena, conserva-se junto, movendo os chifres e rugindo em tom de queixa.
Os charqueadores movem-se, rapidamente, aqui, ali e acolá, em belos cavalos, examinando as várias tropas, calculando-lhes o valor, com rapidez e precisão admiráveis, e fechando os negócios, às pressas, com estancieiros e peões.



    O mercado é muito ativo, dada a forte concorrência entre as duas ou três dezenas de charqueadores que ali comparecem; em geral, as boiadas inteiras são vendidas não muito depois das chegadas.
A tropa ou tropas, muitas vezes levadas para uma das charqueadas junto ao arroio Pelotas, são confinadas por muitas horas, em cercados, denominados de mangueiras.
As mangueiras se estreitam em ponta, numa das extremidades, onde se comunicam com um curral menor, chamado de mangueira de matança, capaz de represar 30 cabeças de gado juntas, afocinhando em ambas as extremidades, fortemente cercado, com um pavimento de pedras lisas ou chapões inclinados para a extremidade oposta à entrada; por fora da cerca e rodeando-a, há um passeio de tabuões para os trabalhadores.
A matança em geral ocorre pela manhã.
Lotada a mangueira da matança, é esta fechada e atiram um laço ao chifre ou à cabeça do animal; este laço, passado por um moirão, é preso a uma junta de bois ou cavalos, os quais são tocados imediatamente do curral, arrastando o animal laçado pelo declive escorregadio até embaixo; ali, fica diretamente debaixo da mão do desnucador, que ergue um punhal comprido e muito afiado, e o enfia no pescoço do animal, geralmente entre a primeira vértebra cervical e os ossos occipitais.
Aquele golpe não mata instantaneamente, porém, priva o animal de toda sensibilidade; a seguir o animal cai em um carro de plataforma, que está contínuo com o assoalho da mangueira; levanta-se a seguir uma porta, tirando-se rapidamente o carro, descarregam-no e põem-no de novo no lugar, a tempo de receber outro animal que, nesse meio tempo foi laçado.
Toda a operação leva em torno de um minuto e, na maioria das vezes, numa só charqueada e no decorrer de um dia, matam-se 600 a 700 cabeças de gado.
A carcaça, puxada do carro por um homem a cavalo, vai para o grande prédio em que são executadas as operações restantes, quase sempre executadas por escravos.
Esfola-se, rapidamente, o couro tomando cuidado, ao abrir o pescoço, de enterrar uma faca no coração, que ainda pulsa.
Acabada a esfolação se limpa a carne dos ossos em oito pedaços, que são jogados em estacas horizontais; dois trabalhadores hábeis cortam-na e retalham-na, então, de maneira que cada pedaço fica reduzido à espessura uniforme de cerca de 15 milímetros.
A esta operação utiliza-se um verbo especial: charquear; e, dele, derivam os substantivos charque, charqueada, charqueador, ...
Esfregado bem o sal na carne, empilham-na em camadas, primeiro sal, segunda carne, depois nova camada de sal e assim sucessivamente; as pilhas chegam à altura de vários metros, com o duplo efeito de impregnar a carne de salina e de escorrer os líquidos contidos nela, pela própria pressão; este efeito aumenta-se reempilhando no dia seguinte, de maneira que as camadas de cima, tiradas primeiro, formam a base de nova pilha, e são por sua vez comprimidas.
De 8 a 10 quilos de sal usam-se para a carne e penduram-na em varais, ao ar livre, para secar, tomando cuidado de, à noite, puxá-la para uma ponta do varal e cobri-la com lona.
Para a secagem, preferem tempo um tanto enuviado e ventoso; se chove, empilha-se de novo a carne e, para o fim da safra, quando as chuvas são fortes e mais frequentes, conservam-na empilhada até chegar o tempo seco de setembro e outubro; desta maneira mantém-na quase sempre sem estragar.
Os couros, bem limpos, são metidos na salmoura, que escorre das pilhas de carne; depois de 24 horas, tiram-nos, cobrem-nos de sal, e estão prontos à embarcar para os mercados da Europa, onde os preparados deste modo são muito apreciados e mais valorizados.
A gordura e o sebo são espremidos por aparelhos especiais e dispendiosos, em que se emprega o vapor de alta pressão.
Os ossos incineram-se nas fornalhas que produzem este vapor, e a cinza deles resultante vai para a França, onde a usam como adubo.
  As línguas são vendidas aos estabelecimentos especiais que as preparam; os chifres são exportados para diversos usos e, em algumas charqueadas, utilizam o sangue para fazer gelatina.
Cerca de 400.00 cabeças de gado são abatidas anualmente, com pequenas variações de um ano para outro.
Estes animais, negociados na Tablada, totalizam uma operação de mais ou menos 22 mil contos de réis, que são embolsados pelos estancieiros.


 
 
*Texto concebido a partir das impressões deixadas pelo Dr. Theodoro Fernandes Sampaio, engenheiro, geógrafo, escritor e historiador brasileiro, quando de sua passagem por Pelotas.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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 Acervo: Bibliotheca Pública Pelotense - CDOV
Revisão de texto: Jonas Tenfen

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

A charqueada do Sr. Joaquim da Silva Tavares




         A charqueada do Sr. Joaquim da Silva Tavares, segundo os que a visitaram na década de 80 do século XIX, era considerada uma das mais importantes dentre as charqueadas pelotenses.  Estava localizada à margem esquerda do São Gonçalo, na Costa.
         À direita do galpão da matança, estavam duas tinas de madeira para cozinhar sebo, pelo antigo sistema.
         Em outro compartimento, estava a fornalha-caldeira, com 3 (três) cilindros, sendo dois deles para aquentar a água e o outro para o vapor, sendo sua força de 14 (quatorze) cavalos dinâmicos.
         Fora dali estavam 3 (três) digeridores, verticais, de ferro, comportando gorduras de 160 a 170 reses, que eram cozidas em 6 (seis) horas.
         Logo que a graxa estava pronta, ia esta por um encanamento até um depósito, de cimento, de onde outro tubo a levava ao depósito geral.
         Ao pé da fornalha, estava uma bomba horizontal, também movida a vapor, e que enchia as tinas.
         A água para o serviço vinha de um poço artesiano, com sessenta palmos de profundidade, que ficava no pátio. Ao lado ficavam 3 (três) tanques de cimento, onde ficavam depositados os resíduos da graxa.
         Ainda ali, havia um poço com 20 palmos de profundidade.
         Na graxeira, estavam 2 (duas) tinas colocadas ao alto, onde, por um tubo vinha a gordura do tanque de cimento.
         As tinas estavam colocadas de tal forma, que podiam encostar as torneiras às pipas para enchê-las de gordura.
         Havia também duas fornalhas-caldeiras para refinar graxa, comportando cada em torno de 60 arrobas.
         A graxeira servia ainda de depósito para barricas e tinha varais onde colocavam as bexigas.
         No pátio de entrada da charqueada, ficava uma bomba aspirante, indústria nacional, movida a mão. Também havia outra bomba igual, tendo ao pé um grande tanque de cimento para lavar o sebo de 200 reses, operação esta que levava duas horas.
         Ao centro da charqueada, estava a cancha da matança, onde trabalhavam 26 carneadores.
         A charqueada do Sr. Joca Tavares era, talvez, a única que aproveitava a água da chuva e, para tal,  mandara construir um depósito de ferro com capacidade para armazenar 400 pipas de água.
         No galpão de charquear, havia ganchos para dependurar 250 reses, se necessário, e nele trabalhavam 30 pessoas.
         Ao fundo da charqueada, estava o depósito do sal, que comportava 14 mil alqueires. Tinha no local 3 (três) mesas para a salga, empregando cada mesa 3 (três) pessoas.


         As carroças entravam naquele galpão com o propósito de carregar o charque para os varais, que estavam no terreiro e eram em quantidade tal que podiam estender o charque de 1.200 reses.
         Na barraca do couro havia um grande tanque, com capacidade para conter 250 couros, havia também outro tanque onde colocavam as costelas. Na barraca era possível armazenarem 10.000 couros. O descarne era aproveitado para a exportação e as garras eram propriedade dos escravos.
         Havia no pátio geral da charqueada, 4 (quatro) pilhas[pilastras] de madeira e palha, para o charque.
         No início do mês de janeiro do ano de 1884, eram empregados nesta charqueada sessenta e cinco pessoas, sendo 48 escravos.
         Para o serviço da charqueada, havia a disposição 30 carros de mão, e 8 (oito) para uso de cavalos.
         No serviço marítimo, era usado “um bom iate”, tripulado por 3 (três) homens livres e 1(um) escravo.
         A fornalha-caldeira era alimentada à lenha e a carvão nacional.
         Esta charqueada possuía uma mangueira, de madeira, com capacidade para 800 ou até mesmo 1.000 reses, um curral de espera e um curro, tudo de madeira.
         Ao centro da cancha de carnear, havia um trilho, de ferro, por aonde um carro conduzia o animal abatido até à frente do carneador.
         Em compartimento separado, estavam a senzala, a casa do capataz, o depósito das carroças e a casa de moradia do proprietário.
         Possuía ainda o Sr. Tavares 3 (três) potreiros, sendo 1 (um) grande e 2 (dois) pequenos, bem como 2 (duas) “bonitas e bem cultivadas hortas”.
         Estava em construção, na época, uma linha férrea para conduzir o charque até o cais.
         A fama da graxa produzida naquela charqueada era tamanha, que muitas vezes ainda nem estava na graxeira e já estava toda ela vendida.
         Quando da visita da princesa Isabel a Pelotas, fevereiro de 1885, disse o jornalista que acompanhou a comitiva, Sr. Maximino Serzedello, ao descrever algumas das charqueadas por ele visitadas, que todas as outras, a exceção da do Sr. Joaquim da Silva Tavares, cujas caldeiras para o fabrico do sebo e cola era de ferro, tinham as suas caldeiras de madeira, o que resultava no consumo maior de tempo do que a do Sr. Tavares na extração da graxa, sebo, etc.         
        
        



Fonte de consulta: Bibliotheca Pública Pelotense - CDOV
Revisão do texto: Jonas Tenfen        
Tratamento de imagem: Bruna Detoni