terça-feira, 21 de agosto de 2018

Pelas ruas de Pelotas


    
A.F. Monquelat

                                                                                Jonas Tenfen


Pelotas, a exemplo de outras cidades, viu circular por suas ruas diversos tipos de pregoeiros de mercadorias em domicílio, desde o aguadeiro, quitandeiro, cabungueiro, engraxate, vendedor de aves, carvoeiro, verdureiro, leiteiro, padeiro, ervateiro, afiador e tantos e tantos outros ambulantes que, ao decorrer dos anos, foram sofrendo influências e se readequando aos novos tempos. Ou simplesmente desaparecendo.
     De toda essa miríade de saberes e fazeres que está na constituição da cidade, iremos aqui nos ater a dois exemplos de profissionais que exerceram seus labores pelas ruas de Pelotas.

     O afiador



     
Um desses tipos chegou até a década de 80 do século XX: o afiador, que ainda fazia rodar sobre o calçamento da cidade as suas primitivas máquinas, que costumávamos ver em nossa infância.
     Ainda que todos, ou quase todos, os ramos da atividade humana tivessem sofrido, naquelas últimas décadas, várias influências do progresso, as máquinas de afiar, acreditamos, continuavam seguindo as mesmas linhas e oferecendo o mesmo aspecto do passado.
     Esses prestimosos servidores das populações das cidades percorriam as ruas, diariamente, fazendo soar a sua gaita típica.
     O som daquela gaita anunciava, tanto à dona da casa ou à empregada doméstica, que se encontrava em dificuldade para cortar com a faca “cega” a carne do almoço, como ao açougueiro, ao barbeiro, ao alfaiate, enfim, a todos que diariamente eram forçados a utilizar-se, para o desempenho de suas atividades, de instrumentos perfurocortantes, que o homem que poderia resolver o problema estava chegando para dar melhor gume aos seus instrumentos de trabalho.
     Uma das particularidades interessantes a ser assinalada era da inexistência de descendentes de outras nacionalidades na atividade de afiador que não a espanhola, pois todos os profissionais vistos pelas ruas da cidade, empurrando pacienciosamente suas máquinas de madeira, ruas à fora, eram, em Pelotas como na maior parte das cidades brasileiras, filhos da terra de Cervantes.
     Na década de 50, existiam seis ou sete afiadores, todos oriundos da Espanha. Um destes, exercendo aquela árdua profissão em Pelotas há mais de vinte anos ininterruptos, era, provavelmente, o mais antigo afiador da cidade. Chamava-se ele José Fernandes Gonzalez, que viera para o Brasil via Cuba e outros países da América Central, há coisa de mais de trinta anos.
     Em Pelotas, Gonzalez exerceu, de início, outra profissão antes de adotar aquela em que se ocupava na época. Trabalhara como capataz no serviço de esgotos.
     Deixando essa função, tornou-se afiador e não mais abandonou a máquina que, por sinal, era a mesma com a qual se iniciara na “arte”.
     Apesar da fama de comedidos nos gastos eram os espanhóis, de maneira geral bastante limitados nas despesas e procurando reunir, a todo custo, um “pé-de-meia”, fosse qual fosse a atividade em que se ocupavam.
     Entretanto, Gonzalez, que era natural da Galícia, certa feita, quando entrevistado, disse ao repórter que mal conseguia obter o estritamente necessário para o seu sustento e o de sua família, que não era muito numerosa.
     Cobrava ele, na ocasião da entrevista, três e quatro cruzeiros por faca ou tesoura que lhe confiavam para afiar, mas apesar de trabalhar de sol a sol, nunca conseguira reunir economias, nem mesmo uma casa para morar pôde ele adquirir.
     Gonzalez morava em casa alugada e teria que desocupá-la, pois fora vendida.
     Contava Gonzalez com 60 anos, cinco filhos, sendo um deles casado. Sua esposa, ele a conhecera em Pelotas, onde se casou pouco depois de sua chegada a cidade.
     Pelotas inteira o conhecia. Era comum que desconhecidos a ele confiassem instrumentos das mais variadas espécies para dar fio ao gume.

Doutores das ervas



Dizia ele também que entre os frequentadores da tal casa notavam-se vários índios peruanos, “desses que por aí andam de sacola às costas vendendo  remédios”.
                                                                             Pelotas dos Excluídos


         A referência acima, retirada da obra Pelotas dos Excluídos, diz respeito a um episódio registrado pela imprensa da cidade, no ano de 1875, ao denunciar as atividades de uma “feiticeira” (proto-mãe de santo), cuja casa era também frequentada por esses peruanos, vendedores de ervas que andavam pelas ruas da cidade.
         Dentre as conotações de desprezo manifestas pelo jornalista no corpo do fato, salta aos olhos o descaso e descréditos atribuídos ao uso de ervas como “remédios”, quando não por serem estes empregados por uma negra africana em suas atividades.
            De qualquer forma, e cada vez mais presente na medicina popular e caseira, tanto as ervas quanto aqueles que se dedicam ao seu comércio, sobreviveram aos tempos, ainda que raramente sejam vistos oferecendo “remédios”. Como era o caso do Sr. Carlos Alves, negro quase centenário - retrato de um infame e cruel passado- que, ao ser abordado e perguntado sobre a eficácia de seus “remédios”, respondeu: “Pra tal di pinicilina eu tenho catinga di mulata, que cura até calo arruinado”. Hoje sabemos que, dentre outras propriedades, erva citada serve para amenizar dores articulares e reumáticas.
         Curioso com a informação dada pelo Sr. Carlos Alves, resolveu o jornalista ouvir aquele negro teso, quase centenário, sorridente, sustentando um saco de “ervas curativo” às costas, ministrar ensinamentos sobre a arte de curar, sobre os efeitos de suas drogas e as consequências que elas provocavam:
         - Curam as dores do corpo meu filho – disse-lhe o Sr. Alves, mostrando os farrapos de sua indumentária, acariciando um galho de carqueja - e acrescentando: - Estou assim de faceiro, gosto muito da profissão. Eu sou “doutor” há não sei quantos anos...
         Carlos Alves disse ter um passado muito sinuoso, tão repleto de episódios que na revolução de todos aqueles acontecimentos sentia lhe faltar, com frequência, a memória e se dizia ser “hoje um homem do presente”.
         - Não lembro bem o que passou. Vivo o dia de hoje. O passado é uma coisa que não me interessa. Gosto mais do instante. Gosto mais do instante, de vender minhas ervas, de curar meus irmãos.
         Disse o repórter ser Carlos Alves possuidor de uma filosofia muito própria, humana, e ser também um dos últimos representantes dos tempos do “pajé curandeiro”. Ia arrastando seus anos com paciência, divertido, às vezes engolindo um trago de aguardente de cana.
         E, pondo o ponto final na entrevista com o jornalista, disse ele:
         - Tenho curado muita gente. Agora quero que me deixem morrer em paz. Acho que o pessoal não precisa mais de mim. Antigamente a coisa era diferente. Hoje até se morre menos...