quarta-feira, 30 de outubro de 2019

Luz na Ritter

Luz na Ritter


A. F. Monquelat
Jonas Tenfen



    Dom Pedro II sempre fora muito atento às novidades tecnológicas que surgiam na Europa e na América do Norte. Seja por curiosidade galante, seja pelo estranhamento de ser um monarca longe do velho mundo. Dessa curiosidade implicou estar no gabinete dele o primeiro telefone do Brasil, por exemplo. Por isso, já em 1879, foi concedida pelo imperador a Thomaz Edison a autorização para trazer ao Brasil equipamentos necessários à produção e distribuição de energia elétrica. 
    Em breve, alguns edifícios públicos acabariam por colocar algumas lâmpadas do lado de fora, iluminando alguns trechos das cidades. Consta que em 1881, à Diretoria Geral dos Telégrafos, na cidade Rio de Janeiro, coube o pioneirismo da iluminação pública externa. A primeira experiência consistente de iluminação pública, contudo, foi na cidade de Campos, no estado do Rio de Janeiro. Era de esfera municipal, sendo um pioneirismo em esfera nacional e sul-americana. 
    Deixando de lado a inauguração de algumas hidrelétricas e termoelétricas, vê-se que em 1903, já no período republicano, o primeiro texto de lei, aprovado pelo Congresso Nacional, sobre os usos da energia elétrica no território nacional. A partir deste texto de lei, vários empresários e investidores de pequeno e médio porte investiram na compra de equipamentos de geração de energia e iluminação. Entre eles, os irmãos Ritter.
    No dia 18 de abril de 1907, uma quinta-feira, foi inaugurada oficialmente a luz por eletricidade na fábrica. Fácil de imaginar que os testes antes da inauguração já devessem chamar atenção e curiosidade da população pelotense, atraída pelo esplendor em teste da cervejaria. Dois jornais, ao menos, deram notícia no dia seguinte do feito luminoso: Correio Mercantil (sob direção de Augusto Simões Lopes e matéria de Gonçalo Abreu) e A Reforma (fundado por Gaspar Silveira Martins e matéria de João C. de Freitas).
    Atendo-nos na primeira matéria, sabemos que o jornalista fora recebido na fábrica pelo guarda-livros do estabelecimento, Luiz Petrucci, e pelo redator do Diário Popular, Florentino Paradeda. Dois anfitriões, cada um em sua especialidade, buscando causar a melhor impressão nos convidados, “entre outros, os seguintes cavalheiros”: coronel Pedro Osório, vice-presidente do estado; capitão Luiz Manoel Pennafiel, representando dr. Cypriano Barcellos, intendente municipal; Frederico Basto, juiz da comarca; capitão Fernando Röhnelt, subintendente; capitão Alexandre Gastaud, chefe do telégrafo; dr. Ferreira Velloso; capitão Antonio Rosa, Otto Heuer e Affonso Moutier, gerente e chefe da seção de máquinas da casa Bromberg e Cia; dr. Joaquim Leite, Francisco Rodrigues da Silva, da Cia de Seguros Pelotense; Lourenço Vinholes, da Fábrica Aliança; Carlos Nussbaunn; Francisco Monsarro; João C. de Freitas, pelo jornal Reforma; Póvoas Jr., pelo jornal Opinião Pública; Carlos Souza, pela revista Cavação; J. Veríssimo Alves, pelo jornal Arauto.
    A visita do jornalista de A Reforma também foi acompanhada por Frederico Ritter Filho. É fácil de entender que não fora apenas um grupo e um passeio dentro da cervejaria, sendo todos, ao fim, reunidos para uma celebração coletiva.
    Vamos à descrição dos equipamentos.
    Os trabalhos de instalação da luz elétrica ficaram a cargo do eletricista Ernesto Büchilli, a serviço da importadora Bromberg & Cia, responsável por trazer a Pelotas todo o equipamento necessário. Segue a descrição do jornalista:
    ‘A luz distribuída nos diferentes departamentos da fábrica, escritórios e residência particulares dos proprietários é fornecida por um dínamo de 100 amperes, dando de 110 a 150 voltas.
    O dínamo é da fábrica alemã Simem & Halsche.
    Desenvolve as correntes elétricas, acionando-as, um motor de força de 150 cavalos.
    Estão distribuídas pela fábrica 137 lâmpadas.
    Destas, cento e trinta e três são de 10 a 50 velas e quatro de arco voltaico, são duas de 300 velas e outras duas de 2000 velas. ”
    Ao fim da descrição, foi relatada a presença de outros aparelhos que funcionam à eletricidade – ventiladores portáteis, ventiladores fixos, estufas, fogareiros, ferros de engomar – presentes na fábrica. Imagina-se que também importados pela Bromberg & Cia.
    Vamos aos discursos.
    Terminada a visita, todo o grupo fora reunido na sala de refeições da família Ritter para cervejas, doces, sanduíches e discursos. Se lidos, a luz elétrica deve ter facilitado a compreensão dos textos.
    Representando o Opinião Pública, fez uso da palavra Póvoas Jr. Representando a casa Bromberg & Cia, fez uso da palavra Otto Heuer. Agradecendo em nome dos irmãos Ritter, fez uso da palavra Luiz Petrucci. Brindando a imprensa local, fez uso da palavra o capitão Antônio Leivas de Carvalho.
    Terminados os lanches e os discursos, os presentes foram agraciados com canivetes-reclame, na descrição do jornalista de A Reforma. Além da marca da Cervejaria Ritter, os instrumentos também possuíam saca-rolhas. 
    A matéria do Correio Mercantil descreve a impressão deixada pela visita teve duplo valor. 
    O primeiro, um incentivo: “filhos do povo, tivemos ali, bem perto de nós, aberta, exposta aos nossos olhos, em páginas de ouro, a história daquela imensa ‘colmeia’, em a qual tão bem nos descrevem o quanto vale o poder da vontade. Já é um consolo o saber-se que o ‘nosso’ convencionalismo cruel, intolerável e injusto, e o ‘vales quanto tens’, cedem lugar àqueles que a golpe de trabalho, de inteligência e de perseverança conseguem seguir, impávido, desassombradamente, sempre para a frente!...”
    O segundo, uma esperança que “confortou-nos a alma aquele bulício, toda aquela movimentação, uma vida nova! – porque se nos afigurou que Pelotas compartilhava também daquela atividade e que saia, assim dessa apatia que nos envergonha, dessa inércia criminosa que desgraçadamente está voltada a nossa terra, não porque ela não seja imensamente rica – aqui está representada as maiores fortunas do Rio Grande do Sul – mas, infelizmente, é a verdade, porque não temos muitos Carlos ou Fredericos Ritter.”
    Por fim, mais agradecimentos pelo tratamento dispensado aos jornalistas e pela noite incrível. Na canetada das palavras finais, ficou um aperto de mão.
    Em notícias posteriores, pode ser acompanhada a ampliação das instalações elétricas da cervejaria, até mesmo experiências de pequeno porte de iluminação pública e de um campo de futebol. Pelas noites pelotenses, a bola passaria a rolar com muito mais destreza do que até então rolava.


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Fonte: Sobre a história da iluminação no Brasil, consulte o site da CEMIG (<http://www.cemig.com.br>). CEDOV – Bibliotheca Pública Pelotense.

quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Passo dos Negros: uma história provável

Passo dos Negros: uma história provável


 A. F. Monquelat
Jonas Tenfen

        


        Uma possível e provável história desta denominação, em nosso entender, está originariamente ligada a outras duas alcunhas ou toponímicos, quais sejam: Passo do Neves e, posteriormente, Arraial do Passo Rico. 
        Acredita-se que a antiga denominação, Passo do Neves, seja originária e esteja diretamente ligado ao nome do seu primitivo descobridor e/ou morador daquelas redondezas.
        Arraial era a denominação de lugar pequeno e temporário, povoado ou lugarejo.
       Já o nome de Passo Rico, que se confunde no tempo com o de Passo dos Negros, teve certamente sua origem tão logo tenha sido decretado, ao que parece em fevereiro de 1820 (ainda que solicitado desde 1815, pelo Marques de Alegrete), a autorização para cobrança de tributo na passagem de gados pelo canal de São Gonçalo com destino a Freguesia, tendo em razão desse “fabuloso rendimento” o local de arrecadação e passagem a ser chamado de Passo Rico, e outras vezes de Povoação do Passo dos Negros.
        Acreditamos que tão logo instituído o pedágio de vadeação das tropas, que se encaminhavam às charqueadas, tenha surgido naquele plano de terreno o Arraial ou a denominada “Povoação do Passo dos Negros”, compreendendo um pequeno número de ruas e travessas, dentre elas, no sentido paralelo ao Canal São Gonçalo a Rua da Praia e duas outras, no mesmo sentido: a Rua de São João e por fim a Rua de Campo; já no sentido vertical: a Travessa do Padeiro, a Travessa da Divisa e a Travessa para a banda de José Jerônimo, Não nos cabendo maiores informações quanto ao número de pessoas ou suas atividades, no entanto é correto afirmar ali ter existido uma capelinha. 
      Visto termos colocado em cena os elementos necessários para expor nossa hipótese, considerando o fato do caminho do gado em direção às charqueadas, em especial as que o margeavam para atingir as estabelecidas naquela região (também chamada de Estrada da Costa) e o alto fluxo de pessoas, não somente de escravos, que por ali transitavam, em sua maioria negra, podemos deduzir ser o caminho desses negros das charqueadas denominado de Passo dos Negros, ou seja: o caminho dos negros, a passagem dos negros.

O Passo dos Negros e algumas tragédias

        Em 23 de abril de 1891, o jornal Correio Mercantil noticiava que dia 21 daquele mesmo mês, das 20 para as 21 horas, no corredor das “xarqueadas Passo dos Negros” os pretos Libânio e Prudêncio encontraram-se com o seu companheiro João Mendes, com o qual tinham rixa velha, e, armados de facão, fizeram-lhe um ferimento que atingiu a parte superior do crânio do paciente.

Escorregou e caiu no tanque onde fervia a graxa

        O pardo Olympio Alves, 18 anos de idade, e que há muito era empregado na charqueada de propriedade do Sr. Coronel Justiniano Simões Lopes, situada no Passo dos Negros, quase morreu no dia seis de abril de 1912 de maneira trágica e dolorosa.
Olympio, após terminar o seu trabalho na charqueada, dirigiu-se para a margem do arroio, com o propósito de pescar.
        Às 11 horas, voltava ele da pescaria quando, ao passar junto ao tanque onde fervia a graxa escorregou e caiu dentro deste.
        Aos gritos que Olympio dava, foram ao seu socorro alguns companheiros que ainda chegaram a tempo de livrá-lo de uma morte horrível, rasgando-lhe a roupa imediatamente e untando-lhe o corpo com azeite e querosene.
        Em seguida, os seus companheiros colocaram-no em um carro de praça [táxi] transportando-o para a Santa Casa onde, devido ao estado grave em que se encontrava, ficou hospitalizado.

Ferimento no Corredor do Passo dos Negros

        Outra forma pela qual era conhecido aquele caminho era o de Corredor do Passo dos Negros. Pelo menos até o ano de 1915 era forma que a imprensa assim se referia. Na matéria do A Opinião Pública, em sua edição de 3 de abril do mesmo ano ao tratar de um ferimento ocorrido às 22h30 da noite anterior, motivo pelo qual apresentara-se no 1º posto o cidadão Paulino Monteiro, “branco”, de 23 anos de idade e que apresentava um ferimento no vazio, produzido por faca.
        Paulino declarou ter sido ferido por Pompílio Nunes, na ocasião em que este brigava com outro indivíduo, no extremo da Rua Tiradentes, no corredor do Passo dos Negros, perto da charqueada Pedro Osório & Co.


Conflito e morte entre carneadores da charqueada São Gonçalo

        Durante o serviço de matança, dia 8 de maio de 1929, à tarde, na charqueada São Gonçalo, de propriedade dos Srs. Pedro Osório & Cia., travou-se séria discussão entre os carneadores Leonardo Cardoso, negro, solteiro, de 28 anos de idade, e Benjamim Soares, também negro, contando 26 anos e natural do 2º distrito de Piratini.
        No calor da discussão, Benjamim chamou seu desafeto de “morrinhento”, ao que Leonardo retrucou dizendo que a noiva dele não era do mesmo parecer.
        Tal ofensa de Leonardo enfureceu Benjamim e, após mais umas investidas de ambos os lados, a rixa teve um ponto final parecendo ter terminado por ali mesmo.
        Às 18.30, à saída dos trabalhadores da charqueada fizeram ponto de parada no armazém São Gonçalo, de propriedade do Sr. João Ricardo Recuero, que ficava próximo àquele estabelecimento saladeiril, quando ali entrou Benjamim Soares, empunhando uma adaga, e, sem dizer uma palavra, investiu contra Leonardo, que recuou de encontro ao balcão, se defendendo com o braço desarmado, dizendo ao seu agressor:
        - Sai rapaz, que eu não quero te matar.
        No entanto, rápido, Benjamim vibrou-lhe dois golpes, ferindo-o no antebraço direito e no dedo indicador da mão direita.
        Sentindo os golpes e vendo que seu agressor não parava de lhe desferir golpes, Leonardo sacou de seu revólver e atingiu Benjamim duas vezes, ferindo-o no braço direito e na região mamária e fugindo à fúria de seu inimigo que, ainda de adaga em punho, saiu em sua perseguição.
        Após correrem uma quadra e meia, Benjamim caiu ao chão, morrendo em seguida.
Vendo Benjamim caído, Leonardo para e se entrega ao Sr. João Recuero, que havia saído de sua casa comercial em direção ao local em que estava Benjamim, entregando seu revólver e pedindo a Recuero que chamasse a polícia, pois queria entregar-se.
        O comerciante comunicou o fato ao 2º posto policial e ao Sr. Capitão João Gomes Nogueira, subdelegado daquele distrito, comparecendo ao local o Sr. Comissário Bráulio Pereira e dois guardas daquele posto, que efetuaram a prisão do assassino, à ordem do Sr. tenente-coronel Octacílio Fernandes, delegado de polícia.
        Leonardo, depois de apresentado à autoridade, foi recolhido ao xadrez do 3º posto.
Também foram entregues ao Sr. delegado de polícia o revólver do assassino, com cinco balas calibre 38, sendo duas deflagradas, e a adaga do morto, uma “xarqueaJaira” de 13 e meio centímetros.
Na delegacia, foram ouvidos, no dia seguinte, o Sr. João Ricardo Recuero e várias pessoas que assistiram ao conflito.
Benjamim Soares, o morto, pretendia casar no dia 5 do mês seguinte, tendo para tal mandado vir do 2º distrito de Piratini, sua noiva Hilda Borges, já morando em Pelotas à Rua Dona Mariana.
O corpo de Benjamim, que fora levado para o necrotério da Santa Casa, foi ali velado, depois de examinado pelo Dr. Oscar Echenique.
Leonardo Cardoso foi, à tarde, posto em liberdade, em vista de não ter sido preso em flagrante e de ter sido comprovada a sua legítima defesa


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Fonte de pesquisa: CDOV – Bibliotheca Pública Pelotense
Imagens: acervo de A.F. Monquelat
Tratamento de imagem "Copia": Marília Brandão Amaro da Silveira

quarta-feira, 16 de outubro de 2019

Primeira Guerra Mundial em Pelotas XII - O ano de 1918 [Encerramento]


Primeira Guerra Mundial em Pelotas XII


O ano de 1918 [Encerramento]


 
Hinderburg em discurso radiofônico, 1932
         
         
         A “Grande Guerra” ou a “Guerra para acabar com todas as guerras” (como se pensou à época) ainda se arrastaria por todo o ano de 1918 pela Europa. O ponto culminante, a abdicação do Kaiser Guilherme II, só ocorreria em novembro daquele ano. Depois vieram uma série de tratados que acabariam por fomentar sentimentos revanchistas: o estofo daquilo que viria a se tornar a Segunda Guerra Mundial.
         Em Pelotas, contudo, os desdobramentos foram menores neste ano. Seja pelo esgotamento de pautas, seja pela certeza de que não haveria um levante boche que tomaria toda a América. O inimigo acuado na Europa deixava de demostrar perigo nas terras da metade sul. Demissões e ostracismo também auxiliaram, pois a presença de falantes de língua alemã arrefeceu consideravelmente no centro da cidade, diminuindo, por consequência, os atritos.
         Como de hábito, as notícias que seguem são do jornal O Rebate, sempre atento aos desdobramentos da guerra e veículo para denuncismos. Damos destaque a dois dados que desenham a importância deste jornal ao período: a cobertura da Noite das Fogueiras e, em segundo lugar, o fato de que este veículo ficou à margem da campanha de propagandas contra a (e as defesas da) Cervejaria Ritter.
         No mais, as miscelâneas.
         Sob o título de “Assim não vai... nada com o s boches”, no mês de janeiro, temos a notícia de um casamente que quase não fora realizado por causa do general Hindenburg. A saber, o Henrique d’Ávila se dirigiu à casa de Ricardo Peckmann para celebrar o casamento da filha deste. Na residência, d’Ávila percebeu pendurada na parede o retratado de Paul von Hinderburg, o comandante do exército imperial alemão. Em protesto, assumiu que não realizaria cerimônia alguma à sombra de semelhante olhar e, não difícil de imaginar, um bate-boca deve ter sido iniciado. Ao fim, Peckmann aceitou retirar o retrato da parede, e a cerimônia de casamento ocorreu normalmente.
         Ainda em janeiro, quase no fim daquele mês, ao lado da longa matéria sobre a coroação da rainha do Club Diamantinos (nos preparativos do carnaval), a notícia de uma briga de bar. O título da matéria, contudo, é um pouco mais épico: Chopps, vivas e pancadaria: boche imprudente, a represália do povo”.
         Domingo passado, começa a matéria, foi aniversário de nascimento de Satanás, atendendo na Terra por Kaiser Guilherme II. No “Bar Sul Rio Grandense” (nome que recentemente adotara o estabelecimento “WatherRhein” para evitar represálias), encontravam-se diversas pessoas a beber chopps da conceituada cervejaria Haertel.
         Vários patrícios ali presentes começaram brindes e vivas ao Brasil, à França, à Itália e aos demais países aliados. Entoaram também o patriótico hino do valoroso Tiro 31. Um dos presentes, contudo, viu oportunidade começou a dar vivas ao Kaiser e à Alemanha.
         A confusão teve início. E fim bastante rápido.
         Aos socos e pontapés, o indivíduo foi expulso do bar e deixado à sarjeta, ferido e aos trapos. Os demais presentes lamentaram a imprudência dele enquanto que os donos do bar se desmanchavam em desculpas, tentando apaziguar os ânimos para que a briga não virasse generalizada.
         Correu notícia pela cidade, e ganhou ares de exagero: não era mais um boche, mas um grupo que no referido local havia entoado o hino “Deutschland uber alles” em homenagem ao Kaiser. O jornal O Rebate fez questão de dizer que isto foi invencionismo, pois apurara com um dos presentes ao acontecimento e nada passou de um viva e de uma surra. Mas era tarde...
         Ontem, o “povo reunido” foi ao referido estabelecimento para depredá-lo a pedradas e golpes de cacetete, quebrando muitos dos vidros e ameaçando ir além: em breve as chamas iriam ganhar vida. Outro grupo de “povo reunido”, também de patrícios, assumiu a postura apaziguadora, argumentando que era para ser evitada a represália enquanto todos os fatos não fossem apurados. Uma força da Brigada Militar chegou ao local para encontrar apenas o bar depredado: os revoltosos já haviam se retirado.
         Encerrando a matéria, “Oxalá sirva este fato de exemplo a uns tantos boches que por aí anda assanhados, sem lembrar-se da crítica situação que se lhes depara...”
         Em março, o desfecho em briga dos desdobramentos de uma notícia que poderia ser falsa. “Pugilato por causa de uma notícia” é título elegante para descrever uma briga de rua onde os envolvidos eram distintos cavalheiros.
         O jornal Echo deu notícias de festa para comemorar o regresso a cidade do Francisco Beherendorf, negociante. A festa fora de caráter íntimo, na residência deste cavalheiro, e, para animar os convidados, um gramofone executou várias peças em alemão.
         O jornal A Opinião Pública fez correção ao fato, por meio de informações prestadas pelo Leopoldo Maciel. O jornal, sem dar naquele momento a fonte, contestou a matéria de Echo, não passava tudo de engano e mentira no que se refere às músicas em alemão.
         Em contragolpe, o Echo reafirmou o exposto, alegando inclusive ter ouvido testemunha presente ao local. Fonte sem nome também possuía o Echo.
         Em resposta, Leopoldo Maciel empenhou seu nome nas páginas de A Opinião Pública, assumindo a responsabilidade pelo afirmado nas páginas deste jornal, assegurando a integridade das informações do veículo.
         Acuado mas não rendido, a resposta do Echo pôs em dúvidas a integridade da honra e da palavra de Leopoldo Maciel. Fim do primeiro round em papel, início do segundo round ao vivo.
         Indignado por ser difamado,  Leopoldo Maciel se dirigiu à redação do Echo para tomar exigir maiores explicações, o que iniciou um acalorado debate com o diretor do jornal, Almeida Peres. Não demorou para este debate se transformar em pugilato, atraindo a atenção dos olhares de quem passava pela rua. Devido a uma queda, Almeida Peres teve um ferimento na face.
         No Diário Popular, uma declaração lacônica tentava dar ponto final aos desentendimentos:

Declaração

Os abaixo-assinados declaram, sob palavra de honra, por isso que se achavam presentes, ser a expressão da verdade o que pela imprensa local publicou o sr. Leopoldo Maciel, relativamente ao falso boato levantado contra a pessoa do Sr. Francisco Behrendorf, por ocasião de sua chegada do Rio de Janeiro.
Pelotas, 14 de março de 1918
Joaquim Luis Osorio
Paulo Gastal.



Fim da série “Primeira Guerra Mundial em Pelotas”.

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Referências: CDOV – Bibliotheca Pública. Fonte da imagem: wikimedia commons.

quarta-feira, 9 de outubro de 2019

Primeira Guerra Mundial em Pelotas XI - A batalha entre Brahma e Gambrinus

Primeira Guerra Mundial em Pelotas XI
A batalha entre Brahma e Gambrinus


A. F. Monquelat
Jonas Tenfen



Rei, padroeiro, "santo" Gambrinus


         É objeto de debates a origem termo Brahma para nomear a empresa de cervejas brasileira. Há quem diga que o fundador da empresa, o suíço Joseph Villiger, quis fazer uma homenagem ao compositor alemão Johanns Brahms, a quem diga que a homenagem foi para o britânico Joseph Bramah, engenheiro responsável por inventar a “torneirinha”, a válvula manual para facilitar a venda de chope em bares.
          Ficaremos com a terceira hipótese: o nome da cervejaria e, posteriormente, da marca faz referência ao deus do hinduísmo. Utilizamos imagem do rei e padroeiro – um deus aos apreciadores – Gambrinus para ilustrar matéria sobre Carlos Ritter. Assim, mantendo as alegorias, este texto trata sobre a batalha entre Brahma e Gambrinus.
         Acompanhar a história da Cervejaria Brahma pode dar a nós, facilmente, um panorama do mercado de bebidas no Brasil. Não exatamente pelo seu pioneirismo, pois a empresa fora fundada em 1888, enquanto que os primeiros relatos de consumo e produção de cerveja neste país datam da ocupação holandesa. Esse panorama é dado pela própria atuação da cervejaria na criação e expansão de mercados de consumo para bebidas: formação da Ambev, vitória jurídica para continuar utilizando a palavra chope – embora seja tecnicamente uma cerveja -, investimentos na PepsiCo, as campanhas de marketing dos anos 80 e 90, compra de cervejarias de médio porte. Agora a narrativa começa a se aproximar a Pelotas, e de Porto Alegre.
          Como visto no texto anterior, o décimo desta série, teve início em Pelotas campanha de difamação contra a Cervejaria Ritter, mais uma entre tantas outras. Agora, contudo, não se tratava da qualidade do produto, mas de quem o produzia: como uma fábrica brasileira pode ser gerida por alemães, alguns deles, oficiais do Kaiser? Era preciso, logicamente, que brasileiros produzissem cervejas para brasileiros. Esta semente foi plantada, apesar de alguma demora, iria frutificar. 

Brahma, deus da religião hindu

         A importância da Cervejaria Ritter para a cidade de Pelotas era visível. De projeção nacional, chegava a produzir cerca de 4,5 milhões de garrafas por ano e, em 1911, metade da arrecadação da Mesa de Rendas do município vinha desta indústria. É referência constante que esta fora primeira empresa com iluminação elétrica no estado do Rio Grande do Sul, e uma das primeiras do Brasil. Fabricava e vendia, à grande população, gelo. Além de refrescar as bebidas de reuniões nos anos 1930 e 1940, servia para conservar alimentos nas rudimentares geladeiras disponíveis à época. (Estas caixas refrigeradas possuíam um compartimento na parte superior onde as peças de gelo eram depositadas; por terem isolamento térmico, os compartimentos inferiores eram resfriados. Uma vez derretido o gelo, era necessário adquirir uma nova peça.)
         Ato com grau de ineditismo teve o sr. Alcides de Oliveira quando assinou manifesto que fora publicado no jornal O Rebate, em novembro e 1917, onde aventa várias formas de tratar os males da terra à época, a saber, o perigo alemão e de “todos que fossem súditos de nações aliada da mesma categoria”. O ineditismo de Oliveira termina em não usar pseudônimo, todo o demais da carta é uma reiteração longa e cansativa do que já estava sendo veiculado na imprensa. Destaque, contudo, a dois trechos. 
         O primeiro deles é o tópico “b” deste manifesto:
b) Confiscaria propriedades, fábricas, casas de comércio, farmácias, laboratórios, etc, de alemães e faria que esses estabelecimentos continuassem a funcional sob a direção de brasileiros honestos e idôneos com proveito à nação.

          O segundo deles é o encerramento, uma transcrição em francês da Marselhesa congregando os amantes do justo, do belo, do alevantado e do verdadeiro à ação, pois “Le jour de glorie est arrivé”.
         Ao lado deste manifesto, mais um desdobramento da Cerveja Brazil, sob o título de “Ainda o caso da cerveja Ritter”, lembrando que era preciso tornar de verdade brasileira a cervejaria, bem como seus funcionários. Abaixo deste, o apelo do governo a todos os brasileiros para que “respeite a pessoa e os bens alemães; só ao governo incumbe punir aqueles que atentarem contra a defesa nacional”.
         Não há relatos de agressão física contra Carlos Ritter nem de invasão e depredação das instalações de sua cervejaria. O clima, contudo, estava muito pesado para a veiculação e distribuição de seus produtos, sem contar o encarecimento da matéria-prima devido à inflação à época. Sem conhecer a falência, Carlos Ritter faleceu no entre guerras, no dia 11 de outubro de 1926.
          As sementes da nacionalização de empresas plantadas no imaginário coletivo do brasileiro durante o período da Primeira Guerra iriam frutificar durante a Segunda Guerra. Várias empresas receberam aportes para expansão de sua atuação em território nacional, incluindo a Cervejaria Brahma que, na década de 1940, comprou a Cervejaria Ritter. Depois de comprada, as atividades e as marcas foram descontinuadas, pois a ideia era a de criar uma grande marca – Cerveja Brahma – e não de administrar várias marcas menores.
         Usando a espada do capital e atacando no momento certo, Brahma venceu Gambrinus. 
         Percebe-se com facilidade a presença de Ritter na cidade de Pelotas. O Museu de Ciências Naturais que leva seu nome está novamente aberto à visitação. A presença também está na fala do pelotense, que ainda se orienta usando a “antiga cervejaria” como ponto de referência, bem como a memória do gelo: é bastante corriqueiro esbarrar em relatos de pessoas que compraram gelo naquelas instalações. 


Rei, padroeiro, "santo" Gambrinus

         Um adendo: o sobrinho de Carlos Ritter, o mestre cervejeiro Frederico Augusto Ritter, fazia parte da Cervejaria Continental, de Porto Alegre, que congregava algumas cervejarias menores, quando esta também foi comprada pela Brahma. Frederico passou a investir na produção de alimentos, dando origem a Ritter Alimentos, marca ainda hoje encontrada nas prateleiras dos supermercados. 

continua...

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Referências: CEDOV – Bibliotheca Pública Pelotense. Sobre a história da Brahma, além do verbete na wikipédia, foram consultadas a página oficial da cervejaria e a página da Ambev, em particular a aba “Histórico”. Sobre a arrecadação da Mesa de Rendas de Pelotas em 1911, ver a dissertação de mestrado “Estrangeiros e Modernização”, de Marcos Hallal dos Anjos (PUC-RS, 1996). Sobre a Ritter Alimentos e sua história, ver o livro “Frederico Augusto Ritter: de cervejeiro a doceiro”, de Ana Cristina Pires Beiser (EdipucRS, 2009). Fonte das ilustrações: Wikimedia Commons.

quarta-feira, 2 de outubro de 2019

Primeira Guerra Mundial em Pelotas X - Ainda o caso da Cervejaria Ritter

Primeira Guerra Mundial em Pelotas  X -
Ainda o caso da Cervejaria Ritter


A. F. Monquetat
Jonas Tenfen



    Como relatado na edição anterior, circulou pela cidade de Pelotas, em novembro de 1917, um panfleto para fazer propaganda de um novo produto da Cervejaria Ritter, a saber, a cerveja Brasil. É pouco provável que houvesse alguma mudança substancial na receita do produto, alterando a qualidade tradicional com a qual a cervejaria trabalhava ou acrescentando novo ingrediente; a novidade estava no nome e na ideia de propaganda em gravar o nome “Brasil” com as cores da bandeira alemã. Houve quem visse nisso que “nosso país está por baixo do pavilhão teutônico”.
    A capa de O Rebate, do dia 26 daquele mês, destacou a Primeira Guerra Mundial, principalmente no que dizia respeito aos seus desdobramentos aqui na região. Encontramos uma carta escrita por J. L., endereçada de Rio Grande e datada do dia 22 daquele mês, onde é reiterado os chavões constantes: defesa da nação, agir em nome do direito, destaque ao indubitável fato do perigo alemão (“os habitantes das colônias formam um verdadeiro exército em disciplina e em preparo militar”), o Deus Kaiser, a insistência de que a desafronta é justa, custe o que custar.
    Ao lado da carta, a matéria principal com o título autoexplicativo “Canalhismo Boche: Ainda o caso da Cervejaria Ritter”; caso houvesse ainda alguma dúvida do posicionamento da matéria, antes do texto principal, uma chamada: “Para trás, farsantes!”. O leitor apressado que se contentasse apenas com um passar de olhos por esta edição de O Rebate sairia, com toda certeza, com má impressão da Cervejaria Ritter, talvez questionando se devesse consumir os seus produtos.
    A matéria, assinada por “Um grupo de brasileiros”, descreve a defesa que a Cervejaria Ritter fez nos jornais locais contra os ataques e mal-entendidos suscitados depois das propagandas acerca da Cerveja Brasil. O primeiro parágrafo reduziu as respostas a um pedido de desculpas, não somente por erro cometido, mas “postos diante do adversário capaz de enfrentá-los, curvam-se até o chão para pedirem misericórdia”.
    Sem dar nomes, o texto afirma que a defesa foi escrita por algum “brasilicus-boche”, tão insidioso quanto seus contratantes. Há menção a alguns cartazes onde a palavra Brasil, ou na grafia da época: Brazil, teria a letra Z de seu nome substituída pela cruz de ferro, uma imagem associada ao Kaiser Guilherme II, bem como ao exército alemão. Exceto por esta menção, não há outra notícia destes cartazes em Pelotas. Entende-se, é preciso destacar, que a propaganda da Cervejaria Ritter não fez uso da cruz de ferro, sim das cores da bandeira alemã.
     A partir dos contra-argumentos do texto “Canalhismo Boche” podemos perceber sendo quatro as linhas de defesa escritas pelo “brasilicus-boche”: a inocência da propaganda, o brasileirismo de Carlos Ritter, o tesouro Nacional e Estadual, e, o sustento de muitas famílias.
    Quanto à inocência da propaganda, foi alegado que tais cartazes despreocupados em relação às questões da cor e outras disposições artísticas. O objetivo não era outro que fazer propaganda à cerveja Brasil.
    Em resposta, foi pechada esta explicação de balela, lembrou também que “os ‘bugres’ deste país [...] não são tão ingênuos como pensa o escrevinhador da insultuosa defesa e seus sugestionadores.” Afinal, uma empresa tão poderosa, única em Pelotas com relações comerciais com a fábrica Ypiranga, bem como outras litografias, tinha conhecimento e experiência para entender o que estava almejando com a propaganda.
    Quanto ao brasileirismo de Carlos Ritter, esse deveria ser indiscutível. Descendente, é verdade, mas brasileiro e patriota, ciente de suas responsabilidades de cidadão e sustentáculo da comunidade.
     Em resposta, foi alardeado que dois dirigentes da fábrica são alemães de nascimento (na expressão usada no texto: “legítimos”), e, um deles, era oficial de forças armadas alemães. Assim, a Pátria Brasileira não via como patriota quem contratasse oficiais do exército de país inimigo, ainda mais em pleno estado de guerra. Semelhante ato semeava espiões por todo o território.
    Quanto aos Tesouros, a Cervejaria Ritter afirmou que “derrama” somas de dinheiro aos cofres nacional e estadual.
    Em resposta, a lembrança da obrigação: não fazia nada mais que o dever com o fisco. Sem cumprir esta elementar obrigação, a cervejaria teria as operações encerradas devido às ações legais da autoridade do fisco.
    Quanto aos brasileiros, a Cervejaria Ritter era o sustento de muitas famílias.
    Em resposta, resposta alguma. O “grupo de brasileiros” deixou de dar atenção ao argumento econômico: perguntou se a cervejaria estava confundindo salário com esmola. Afinal, os brasileiros que ali estavam, exerciam labores à espera de pagamento. Pensar que isto era esmola tratava-se de insulto que “precisa de enérgica repulsa na devida forma”.
    A defesa da Cervejaria Ritter encerrava com um ataque aos indivíduos, melhor: ao grupo, que explora o patriotismo por interesses pessoais. A resposta é bastante confusa, parece, em resumo, assumir que é melhor os brasileiros serem explorados por outros brasileiros que por estrangeiros.
    Ilustração da matéria “Canalhismo boche” é um clichê: imagem de um indivíduo de costas descendo para uma galeria subterrânea. Na legenda: “Entrada d’um posto de socorro, alemão, na floresta d’Ourocamps”. No site “past-to-present.com”, de onde tiramos a imagem que ilustra nosso texto, é dito que o autor da foto é desconhecido e que a data é de 1918. Em relação à autoria da foto, nada podemos dizer; quanto à data, o site que a veicula está equivocado, pois já no ano de 1917 esta foto circulava pela imprensa brasileira.
    No dia 27 de novembro, O Rebate noticiou novamente matéria de outros jornais pelotenses. Do “Opinião” sabemos que, sábado, de última hora, os dois alemães que ocupavam cargo de diretoria na Cervejaria pediram suas respectivas demissões ao conselho fiscal; e, do “Diário” sabemos que “já foram convidados para diretores dois apreciáveis conterrâneos”. A matéria de O Rebate afirma que “já é alguma coisa, embora não seja ainda tudo!” : a dispensa de dois diretores era insuficiente, era preciso que dentro de uma companhia brasileira tudo fosse brasileiro. Pois “só assim poderemos descansar e ter certeza de que não somos mais mistificados e de que na verdade é ‘de verdade’ brasileira a Companhia de Cervejaria Ritter”.
    Esta segunda matéria de O Rebate não leva assinatura, apenas três asteriscos ao seu fim.

Continua...
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Fonte: CEDOV – Bibliotheca Pública Pelotense. Imagem oriunda do site <past-to-present.com>.