terça-feira, 29 de março de 2016

A célebre bodega do Antônio* (parte 1/2)


O português Antônio Fernandes, sem sabermos a partir de quando, foi proprietário de uma das inúmeras bodegas que se instalaram na famosa Rua Tiradentes. Rua esta que a imprensa, pelo excesso de desordens e conflitos ali ocorridos, alcunhou-a de diversas formas, dentre elas: Encrencópolis, Bairro sujo, A Canaã das facadas, Rua das desordens, A célebre quadra, em especial o trecho da Tiradentes entre Anchieta e Quinze de Novembro, a ponto de pedirem às autoridades que “arrasassem o bairro sujo”.
Este fora o palco de um cenário do qual, hoje, só restou o registro das ocorrências policiais nas páginas dos jornais da época; hoje é quase impossível imaginar que tenha tido por atores centenas de personagens, dentre esses, bodegueiros, prostitutas, caftinas, caftens, marinheiros, estrangeiros e tantos outros, sem esquecermos uma proprietária de prostíbulo, por nome Catharina, a qual tinha por agenciadora de mulheres “a preta” caftina Domingas, locadora da Banca nº 5, no Mercado Central, na qual vendia mocotó.                                                                                                                                                                                                                               

A bodega do Antônio não tardou muito a frequentar as ocorrências policiais, logo recebendo, por parte da imprensa, o apodo de tasca imunda ou tasca maldita, dada a frequência, resolvemos incluí-la, à parte, para formar, junto com a bodega de Catharina Cuniga e o Antro do Mãosinha, o trio que optamos por tratar de maneira individual. Daí que:
Em 4 de fevereiro de 1915, às 22 horas, o indivíduo Luiz Barbosa, de “cor preta”, entrou na Bodega de Antônio Fernandes, à Rua Tiradentes, e mandou vir um pouco da “branquinha”.
Quando esta começou a fazer efeito, Barbosa começou a fazer desordem, querendo meter o pau a torto e a direito, em duas mulheres que estavam no local.
Comparecendo os guardas 14, 35 e 28, do 1º posto, deram voz de prisão ao desordeiro.
Este resistiu.
Os guardas arrancaram dos chanfalhos e espancaram Barbosa barbaramente, levando-o assim até o 1º posto, onde o meteram no xadrez.
O infeliz preso clamava socorro, pois estava sendo por demais castigado.
Dia 5, foi removido para a Bastilha da Lomba.
Mais uma beleza da “heroica” municipal!

Uma mulher gravemente ferida

Dia 10 de junho de 1916, às 12 horas, deu-se grosso sarilho na bodega de propriedade do português Antônio Fernandes, situada no prédio nº 554 do bairro da Encrencópolis [Rua Tiradentes].
A baderna foi promovida por alguns indivíduos embriagados, nela tomando parte o pardo Edmaro Passos Ferreira, cozinheiro da referida bodega.
Este, terminado a primeira refrega, voltou-se para a rapariga Maria Virgínia, ali moradora e que tranquilamente almoçava, começando a dirigir-lhe insultos e esbofeteando-a.
Maria procurou fugir, mas Edmaro não lhe deu tempo a isto, pois, sacando de uma faca, vibrou-lhe profundo golpe na virilha esquerda.
A infeliz caiu logo por terra, banhada em sangue, enquanto Edmaro punha-se em fuga.
Comparecendo a polícia, foi Maria transportada para a Santa Casa.
O ferimento era considerado grave.
A vítima, de cor parda, tinha 17 anos de idade.
Parece que o fato dela não fazer caso de Edmaro deu causa à brutal agressão.
A polícia judiciária providenciou para a captura do criminoso.
A bodega de Antônio Fernandes era diariamente teatro de cenas semelhantes.
Ainda no dia anterior, à noite, dera-se ali mais uma desordem promovida pelo próprio Fernandes e seu cozinheiro.
“Si se fizesse com que o antro fechasse?”, interrogava o jornalista da Opinião Pública.

Conflito e ferimento na bodega do Fernandes

A celebrizada bodega de Antônio Fernandes, na Encrencópolis, foi dia 18 de junho de 1916, teatro de mais uma baderna.
José Sá e Antônio Gusmão, depois de calorosa discussão, o primeiro fez uso de uma navalha, atirando um golpe em Gusmão que recebeu longo ferimento no rosto.
Este, por sua vez, puxou de um facão, ferindo a José no braço esquerdo.
Ambos foram medicados na Santa Casa.
A polícia esteve no local.

Na bodega do Fernandes

Continuavam as rixas, os conflitos, os desaforos de toda jaez, na bodega de Antônio Fernandes, situada no Bairro Sujo [Tiradentes] nº554.
A polícia que estava ali perto, cheirando o seu mau odor, e vendo tudo, parecia ter grande simpatia pelas suas imundícies e pelos seus imundos frequentadores, porque sempre os deixava “ir em paz”.
Ontem, 9 de julho de 1916, às 19 horas, os indivíduos Rodolfo Chaves e Adolfo Mascarenhas, que ali se encontravam libando, se desentenderam e brigaram.
Rodolfo jogou uma pedra no outro, atingindo-o na cabeça.
A confusão foi enorme, houve gritos, palavreados; depois, pouco a pouco, o silêncio, a calma... e a impunidade.
Continua...
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(*) Extraído do livro, ainda inédito, A princesa do vício e do pecado

Revisão do texto: Jonas Tenfen

terça-feira, 22 de março de 2016

A mais que bela Impéria

Jonas Tenfen

Na imprensa de Pelotas, no fim do século XIX e início do século XX, sobravam notas sobre as atividades ilícitas do jogo e da prostituição, sem contar as denúncias e protestos de colunistas cansados do barulho, baderna e violência, além das cartas de denúncia de moradores vizinhos a antros de perdição. As notícias sobre este tema tratavam quase sempre das consequências das brigas de amor (facadas, navalhadas, tiros, morte) e dos resultados dos debates sobre a legitimidade do jogo ou a integridade da banca (mais facadas, navalhadas, tiros, morte). Por ser tão frequente este tipo de situação, os jornalistas precisavam exercer seus dotes literários para prender a atenção do leitor, pois prisões propriamente dito dependiam da atuação da polícia e alguns órgãos de segurança.
Assim, é possível fazer um pequeno dicionário das citações, nomes e referências a prostitutas na imprensa daquela época. Segue, pois, uma versão resumida, de semelhante compêndio: cocote, decaída, duvidosa, hetaira, horizontal, Impéria, marafona, marajó, meretriz, Messalina, mulher de má nota, mulher de vida airada, mulher de vida alegre, mulher de vida fácil, mundana... Há as mais diversas origens culturais ao elencado: desde a Grécia no apogeu de Atenas (hetaira era uma cortesã, acessível apenas aos nobres), da cultura portuguesa (marafona é uma boneca, quase sempre de trapos, e sem expressões faciais), do vocabulário dos marinheiros (marajó é vento que pelo fim da tarde agita as águas de algumas regiões) e toda uma apropriação da cultura católica na avaliação da atividade (em relação ao decaimento, à facilidade dessa vida, à alegria dessa vida). 
Dois substantivos fazem referência a personagens históricos. Um, Messalina, diz respeito à terceira esposa do imperador romano Cláudio, tendo vivido entre os anos 17 e 48 de nossa era; um nome presente nos livros de história e de pesquisa fácil. O outro, ao contrário, não é rapidamente reconhecido ao leitor contemporâneo; o que explica a razão do presente texto.
Imperia Cognati nasceu em Roma em 3 de agosto de 1455, filha de Diana di Pietro Cognati, cuja ocupação era a prostituição; seu pai se chamava Paris, por vezes referenciado como de Paris; ainda se especula quem teria sido esse indivíduo, embora as fontes costumam apontar para alguém com funções na Igreja. A jovem Impéria demonstrou facilidade em aprender literatura e música, o que a provinha de contatos que permitiram que ascendesse da posição de prostituta para a de cortesã. Sua casa sempre fora frequentada por intelectuais, escritores, políticos e pintores; sem esquecermos os elementos da nobreza e clérigos. Um desses frequentadores fora o pintor Rafael Sanzio (1483 – 1520), que a contratou para posar como protagonista para o afresco O triunfo de Galatea e, também, como Safo no afresco Le Parnasse.


A morte de Impéria se deu em 15 de agosto de 1511, e sobre a causa pairam dúvidas. As citações mais frequentes apontam para envenenamento por vontade própria, mas, contrariando tal ideia, Pietro Aretino afirmou que ela “morreu bem, rica, em sua casa e honrada”. Desta afirmação, o importante é o adjetivo “honrada” que exclui o suicídio, considerado grave desonra à época. Nesse ínterim, vários poemas já haviam sido publicados sobre ela, a citar três: Imperiae panegyricus, de Giao Vitale; Fundana visio siper obitu ninphalis corpusculi pulcherrime Imperie, de Pietro Cappadolce; e, Lamento dela Imperia, de Giuliano Ceci. Com mais ou menos qualidade literária, os textos sempre ressaltam a beleza fora do comum de Impéria (o pulcherrime no título do segundo poema pode ser traduzido para o português como pulquérrima ou belíssima), sem contar que ela fora modelo para pelo menos dois trabalhos de Rafael, como mencionado. Cristalizava-se o modelo da cortesã perfeita aos moldes do Renascimento.
Quem apontou essa perfeição em um conto foi o médico e humanista francês Béroalde de Verville (1556 – 1626). Embora autor de uma considerável gama de títulos, versando sobre os mais diversos temas (desde jocosos a graves, mundanos a metafísicos), este escritor ainda é reconhecido pelo satírico Le moyen de parvenir, de 1617. No capítulo VII (intitulado Couplet), é narrada a visita que o gentil-homem de Lierno fez às famosas cortesãs italianas, especificamente à mais famosa de todas. Impéria era perfeita, ao ponto de – conforme é narrado – os gases que seu corpo emitia serem perfumados. A narrativa se encaminha pelo espanto do gentil-homem diante do inédito, até um desfecho obviamente escatológico.
Em Verville, essa é a única citação à Impéria, uma reminiscência na narrativa e uma personagem secundária durante todo o enredo. Quem leu com bastante atenção ao Le moyen de parvenir e deu maior destaque à personagem foi Balzac.
Honoré de Balzac (1799 – 1850) foi romancista e crítico literário francês. Seu trabalho mais conhecido é o ciclo de romances La comédie humaine: uma tentativa de análise do ser humano tendo a França como palco. Com longas descrições, prosa intensa e ágil, Balzac ainda hoje é lido como um retratista mordaz dos dramas da burguesia (pequena, no mais das vezes), das idas e vindas da Fortuna costumeiramente ligada a grandes heranças. Outro projeto seu, grandioso por sinal, foi a publicação de Les cents contes drolatiques, em revista, entre 1832 a 1837; depois, em livro, apenas Les contes drolatiques: a recolta passava de uma centena. Por manter um estilo – tanto na grafia quanto na sintaxe – notadamente medieval, esse projeto não foi bem aceito pelo grande público, embora tenha sido lido com muita atenção por intelectuais (e pessoas dispostas a enfrentar a escrita quase criptográfica) como Gustave Doré (1832 – 1883) que produziu 425 desenhos a partir da obra, ilustrando inclusive o conto La belle Imperia.
O pano de fundo histórico deste texto é o Concílio de Constança, entre 1414 a 1418, cujo objetivo principal era o de acabar com o Grande Cisma Papal (naquele instante, a Igreja contava com mais de um papa, os quais disputavam o poder da legitimidade). Nobres, príncipes, eleitores, clérigos e representantes do Sacro Império Romano estavam em Constança, todos participando de modo direto na defesa dos interesses – o que Balzac viu como local particularmente propício para a atividade das cortesãs. Entre esses, o jovem, e fictício, Philippe de Mala se reuniu, para servir ao seu dignitário e para terminar a própria formação.
Passeando pelas ruas de Constança, à noite, depois dos trabalhos oficiais, o jovem de Mala vê uma mulher belíssima andando na rua, entre companhias não exatamente dignas. A visão daquela mulher pôs o firme propósito de “salvá-la” em seu coração. Levantando informações – com membros da igreja – de quem seria semelhante anjo, finalmente descobriu o nome, ao qual o narrador do conto acrescenta a semelhante descrição: “Impéria foi a mais preciosa, a mais fantástica jovem no mundo, embora ela tenha se tornado algo mais ao deslumbrante e belo, foi aquela que melhor entendeu a arte de enganar os cardeais e suavizar os mais árduos soldados e opressores do povo.” Dando explicações sobre a influência das cortesãs na política e assuntos de Estado, o mesmo narrador foi bastante conciso e exato alguns parágrafos adiante: [era] “A verdadeira rainha do Concílio.” E o enredo segue de Mala despistando concorrentes – alguns verdadeiramente perigosos – até conseguir adentrar a alcova de Impéria, com as consequências que isso trará aos dois.
Não é o único conto em que Balzac se utiliza da personagem Impéria, mas é, seguramente, o mais conhecido, talvez pela mordacidade com que ele tratou o Concílio, talvez por ser o primeiro conto do livro. De fato, foi essa narrativa que reavivou a figura da cortesã, cuja leitura influenciou outros escritores e jornalistas franceses, que, por fim, foram influenciar os brasileiros. Na nossa imprensa, ao menos na imprensa pelotense, houve um deslocamento de sentido, mudando o significado literário de “impéria” de cortesã para jornalisticamente “prostituta” (em semelhança com o “hetaira” já citado). Por semântica, poderíamos debater até que ponto esses dois sentidos (prostituta e cortesã) são sinônimos, embora ressalte-se que há uma diferença significativa entre os públicos de atuação dessas profissionais. Enquanto a literatura pode ocupar-se de classes mais abastadas, afinal é literatura, o jornalismo nem sempre o pode, ou mesmo quer, atuar nesse expediente.
Quem leu com muita atenção e admiração o conto de Balzac foi o escultor alemão Peter Lenke. Morador da comunidade de Bodman-Ludwigshafen, próximo ao lago de Constança, fora contratado para esculpir uma estátua em homenagem ao Concílio. A estátua, de 9 metros de altura e 18 toneladas, foi erguida clandestinamente depois de pronta, pois era a imagem de uma mulher de belos atributos físicos, usando alguns símbolos de poder imperial e eclesiástico, deixando entrever, não tão sutilmente, sua sexualidade por meio de um vestido leve. Como se pode imaginar, foi um escândalo, mas, digno de nota, escândalo que não durou muito: desde sua aparição ao público, se tornou um dos pontos turísticos mais visitados em Constança.
A estátua foi feita em cimento polido e, dependendo da incidência do sol, rebrilha em tons dourados: uma imagem em ouro. Em cada uma das mãos da estátua, há uma figura: uma representa o imperador Segismundo; a outra, o papa Martinho V. São figuras disformes, com expressões doentes e arqueadas pelo peso de algo, enquanto a figura de Impéria olha com sobriedade para o vazio. A estátua não as oprime, não as esmaga entre os dedos, ao contrário, as eleva – e sustenta! – aos céus.





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Notas bibliográficas:
As informações a respeito de Imperia Cognati são do Dizionario Biografico, disponível em <http://www.treccani.it/enciclopedia>. Os livros Les moyens de parvenir e Les contes drolatiques – com as ilustrações de Doré - foram acessados a partir do Internet Archive (https://archive.org/). A foto da estátua de Impéria, às margens do lado de Constança, é apresentada aqui em um dos ângulos possíveis, pois se trata de uma imagem em 360°, disponível em <https://pixabay.com>. 

quarta-feira, 16 de março de 2016

O Cine Capitólios (parte 2 e final)

                                                                                     A.F. Monquelat





As notícias que antecederam a inauguração do Capitólio
         Noticiava a imprensa de Pelotas, dia 7 de novembro de 1928, ser assunto obrigatório nas rodas de conversa e, sem dúvida alguma, o acontecimento daquela semana, a inauguração do suntuoso Cine Capitólio, que estava anunciada impreterivelmente para o dia 9 daquele mês, às 19 e 15 horas.
         Por convites especiais, feitos pela empresa Xavier & Santos, viriam de Porto Alegre, e outras cidades do Estado, vários representantes cinematográficos e empresários, marcando presença no festivo ato.
         A orquestra do Cine Capitólio, além dos bons músicos da cidade, que a compunham, seria acrescida permanentemente com elementos de fora, que deveriam chegar a Pelotas entre os dias 7 e 8, achando-se já na cidade o maestro efetivo.
         Lia-se no A Opinião Pública, do dia 8 de novembro, que se inauguraria no dia seguinte [9.11.1928] o elegante cinema Capitólio, da empresa Xavier & Santos, uma das melhores casas do gênero que Pelotas teria.
         Situada às ruas General Neto e 7 de Setembro, ponto central e movimentado, a nova casa de diversões estava em condições de proporcionar ao público o máximo conforto, dispondo de vasta sala de projeções, onde se acomodariam mais de mil poltronas, em três seções destacadas e dispostas de maneira que o espaço entre uma e outra fila permitisse ao espectador entrar e sair sem perturbar os demais.
         Magníficas decorações do hábil pintor Sobragil Carollo, no estilo do histórico Capitólio, e esplêndidas instalações elétricas do técnico Antenor de Barros Farias, apresentando (interna e externamente) luzes decorativas, completavam o novo e luxuoso cinema.
         A inauguração do Capitólio estava marcada para às 19 e 15 horas, sendo exibida pela Metro Goldwin Mayer a película A semi-noiva, interpretada por Norma Shearer.
         A orquestra, composta por excelentes músicos, seria dirigida pelo maestro Raul Garbini, contratado pela empresa e já em Pelotas.

A estreia vista pela Imprensa
         Com o suntuoso nome de Capitólio, estrearia hoje, 9 de novembro de 1928, a exuberante casa de diversões que seria explorada pela empresa Xavier & Santos.
         O projeto desta magnífica casa era de seu proprietário Sr. Francisco Santos, executado pelo engenheiro-arquiteto Sylvio Barbedo.
         Obra de grandes proporções, de bom gosto, de conforto e luxo “será para a cidade de Pelotas mais que um melhoramento digno, será um orgulho”.
         Frente altaneira, elegante, sinfônica, sem torturações de forma, motivando-a quatro grandes colunas coríntias provocando o antegozo da expectativa e deslumbramento de seu interior riquíssimo.
         A entrada um saguão destinado à venda dos lugares, com três guichês, limitado por um para vento octogonal, recamado de vidros brilhantes, luxuosa obra de marcenaria e gosto.
                  Artista de bom gosto, e de temperamento excelente, esculpira com vida e com arte admiráveis baixos-relevos com motivos romanos, tendo a adensá-los uma névoa leve, como se o tempo espargisse sobre eles sua túnica descorante, ou como se rompesse de mansinho de um fundo distante uma forma indecisa, embrionária, que se ia formando dentro de nós, dizia o jornalista.
         Dali, entrava-se a um salão de espera, ricamente atapetado, com admirável mobiliário, todo espelhado, fartamente iluminado e luxuoso.
         Neste salão mais uma vez, Carollo mostrava-se em várias faces: revelando o decorador genial e o pintor extraordinário, onde todo um mundo musical de decoração aparecia, historiando séculos, nos vislumbres elementais da expressão.
         Obra feita exclusivamente a pincel era uma maravilha pelo tempo em que fora executada.
         Arquitetura de ângulos retos de largos espaços esta se insinuava numa tensão de formas, fazendo vibrar a magia sublime destes espaços decorados a ouro.
         Arquitetura e decoração formavam um todo harmonioso e perfeito.
         Segundo o jornalista, Carollo ali se excedera para além da decoração, fora mais que decorador, fora criador de símbolos. Fizera uma simbolização rápida, expressiva, de toda história artística do ocidente.
         Quer na expressão de simpatia estática, simbolizando o estatismo em arte, quer no jogo de linhas vivas, rítmicas, enviando notas sinfônicas em todas as direções, símbolo de dinamismo.
         Quem diria, observava e interrogava o cronista: a história romana com seus gestos admiráveis de heroísmo, com suas grandezas sublimes, com sua psicologia e sua política estariam refletidas em linhas e em forma?
         A sala de projeção ricamente ornada com bom gosto, disposta da melhor forma para maior comodidade do espectador.
         Lindas poltronas, confeccionadas nas grandes fábricas de Antônio Castro & Filhos, de Porto Alegre, eram de uma comodidade completa, dispostas em grandes intervalos umas das outras, permitindo a melhor posição do espectador.
         As poltronas eram idênticas às usadas nos cinemas da empresa Serrador no Rio de Janeiro e em São Paulo.
         A sala era toda ladeada de espelhos, feitos em Pelotas na vidraçaria de Corrêa & Cia., do melhor material, que davam ao ambiente uma luminosidade maior e criavam largos espaços de visualidade.
         Acima da plateia ficava uma ordem de 15 camarotes, ricamente mobiliados e cômodos, além de uma segunda plateia, vasta, em proporções menores do que a térrea. No  segundo andar, encontrava-se, ainda, uma nova ordem de poltronas, colocadas de forma apropriada, como era costume na época, dos grandes cinemas das maiores capitais.
         Toda a sala de projeção era profusamente bem decorada, com um jogo de cores que agradava, atestando mais uma vez a mestria de seu autor.
         O forro era todo de estuque e decorado com arte e talento. Com rasgos fisionômicos, concretizava formas estranhas, todo movimento, gosto, arte.
         Fora pintado para os olhos e para os ouvidos. Aquilo tudo era musical, harmonioso, expressivo, mais que ornamento: arte. Arte viva, arte pura. Estremecia os músculos, embriagava, entusiasmava.
         Ao fundo, o palco com capacidade necessária para poder abrigar números artísticos e pequenas trupes.
         Toda a obra arquitetônica foi executada pelo construtor Manoel Tavares.
         A instalação elétrica ficara a cargo do eletricista chefe da empresa Xavier & Santos, Sr. Barros Farias, e fartamente iluminada com lâmpadas totalizando mais de 50.000 velas.
         Os intervalos eram iluminados por 15.000 velas, ocultas, que trocavam de cor e tonalidade, passando do verde escuro ao violeta lilás ao azulão claro numa sequência contínua feita por aparelhos próprios, impedindo assim que viessem ferir os olhos e agudez forte da luz branca.
         Arejada com exaustores elétricos que renovavam continuamente o ar interior impedindo que se viciasse.
         Era uma casa moderna que possuía todos os predicados para agradar e admirar.

A inauguração do Capitólio vista pela Imprensa
         Comentava a imprensa, dia 10 de novembro de 1928, ter se constituído um sucesso fora do comum a inauguração, no dia anterior, do Cine Capitólio, o magnífico centro de diversões “que veio dar a Pelotas a primazia em matéria de cinema”.
         Foi, como previsto, uma noite de gala. Um verdadeiro acontecimento social, pois, desde cedo, começara a afluir ao luxuoso Cine uma plateia de elite que, em seguida, lotou totalmente todos os lugares da vasta sala.        Oferecia, então, o Capitólio, sob o efeito das luzes e das lindas decorações, um aspecto deslumbrante.
         Na rua era, também, grande a aglomeração.
         De inúmeras felicitações eram alvo constantemente os Srs. Francisco Santos e Vieira Xavier, desses cumprimentos compartilhando o secretário Sr. Mário Martins.
         Estendiam-se elogios ao construtor, Sr. Manoel Tavares, que dera corpo a idealização da obra, de inspiração do Sr. Francisco Santos.
         Em grande número, também, os telegramas de felicitações recebidos pela empresa bem como o número de artísticas corbélias.
         Foi já com a elegante sala de espera repleta de “exmas. famílias” que aguardavam a segunda sessão, que teve início a primeira com a sinfonia do Guarany, executado pela orquestra sob a regência do maestro Raul Garbini.
         Em seguida, descerrada a “formosa cortina” com artística cenografia de Sobragil Carollo, foi focada a comédia da Metro, A semi-noiva, que logrou o inteiro agrado da vultosa assistência.
         E assim foi inaugurado o majestoso cinema Capitólio, por cuja iniciativa a imprensa de Pelotas felicitava aos Srs. Francisco Santos e Vieira Xavier.
          
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Fonte de consulta: Bibliotheca Pública Pelotense - CDOV
Revisão do texto e tratamento de imagens: Jonas Tenfen

Fotos: acervo Klécio Santos

quarta-feira, 9 de março de 2016

O Cine Capitólio (parte 1)

As primeiras notícias

Aos 19 dias do mês de outubro de 1927, era anunciada pela imprensa de Pelotas estar exposta na vitrina da Casa Americana a planta do majestoso “Theatro Capitolio”, que a operosa empresa Xavier & Santos iria mandar edificar no terreno de sua propriedade à Rua General Victorino [atual Anchieta], entre as ruas General Neto e 7 de Setembro, junto ao Cartório Massot.
A referida planta era de autoria do engenheiro Sr. Dr. Sylvio Barbedo.
Dois meses depois, 29 de dezembro de 1927, noticiava-se que estavam sendo atacadas com louvável atividade as obras do Cinema Capitólio que a operosa empresa Xavier & Santos estavam construindo em espaçoso terreno à Rua General Victorino, entre General Neto e 7 de Setembro.
A planta, que até bem pouco estivera exposta, sofrera radicais modificações, tendo sido elaborada outra também pelo engenheiro Dr. Sylvio Barbedo que, desejando contribuir para essa obra de embelezamento da cidade, a oferecera gentilmente.
Pela nova planta, a fachada do Capitólio seria de linhas há um tempo elegantes e majestosas, casando-se a imponência do interior, que pelo luxo e conforto de que se revestiria seria o primeiro cinema do Estado.
As obras haviam sido confiadas aos construtores Dias & Requião, esperando-se que a inauguração do Capitólio pudesse dar-se em abril do ano seguinte.
Por volta de meados do mês de abril de 1928, esperando o respectivo vigamento, encomendado à casa Viúva Gustavo Hugo, de Porto Alegre, achavam-se prontas as paredes exteriores do “confortável” Cine Capitólio que a empresa Xavier & Santos estava construindo.
Segundo a imprensa, era provável que, na segunda quinzena de junho daquele ano, fosse inaugurada a nova casa de espetáculos. No gênero, seria a primeira em Pelotas, tanto em conforto como em “luxo e seleção”.
Assumiria, então, a direção do Capitólio o Sr. Mário Martins, que, há longo tempo trabalhava na empresa Xavier & Santos, e, na época, estava exercendo a função de gerente do 7 de Abril.
Em agosto de 1928, era dito, que estando quase concluída a cobertura do majestoso Cine Capitólio, e tendo sido terminadas as paredes do amplo salão de espera, haviam começado dia 31 de julho a ser feitas, neste as decorações confiadas ao hábil artista Sr. Sobragil Gomes Carollo [pintor, desenhista e cenógrafo, nascido em Alegrete-RS e falecido no Rio de Janeiro em 1974].
Todas as paredes, como o teto, receberiam artísticas pinturas, decorações estilo Renascença, predominando os simbólicos gansos do Capitólio.
As pinturas seriam brunidas a ouro, de um efeito “magnífico e de alto gosto”.
Poucos dias depois, ainda no mês de agosto, era anunciado que a importante casa Antônio Pastro & Filhos, de Porto Alegre, enviara, dia 15 de agosto, à empresa Xavier, o “lindo” mobiliário por esta encomendado para a plateia do novo e luxuoso Cine Capitólio, em construção.
Tratava-se de confortáveis e excelentes poltronas destinadas às plateias daquela casa de diversões, tais quais as que estavam sendo usadas nos mais luxuosos cinemas do Rio de Janeiro, tendo no encosto a palavra “Capitólio” gravada a fogo.
Como era sabido, o novo cinema da empresa Xavier & Santos, além da ampla plateia na parte térrea, seria dotado de uma segunda plateia distinta, com elevação, acima da ordem de camarotes que rodeava o vasto salão, igualmente mobiliado, como a primeira plateia, com as belíssimas poltronas ora recebidas.
Ao fundo dos camarotes, bem defronte à tela das projeções, ficaria situado o “Balcão dos Namorados”, distinto, de muito gosto, e ricamente mobiliado.
Era provável que, na semana vindoura, estivesse terminado o forro de estuque do Capitólio.

A escolha do filme de estreia

À poderosa marca Metro Goldwin Mayer caberia a honrosa tarefa de inaugurar, no dia 9 de novembro de 1928, a luxuosa casa de espetáculos da empresa Xavier & Santos, “O Capitólio”, sendo escolhido para aquele primeiro espetáculo uma película “de valor incontestável e seguro”.
O filme escolhido intitulava-se A semi-noiva, que, segundo a crítica de época, era um romance de peregrina beleza, animado e vivido pela mais rara formosura do cinema americano, Norma Shearer.
A mais bela cerimônia nupcial “até hoje” apresentada no cinema, e um enredo altamente divertido a par de um luxo nababesco de montagens e riquezas de toaletes esplendorosas tornavam, este trabalho, um filme de elite dedicado a um público distinto.
Convinha citar que os filmes do contrato firmado com a Metro Goldwin Mayer estavam sendo exibidos na capital do Estado com grande sucesso, e, desta forma, não deveriam ser confundidos com as antigas produções desta marca, que eram distribuídos pela Paramount.
O preço da poltrona para a inauguração do Capitólio seria de 3$, mas, já no segundo espetáculo, estaria mantido o preço habitual de 2$.

As notícias que antecederam a inauguração do Capitólio

Dia 4 de novembro, era divulgado que, conforme era de domínio público, estava marcada para a próxima sexta-feira a inauguração do luxuoso e elegante Cine Capitólio.
Além dos ótimos filmes já anunciados para os seus primeiros espetáculos, ter-se-ia a exibição de muitas superproduções, que estavam dependendo da referida inauguração; e, entre estas, merecia destaque o filme A cabana do pai Tomás, “um grande feito da cinematografia”.
Faltando apenas três dias mais, e Pelotas iria contar entre os seus melhoramentos, com uma casa de espetáculos, que construída nos moldes mais modernos, com artísticas decorações e especial conforto, quer em mobiliário quer em ventilação natural e artificial, esplêndidas acomodações em duas plateias e uma ordem de camarotes, luxuosa e artística sala de espera, tudo servido por uma feérica iluminação elétrica de l.158 lâmpadas, tornava-a um verdadeiro templo da cinematografia, um dos melhores, se não o melhor salão de projeções no estado do Rio Grande do Sul.
O importante Cine Capitólio, que seria inaugurado na sexta-feira, dia 9, podia-se dizer que iria suplantar qualquer juízo, por mais otimista, que tivessem feito sobre a sua construção.
Estavam, portanto, de parabéns aqueles que todas as noites procuravam o cinema, como sua distração por excelência.


Continua...
Fonte de consulta: Bibliotheca Pública Pelotense - CDOV
Revisão do texto e imagens: Jonas Tenfen