sexta-feira, 29 de abril de 2016

Salão Marly: a casa do maxixe e outros maxixes*

(parte 2/4)


                                                                            A.F. Monquelat



A noite das garrafadas no Salão Marly

         Dia 2 de setembro de 1916, os escândalos do Salão Marly, segundo a imprensa, tinham assumido proporções deprimentes.
         Os moços elegantes, de toda casta, depois de uma gritaria infernal em que não faltou “imundície e podridão” que lhes não saísse da boca, começaram a jogar para o alto as garrafas que, ao cair, se espatifavam com grande barulho.
         A cerveja e o vinho corriam pelo chão, como água.
            Para o repórter fora aquilo uma reprodução indigna da Noite das Garrafadas, dos tempos de D. Pedro I.
         Como se não bastasse, após essas expansões de ânimo, “os moços bonitos” arrastando cadeiras saíram para a rua, continuando fora a balbúrdia infernal. Mas, não contentes em gritar apenas, em se insultarem uns aos outros, desceram pela Rua 7 de Abril [atual D. Pedro] e foram parando pelas portas, deixando em cada uma, um presente mal cheiroso.
         Batiam nas janelas, sobressaltando os moradores, causando a sensação de que o mundo vinha abaixo.
            Era tal a impressão que aquelas desordens causaram e tão longe foram ouvidas, que no dia seguinte a cidade inteira comentava de que à Rua 7 de Abril, houvera um grande conflito, tendo inclusive sido dito que duas pessoas haviam morrido e uma perdera o braço.
            Portanto, para evitar questões mais sérias, era preciso que as autoridades tivessem energia e mandassem fechar o Salão Marly, impedindo assim que se realizassem os costumeiros bailes de sábado e domingo.
         Enquanto o desejo da imprensa não se realiza e aproveitando que o baile terminou, façamos nós uma avaliação do que até então foi dito: vimos que, segundo o noticiado, ali se misturavam todas as classes sociais, desde o sapateiro remendão do beco ao moço elegante da porta do Café Java: a figura do sapateiro me remeteu para o meu avô Michelangelo, sapateiro, filho de imigrantes italianos e maxixeiro de primo canto que, segundo minha avó, não perdia maxixe nos fins de semana. Ao que me conste, não era ele vagabundo, indecente ou imoral, tanto que, sua companheira de maxixe era uma mulata que morava próximo à casa de meus avós e, que se soubesse, entre eles não havia nada que não uma parceria de diversão, ou de maxixe, e iam maxixar com o conhecimento de minha avó.   




         Outro fato que entendemos pertinente ressaltar, era quanto a presença dos moços chiques, bonitos e elegantes da porta do Café Java, ponto de reunião da sociedade de Pelotas e que, pelo comportamento à saída do Marly, se portaram de forma inconveniente, como verdadeiros vagabundos e desordeiros, para não dizer ralé. E, ao que parece, se em seus salões não permitiam o maxixe, iam eles à procura do maxixe nos bailes populares.
         Voltando aos bailes públicos, dizia o repórter do jornal O Dia, em 30 de setembro de 1916, que, agora que a polícia do Sr. tenente-coronel Cristhovam José dos Santos  estava procurando moralizar os costumes, já perseguindo o jogo do bicho, já mandando fechar as tavolagens, o que o jornal registrava com aplausos, não seria demais que voltasse as suas vistas para os bailes públicos, anunciados com atoarda na imprensa local.
Hoje, 30 de setembro, se realizaria um, à Rua 7 de Abril, numa zona habitadíssima por famílias, que viviam sobressaltadas com os tais charivaris, verdadeiros pomos de discórdia, pela sociedade suspeita que ali se reunia, para entregar-se a todas as licenciosidades, beberagens e desordens.
Quando terminavam os referidos bailes, durante a madrugada, os convivas que dali saíam, desciam a Rua 7 de Abril a proferir as maiores obscenidades e a dar murros nas portas das habitações, alarmando as famílias.
         Não podemos compreender, dizia o repórter, que a polícia, numa atitude apreciável, mandasse fechar os cabarets e permitisse o funcionamento de tais antros, promovendo assim as reuniões da ralé e do baixo meretrício, sempre atentatórios à ordem pública.
         Nas cidades medianamente policiadas, a autoridade transigia com o funcionamento de bailes dessa ordem no Carnaval. Aqui, na nossa terra, em que tais diversões não tinham cabimento, pois ofendiam, por todos os motivos, o bom nome social que gozávamos, as referidas reuniões eram permitidas pela polícia!

Charivaris na Rua Sete de Abril

Não fazia muito, 30 de setembro de 1916, O Dia, tendo em vista a moral pública e a tranquilidade da família, chamara a atenção de quem de direito para uns charivaris que se realizavam aos sábados à Rua 7 de Abril.
Juntava-se, então, em tal antro de vício e perdição, o que o meretrício e a corja tinham de mais distinto, do que resultava que os denominados bailes eram pomos de graves desordens e de quanta patifaria o vizindário tinha que aguentar dos ilustres convivas, avinhados e cheios de deboche.
Sobre o fato, fizera-se o mais revoltante silêncio, e os tais bailes continuavam a se realizar, procedendo que as autoridades pouco se importasse que as famílias que ali viviam, em sobressalto, verdadeiramente escandalizadas, se recolhessem a mais fechada das convicções, que só às próprias autoridades deviam a intranquilidade em que viviam.
Pelotas estava transformada em verdadeiro paraíso do vício e da contravenção.
Acordassem os senhores da polícia e da administração: era a família pelotense, insultada nos seus brios, que vos pedia um pouco da vossa boa vontade em prol da moral e dos bons costumes.
A propósito, recebera o jornal a seguinte carta, em 11 de outubro de 1916: “O Dia prestará um serviço às famílias domiciliadas à Rua 7 de Abril, proximidades do Salão Marly, continuando a ocupar-se dos bailes realizados nesse antro da perdição.
Nas noites de sábado e domingo, em que funciona o tal salão, reina ali a mais completa desordem, que põem em sobressalto os moradores da quadra e lugares próximos.
As providências até agora pedidas às autoridades, inclusive ao próprio Sr. Intendente, não têm sido adotadas, infelizmente.
Urge cortar o mal pela raiz, mandando fechar aquela pocilga, centro de reunião do que a cidade tem de mais baixo e perigoso. Ass: UM PREJUDICADO”.
                                                                                           

   Continua...


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(*) Extraído do livro, ainda inédito, A princesa do vício e do pecado
Fontes: acervo da Bibliotheca Pública Pelotense - CDOV
Revisão do texto: Jonas Tenfen
Fotografia de Édouard Stebbing de c. 1910 intitulada "O maxixe"

segunda-feira, 25 de abril de 2016


Salão Marly: a casa do maxixe e outros maxixes*(parte 1/4)
                      
                                                                                     A.F. Monquelat
      
         A palavra maxixe, em Pelotas, parece ter servido inicialmente para designar toda e qualquer atividade que envolvesse bailes populares, e não o gênero musical maxixe que, como tal, teve sua origem na segunda metade do século XIX, sendo, segundo alguns estudiosos, uma pioneira dança urbana surgida no Brasil.
         Parece não haver dúvidas que a dança é oriunda da Cidade Nova, bairro do Rio de Janeiro, “cuja principal característica era a forte presença de afrodescendentes”.
         Quanto às origens estilísticas: tango, polca, lundu e habanera.
            Na história social, ou história popular de Pelotas, não temos registros precisos que possam nos indicar quando e onde o termo maxixe deixou de ser sinônimo de baile para determinar o tipo de dança ou o gênero musical maxixe, de qualquer forma, a palavra foi empregada pela imprensa pelotense desde a década de 70 do século XIX.
          Pelotas é uma cidade onde a presença do negro africano e afrodescendente foi expressivamente marcante, tendo sofrido a influência do Rio de Janeiro em seus hábitos e costumes. Não é de estranhar, contudo, que o maxixe fosse tocado lá e imediatamente dançado aqui, onde os bailes populares ou mesmo de caráter privado eram frequentados por escravos, negros libertos, negros livres, além de pobres e imigrantes de baixa condição social.
         De qualquer forma, podemos afirmar que Pelotas maxixou, e maxixou bastante, se não desde o século XIX, no século XX, principalmente nas suas três primeiras décadas.
          O maxixe, uma dança de caráter muito sensual, foi logo rotulado de indecente e teve proibida a sua entrada nos salões e recintos não populares.
         Discriminado por uma elitizada minoria, foi desde o nascimento acolhido pelas camadas populares, que pouco se lhes dava que fosse indecente ou imoral, desde que elas pudessem dele se aproveitar.
         Que o dissesse a mulata Clara Garcia, de 23 anos de idade, residente à Rua Dr. Cassiano nº310, toda do samba e maxixeira.
         A mulata, aos sábados, infalivelmente, logo que escurecia, começava a se preparar para brilhar em um rega-bofe qualquer, exibindo com volteios constantes, as suas habilidades de maxixeira consumada.
         Porém, em certo sábado de abril de 1935, estava ela pesada e, por volta das 5 da madrugada, em uma casa de diversão que existia à Rua Marques de Caxias [Santos Dumont], entre General Neto e Voluntários, quando já com a cabeça entontecida pelos vapores alcoólicos, mais exagerando nos requebros, Clara perdeu o equilíbrio e esparramou-se no assoalho, na queda fraturando o cotovelo direito.
         Socorrida por muitos dos presentes, foi Clara transportada para a Santa Casa, que, por sorte, ficava poucos metros daquele centro de diversões.
         Embora bastante popularizado em Pelotas, e praticado em vários locais e pontos da cidade, nenhum desses ambientes de maxixeiros foi tão conhecido e frequentou tanto as páginas das ocorrências policiais, quanto o famoso Salão Marly, localizado à Rua Sete de Abril [atual D. Pedro II], razão pela qual lhe reservamos um cantinho especial neste trabalho.
         Não sabemos quando inaugurado foi o Salão Marly, e tampouco por quem, talvez até o nome Marly fosse o nome da proprietária do salão que, como já o dissemos, estava localizado à Rua 7 de Abril, atual D. Pedro II, próximo à ponte sobre o Arroio Santa Bárbara.
         Os bailes ali eram realizados, em sua maioria, aos sábados e domingos para a indignação da imprensa pelotense e do vizindário, que não entendia porque a polícia permitia escândalos daquela natureza.
         Também era inconcebível que a própria polícia lhe desse o seu apoio e, até chegasse a frequentá-los, assistindo com olhares voluptuosos e de braços cruzados as suas peripécias e incidentes, que se sucediam vergonhosamente, ofendendo a moral, perturbando a ordem, confirmando a própria inépcia, e a comprovada e reprovada falta de energia.
         Essa polícia que se mostrava por vezes tímida e de embotada paciência nos bordéis e, outras vezes feroz e irascível nas esquinas.
         Por diversas vezes tinha a imprensa se referido à constante ameaça de perturbação da ordem que ofereciam aquelas reuniões do Salão Marly, onde se misturavam todas as classes sociais, desde o sapateiro remendão do beco ao moço elegante da porta do Café Java; já mesmo noticiara conflitos e desordens que ali se desenrolaram; já chamara a atenção das autoridades; já pedira providências.
         As autoridades, porém, permaneciam complacentes, e os policiais que para ali eram enviados, por um trago de cachaça, cruzavam os braços e ficavam de olho caído. Vejamos nós que:
 
Maxixe na Praça
         Tendo em vista a discriminação nacional que sofria o maxixe, não nos causa surpresa alguma que a imprensa pelotense tivesse, para com esse, a mesma postura e, como tal, servisse qualquer ocorrência para os jornalistas praticarem seus preconceitos, daí, sob o título de “Furto no maxixe da Praça”, um dos jornais locais, informava aos seus leitores que, aos 8 dias do mês de dezembro de 1912, no maxixe desbragado que funcionava à Praça Piratinino de Almeida, esquina da Rua Sete de Setembro, o chofer do auto nº 42 da Garagem Fabres, Lourival Ávila, foi despojado do seu relógio pela mundana Maria Assis, que o convidara para dançar.
         A meliante deixou o seu par a ver navios e deu sebo nos calcanhares, não sendo encontrada pelo chofer, no local onde residia [Corredor do Pimpão].
         Lourival Ávila deu queixa à polícia, que estava agindo.
         Poucos dias depois, expressava novamente a imprensa sua indignação quanto aos maxixes através do jornal A Reacção, no qual era dito que, no sábado último, dia 14 de dezembro de 1912, no escandaloso maxixe que funcionava à Praça Piratinino de Almeida, esquina da Sete de Setembro, deram-se várias desordens.
         Um indivíduo, porteiro do templo da orgia, esbofeteara um rapaz que ali entrara, maltratando-o também com palavras ofensivas.
         O jornal chamava a atenção da polícia para o referido centro de badernas.
                                                                                              Continua...
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(*) Extraído do livro, ainda inédito, A princesa do vício e do pecado
Revisão do texto: Jonas Tenfen
Tratamento de imagem: Bruna Detoni
Foto: Acervo A. Monquelat

quarta-feira, 20 de abril de 2016


Ciclismo: um esporte da elite pelotense

                                                                                     A.F. Monquelat

         Os primeiros biciclos [veículo de duas rodas geralmente de diâmetros desiguais, tendo a da frente, a maior, as funções de diretriz e motriz] apareceram em Pelotas por volta do ano de 1885. Foram eles adquiridos pelo visconde de Souza Soares, como instrumentos de diversão, para as festas ocorridas no Parque Souza Soares.
         Por serem já usadas, é possível que tivessem pertencido a algum circo de variedades, dos tantos que passaram pela cidade.
         A armação desses biciclos era metálica, sendo que as rodas eram de madeira, chapeadas de ferro, com um diâmetro de cerca de 80 centímetros e uma base de 3 cm. O comprimento era de mais ou menos 1.80 m. Como fossem longos, davam a impressão de bicicletas, se bem que os pedais acionassem a roda anterior.
         Por volta do ano seguinte, 1886, surgiu em Pelotas um biciclo “bem típico e belo”, vindo de Paris e que era, segundo diziam, elegantemente dirigido por Bernardo da Nova Monteiro. A roda da frente deveria ter 1.20m de diâmetro e a menor 30 ou 35 centímetros. Eram forradas com borracha maciça de 2 cm de base, sendo o pedal na roda da frente.
         Dava-se-lhe o impulso correndo subia-se por dois pedais que havia no suporte da roda traseira.
         É importante lembrar que naquela época as ruas da cidade não ofereciam as mínimas condições para passeio em tal veículo; entretanto, o Sr. Monteiro chegou a ir algumas vezes ao Parque Souza Soares, assistir às diversões domingueiras naquele recanto no novo meio de transporte.
         As primeiras bicicletas que aqui chegaram foram pelo início do ano de 1896. Eram de dois irmãos Leivas Leite e de outros dois Simões Lopes, vindas especialmente da Europa.
         Nesse mesmo ano, logo a seguir, o visconde de Souza Soares trouxe de Paris outras duas, para seus filhos Leopoldo e Miguel de Souza Soares, que se encontravam estudando na cidade de Rio Grande. Eram elas da famosa marca Clement, com pneus de pressão, da fábrica Dunlop, trazendo os primeiros antiderrapantes ao nosso meio.
         Estes pioneiros do mundo do ciclismo faziam muito sucesso quando saíam pelas ruas de Rio Grande (onde não eram conhecidas as bicicletas), provocando um acúmulo de pessoas às portas das lojas, armazéns e diversas outras casas de comércio, curiosos com a novidade.
         O duro contratempo era provocado pelos cães das ruas (que na época infestavam as ruas da cidade), que atacavam os iniciantes ciclistas, jogando-se contra as pernas destes.
         No ano de 1897, vieram de Paris outras bicicletas por encomenda, como a de Myrtil Franck (o Boulanger), a de Carino Souza, da marca La Française, que viera acompanhada de dois trajes completo de ciclista. A de Myrtil Franck era de borrachas maciças, de péssimo cômodo e de um insuportável peso de pedais.
Carino Souza
         Do grupo de ciclistas amadores, irmanados nas excursões dominicais, participavam também Ambrósio Perret Júnior, Lúcio Lopes dos Santos Sobrinho, Miguel de Souza Soares e muitos outros.
         Depois surgiram os irmãos Le Coultre, relojoeiros suíços, estabelecidos à Rua General Osório nº 256, que aqui montaram a primeira bicicleta Tandem, com dois selins, que era uma bicicleta de grande comprimento.
         A seguir, Hermann von Hüelsen Filho, mecânico em Pelotas, que aumentou o desenvolvimento de sua bicicleta fabricando uma roda dentada bem maior e um pinhão adaptado, para conseguir vencer o campeão riograndino, em corrida realizada no antigo Prado Pelotense, disputando mais tarde com um cavalo, em corrida especial, saindo vencedor o ciclista.
Hermann von Hüelsen
         Posteriormente, apareceram muitas outras marcas, de vários países, com freio contrapedal, pedal-livre, com mudanças de velocidade, contadores de marchas e de quilômetros, etc. As primeiras eram iluminadas a querosene, depois a acetileno e, por último, à eletricidade.
 
Notícias sobre o hábito do ciclismo em Pelotas
         Com o título de “Sobre Bicyclettes”, dia 29 de agosto de 1897, o Correio Mercantil publicou a tradução feita por um colaborador daquele jornal, que se assinava K (que acreditamos se tratar de João Simões Lopes Neto), na seção SPORT, a qual o jornalista chamou de interessante tradução.
         Dizia ainda o redator do jornal, que tendo se desenvolvido aqui o gosto pela “bicycletia”, recomendava tal artigo especialmente à atenção dos que a praticavam.
         Aos 7 dias de setembro de 1897 no Parque Pelotense, onde tocou a banda de música União Democrata e afluíram numerosos visitantes, estiveram, à tarde, os membros do Club Cyclista, “que se entregaram a diversos exercícios”.
 
Novas atividades dos membros do Club Cyclista
         Informava o Correio Mercantil de 26 de setembro de 1897, que às 6 horas daquele dia, os membros do Club Cyclista fariam uma excursão até o Passo do Salso [Fragata], a duas léguas desta cidade, caminho da Serra dos Tapes.
         No regresso, os ciclistas passariam no Parque Souza Soares, onde seriam fotografados por um amador, pelo processo instantâneo, com as máquinas (bicicletas) em movimento de carreira.
 
Nova excursão ao Passo do Salso
         O Club Cyclista comunicava via imprensa que, às 5 horas da manhã do dia 10 de outubro de 1897, seguiriam em direção ao Passo do Salso “os cyclistas desta cidade”, cujo número era cada vez maior, e, às 14 horas, se reuniriam no Parque Pelotense.
         Informava o Club também, que brevemente fariam uma viagem à São Lourenço, cuja distância era aproximadamente de 14 léguas desta cidade.
 
O Prado Pelotense e o ciclismo
         A direção do Prado Pelotense em 6 de novembro de 1897, sob o título de “Velocipedia”, comunicava pretender organizar no domingo (14-11-1897) uma corrida de bicyclettes na raia daquele hipódromo, e para esse fim reuniria os “nossos velocipedistas” com o intuito de com eles combinar as bases da diversão.
         A reunião seria no dia 8 daquele mês, no escritório do Prado, às l9 horas.
         Esperava a diretoria que a corrida fosse organizada e o público pelotense pudesse, pela primeira vez, gozar daquele interessante divertimento, “hoje tão em voga” nas principais cidades do Brasil.
         Dando prosseguimento à ideia, a diretoria do Prado pelotense publicou uma nota, na qual chamava aos Srs. ciclistas e reunirem-se na segunda-feira, 8 de novembro de 1897, às 19 horas na Rua 16 de Julho [atual Dr. Cassiano] nº 72ª (escritório do Prado) para tratar da organização das corridas de bicyclettes a efetuarem-se no dia 14 daquele mês.

                                                                                             

                                                                                              Segue...
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Fontes: acervo da Bibliotheca Pública Pelotense - CDOV
Revisão do texto / tratamento de imagens: Jonas Tenfen

quinta-feira, 14 de abril de 2016

Terena, a princesa cigana (parte2/2)



O funeral cigano

         De acordo com o chefe do grupo, João Caldaras, quando morre algum membro do bando, a dor, as lágrimas, e lamentos, generalizam-se entre todos os seus componentes.
         O funeral do povo cigano diferia em alguns aspectos de outros funerais. O corpo era velado do mesmo modo. Hinos eram entoados em louvor à alma do falecido. Após a retirada do esquife, dois a três baldes de água eram jogados ao solo da barraca onde se realizara a cerimônia do velório. As vasilhas usadas com a água eram tombadas com as respectivas bocas viradas para o lado que seguiria o cortejo fúnebre. Toda a cerimônia era realizada com o mais profundo respeito. Ao chegar à necrópole, após baixar à sepultura o caixão, todos os integrantes do grupo jogavam moedas sobre o mesmo. O significado dessas moedas, segundo Caldaras, era para pagar qualquer dívida que o morto por ventura possuísse na terra, para que assim sua alma pudesse descansar em paz.
         Três dias após o sepultamento, era realizado um almoço em homenagem ao falecido, no qual, obrigatoriamente, faziam parte todos os componentes do grupo.
         Um ano após o falecimento, novo almoço era realizado. Neste, uma pessoa é vestida com os trajes daquele que falecera, representando-o vivificado e desobrigando a família do morto ao uso do luto.
         Em resumo, essas eram as principais cerimônias realizadas durante os funerais dos ciganos.

A chegada de Terena e seu grupo a Pelotas

         Por volta de fins de dezembro do ano de 1882, um bando de ciganos originários da Hungria, chefiados por João Caldaras, acampara nos arredores da cidade, mais precisamente na extremidade da Rua Conde d’Eu [atual Avenida Bento Gonçalves] próximo à Rua Manduca Rodrigues [atual Professor Araújo].

A morte e o enterramento da cigana Terena Caldaras

         Com seus vistosos trajes, sua alegria característica, o bando passava os dias em seus afazeres até que, dia 2 de março de 1883, a dor e o luto se abateram sobre o grupo, após o falecimento de Terena, a esposa do chefe do acampamento.
         Durante os dias 2 e 3, o corpo conservou-se em câmara ardente, velado por todos que constituíam a comunidade.   


         No sábado, dia 3 de março, uma banda de música, das duas contratadas, tocou algumas peças fúnebres ao romper do sol, junto à barraca onde o corpo estava amortalhado.
         Dia 4 de março, o corpo foi conduzido ao cemitério local.
         As pomposas homenagens de saudade que lhe tributaram indicavam, realmente, a amizade que lhe consagravam.
         Antes da retirada do caixão da barraca, onde se encontrava o corpo, recebeu as orações de encomendação de acordo com o ritual da Igreja católica.
         Atrás do esquife, iam os homens e mulheres do grupo, eles descobertos, quase todos em colete, e elas de roupas escuras e lenços amarrados na cabeça, uns como outros, portando uma vela de cera acesa, envolta em crepe.
         O caixão foi carregado em mãos até a Ponte de Pedra [que ficava na esquina da Rua Marechal Floriano] sendo ali colocado em carro fúnebre que, acompanhado pelas duas bandas de musica, o conduziu até o cemitério local.



         Uma vez colocado o caixão na cova, cada integrante do grupo colocou-lhe em cima muitas moedas de cobre, segundo o jornal Correio Mercantil da época.
         Diz-nos o jornal A Discussão, do mesmo período, que a boa ordem junto a certa imponência que exibiam quantos pertenciam àquela extensa família, que vivia em comum, ao desfilarem até o cemitério, acompanhando o féretro, atraiu considerável número de pessoas, calculadas seguramente em mil (1.000), que seguiram a pé o cortejo fúnebre.
         O ataúde que era de louro [madeira], polido e ricamente enfeitado, foi até a ponte do arroio Santa Bárbara [ponte de pedra] carregado à mão não só pelos integrantes do grupo como também por muitas outras pessoas da localidade.
         Por dois sacerdotes que seguiram em carro, foi encomendado o corpo da finada na capela do cemitério, sendo o caixão deposto em uma sepultura rasa lajeada e preparada para esse fim, colocando-se no mesmo caixão, no ato de enterrar-se, grande quantidade de moedas de ouro e joias de valor.


         As despesas que o bando de Terena Caldaras despendeu com as cerimônias fúnebres, segundo informações colhidas por aquele órgão de imprensa, foram de 3:600$000 [três contos e seiscentos mil réis].
         Diante do exposto, podemos deduzir que até a data em que o Sr. Ruy Queiroz, março de 1956, informou ao grupo de ciganos aqui acampados, liderados por João Caldaras, que no cemitério local havia um túmulo onde estavam depositados os restos mortais de uma cigana, de nobre descendência, de nome Terena Caldaras, e do qual o grupo não tinha conhecimento algum, não havia romaria ao túmulo dessa personagem, portanto, tal fenômeno é algo relativamente novo.
         Diante desse fato, a redescoberta do túmulo da pitonisa (cartomante) Terena Caldaras, que aqui faleceu em certo dia de março do distante ano de 1883, continuaremos pesquisando e coletando material para futuramente, quem sabe, voltarmos ao assunto.




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Fontes: acervo da Bibliotheca Pública Pelotense
Revisão do texto: Jonas Tenfen
Tratamento de imagem: Bruna Detoni
Ilustrações: Zé Povinho, março de 1883

Foto: Acervo de Bruno Martins Farias

sábado, 9 de abril de 2016

Terena, a princesa cigana (parte1/2)


A “maldição da princesa cigana”, que já demonstramos se tratar de mais um dos tantos mitos existentes na história popular da cidade de Pelotas, pois praga ou maldição alguma foi lançada sobre a cidade quando da morte desta, aqui ocorrida em 2 de março de 1883 que, em maiores detalhes poderá ser vista em nosso artigo A maldição da “princesa cigana”, disponível, dentre outros meios de divulgação, em nosso blog pelotasdeontem.blogspot.com.br, conforme postagem de 20 de outubro de 2015.
Porém, quando por falta de maiores informações demos por concluído o nosso artigo, ficaram várias interrogações sobre a, desde muito, mais famosa ou popular morta, cujo jazigo é o mais frequentado de nosso cemitério.
A principal interrogação e que continua nos visitando é: a partir de quando e por que começou a romaria ao túmulo dessa personagem, cujo motivo é o fato de a ela se socorrerem aqueles que precisam de algo ou alguma coisa?
Tal resposta ainda não temos, no entanto, trazemos aqui novos fatos sobre a princesa Terena Caldaras relativos a sua “tribo” e descendência.
Por volta dos primeiros dias de março de 1956, um grande bando de ciganos acampou nas redondezas da cidade, dirigidos por João Estevão Caldaras que, juntamente com sua mulher Vitória Cristo, sua filha Sultana Estevão Caldaras e com Zafra V. Borba, viriam a prestar significativa homenagem à sua ancestral: Terena Caldaras.

Caldaras e sua família encontravam-se com sua tenda armada nas proximidades da caixa d’água da Andrade Neves, na época tido como “Bairro da Luz”.
Era um grupo de ciganos que, conservando as tradições de seu povo, viviam em barraca.
As mulheres trajavam vistosas indumentárias multicores.
O Sr. Ruy Queiroz, que os visitou quando ali estiveram acampados, diz-nos que ao chegar ao acampamento foi recebido por todos os elementos que compunham o grupo chefiado por Caldaras.  A recepção foi festiva, demonstrando a maior afetividade possível “para estes de outra raça” que tanto tinham feito para menosprezá-los, injuriá-los e caluniá-los.
Segundo o Sr. Queiroz, os ciganos pertencem a uma raça como todas as outras existentes nesse desentendido mundo, bons e ruins; generalizá-los, portanto, era um erro.
Quando o Sr. Ruy chegou ao acampamento, encontravam-se na hora do almoço. Sobre uma mesa que não teria mais de 30 centímetros de altura, vários pratos de apetitosos aspectos, eram saboreados pela família zingara.
A família Caldaras insistiu para que o visitante compartilhasse de seu repasto.
A conversa girou sobre diversos assuntos. Em primeiro plano, o furto de que haviam sido vítimas na noite anterior, de todo os utensílios de cozinha. Seguiu-se a conversa com a história dos ciganos de acordo com o conhecimento que possuíam, os seus costumes, suas vidas, em fim, uma admirável palestra cercada de toda a sinceridade e simplicidade.
Sob a barraca o conforto era relativo. Não cozinhavam no solo como seus antepassados. Um fogão esmaltado, panelas brilhantes de limpeza, um gerador que fornecia luz elétrica e energia para o potente rádio-receptor, convencia a qualquer incrédulo que suas vidas em nada diferiam das nossas e, em muitos casos, eram muito acima do conforto que muitos de nós, não ciganos, desfrutávamos.
Fora da barraca um potente automóvel marca Chevrolet substituía os antiquados carros de tração animal, numa demonstração que acompanhavam o “progresso” em todos os setores.
Na hora do chá, um aparelho, que o Sr. Queiroz desconhecia, foi colocado sobre a mesa: era o aparelho para a confecção de sua tradicional bebida. Reuniram-se em torno da mesa todas as mulheres pertencentes ao bando, e, em copos, foi saboreada a bebida.
Mais tarde, chegada a hora da ceia, Vitória, a esposa do chefe, chegou-se ao fogão para o preparo do jantar, auxiliada por sua filha Sultana.

Homenagem a uma ancestral
A conversa continuou, e o grupo soube por intermédio do Sr. Queiroz de que, no cemitério local, estava sepultada uma nobre de sua raça.
Diz o Sr. Queiroz, que tal informação fez com que suas fisionomias modificassem-se. Da alegria, uma tristeza invadiu “suas almas”. Fizeram questão de prestar uma homenagem à sua irmã de raça e, a convite do visitante comparecerem ao cemitério, onde praticariam uma cerimônia que ficaria para sempre gravada na mente do Sr. Ruy Queiroz.
Munidos do material necessário ao ritual de sua religião, duas velas e duas garrafas de vinho, penetraram no cemitério.
É importante salientar de que em todo o trajeto que percorreram, desde a barraca até a necrópole, todos os sorrisos desapareceram numa concentração evidente da homenagem que iriam prestar.
Quando chegaram perante o túmulo, neste, numa lápide já demonstrando os efeitos do tempo, lia-se: “JASIGO DOS RESTOS MORTAES DE TERENA, ESPOSA DE JOÃO CALDARAS. NATURAL DA HUNGRIA, FALECIDA A 2 DE MARÇO DE 1883. COM 55 ANOS DE IDADE. TRIBUTO DE SEUS FILHOS TODORES, LANGHOS, IXOAN, IANOS, IOSCA, POXELIA, ZURCA, MUTTO, PEPE”.
Na presença do túmulo, Caldaras e sua família concentraram-se em prece e prestaram homenagem espiritual a sua ilustre morta.
Acenderam as velas; o vinho foi aberto e derramado em cruz sobre a lápide. O vinho significava o espírito da vida em sua futura vida eterna. As velas, como no ritual apostólico romano, conclamam a aproximação dos santos em proteção ao espírito que se encontra nas alturas. Nada do que levaram foi retirado de volta. Tudo ali ficou como um símbolo de amizade, respeito e votos para que a extinta encontrasse a paz de Deus e o descanso que merecia.
Terminada a cerimônia, antes de afastarem-se do túmulo, fizeram o sinal da cruz de acordo com o ritual da Igreja Católica Ortodoxa.
Magnífico espetáculo de fé e dedicação a seus antepassados foi o que João Caldaras e sua família proporcionaram ao Sr. Ruy Queiroz.


Continua...

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Fontes: acervo da Bibliotheca Pública Pelotense
Revisão do texto: Jonas Tenfen

Fotos: acervo A. F. Monquelat