segunda-feira, 18 de julho de 2016



Se Pelotas não criou o charque, o charque e a escravidão inventaram Pelotas (parte 3)



                                                                                                          A.F. Monquelat 

O espaço territorial denominado Pelotas, é bem provável que tenha origem entre os anos de 1780/81. E não por causa de José Pinto Martins e sua charqueada; pois, quanto a este, aqui não esteve. Mas sim, por ser 1781, o ano em que o governador Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Câmara assentou os alicerces para o surgimento da futura cidade.
Mercado de Carnes - Jean-Baptiste Debret

A historiografia pelotense, através de pesquisadores, historiadores e cronistas da história, por ignorar os fatos e desconhecer documentos sobre este assunto, segue atribuindo a José Pinto Martins um pioneirismo que a este não coube. Pelotas, nos seus primórdios, já dissemos anteriormente e voltamos a repetir, é consequência do agropastoreio; e não de uma atividade menor, como era o ato de charquear. E nesta afirmação, incluímos também o processo de povoamento do espaço territorial, que deu origem à urbe.

Na tentativa de melhor contextualizar esta afirmação, reproduzimos aqui parte das correspondências do governador José Marcelino de Figueiredo enviadas ao Vice-rei, D. Luís de Vasconcelos e Souza, entre os meses de setembro e outubro do ano de 1779. Na carta de 12 de setembro “pedia o governador José Marcelino de Figueiredo ao Vice-rei que este mandasse, a pedido dos moradores da Vila do Rio Grande, formar uma nova Freguesia nos Campos da parte do Forte de São Gonçalo”. Em de 15 de outubro de 1779, aparece o seguinte teor: “[...] tendo chegado à Vila do Rio Grande muitos Casais oriundos da Praça da Colônia [do Sacramento], e ultimamente chegaram mais quarenta famílias, todas pobres e de arrasto; [e] pedem farinha e carne para comer, e eu não tenho nem para a Tropa, caso V. Excelência não a mandar ou dinheiro para compra como já tenho pedido.

Já propus a V. Exª. (e aquele numeroso povo requer) seria muito útil formar com aquela gente uma povoação, ou vila nos Campos chamados das Pelotas [grifos nossos], ou em suas imediações na forma das Ordens de S. Majestade. E é muito e muito útil, senão tanto povo perecerá, porque todo [ele] se tem juntado na Vila de São Pedro [do Rio Grande] onde se conservam sem arrumação, e sem ter [o] que comer, nem modo de viver e ainda será mais útil e necessário se forem outras Freguesias, para aumento espiritual e temporal destes Colonos, [...]” (MONQUELAT e MARCOLLA, 2010d, p. 53-54).

Poucos meses depois, Sebastião Francisco Bettamio datava no Rio de Janeiro, aos 19 dias do mês de janeiro de 1780, sua “Notícia particular do Continente do Rio Grande do Sul – Segundo o que vi no mesmo Continente, e notícias que nele alcancei, com as notas que me parece necessário para aumento do mesmo Continente e utilidade da Real Fazenda. [...]”.

Esta Notícia, uma espécie de Relatório, tinha o objetivo de levar ao conhecimento do Vice-rei, de quem partira a ordem, o que Bettamio vira, ouvira e sugeria quanto às providências que no Continente deveriam ser tomadas.

Ao tecer comentários sobre várias freguesias, dentre elas a Vila do Rio Grande e seus limites, nos informa Bettamio que: “Têm também fregueses da parte de fora do Sangradouro de Merim, onde chamam os Campos das Pelotas, e Arroio das Pedras”. Logo após, há uma Nota de Bettamio, na qual nos diz que “Todas as freguesias nomeadas ocupam grandes extensões de terrenos, mas a maior parte são estâncias de criações de gados”.

Diante de algumas hipóteses aventadas por Bettamio, quanto a mudar a Vila do Rio Grande para outro local, está a de que “Sendo a mudança para o campo chamado das Pelotas, onde o terreno é melhor, e tem pedra, há os descontos de ficar distante da barra mais de dez léguas; e não se poder fortificar, ou guardar pela parte do campo sem uma numerosa guarnição [...]”.

Quanto aos “campos chamados S. Gonçalo, das Pelotas ou do Serro Pelado” nos diz Bettamio, que estes “pertencem à Coroa de Portugal, segundo o Tratado de Paz, mas como não está demarcada a linha de limites, parece não ser justo ocuparem-se aquelas campanhas, nem repartirem-se a moradores sem estar concluída a linha divisória; e o tenho visto praticar pelo contrário, porque não só se tem repartido, mas até se tem vendido de um particular a outro a posse por um título que não é, nem podia ser, e tal e qual foi adquirido ainda antes da invasão que os Castelhanos fizeram no Rio Grande, em cujo tempo não pertencia à Coroa de Portugal aquele terreno. Todos dão uma boa informação dele para criações de gado, por ser de excelentes pastos, e a ideia é fazer ali povoação, e puxar para lá os moradores”. Acrescenta logo a seguir: “Confesso que não sei qual seja a política de separar os povos em distâncias tão avultadas, expondo-os aos maiores incômodos e riscos. Meu intento não é que se não utilize aquelas terras, mas antes pelo contrário digo que é justo se empreguem em criações de gados, logo que pela linha divisória ficarem nesses termos, não podendo os atuais possuidores alegar direito à posse em que estão por serem intrusos e não poderem mostrar título legal, que lhes autorize o domínio dos ditos terrenos que intrusamente ocupam. Sou sim de parecer que, sendo lá as fazendas de gados, sejam as vivendas de seus donos dentro do recinto da Vila, como já fica declarado”.

Fizemos questão de mostrar as ponderações feitas pelo governador José Marcelino de Figueiredo, bem como as explanações e sugestões de Sebastião Francisco Bettamio ao Vice-rei D. Luiz de Vasconcelos e Souza, no intuito de mostrar que nossa afirmação quanto ao processo inicial de ocupação dos campos denominados “das Pelotas” não foi obra fortuita ou tão pouco de um único empreendimento: a charqueada de José Pinto Martins.

Dissemos, anteriormente, que os alicerces para o surgimento da cidade de Pelotas foram assentados pelo governador Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Câmara, e para que isso fique mais visível ao leitor, tomaremos alguns dados da petição do charqueador Antônio José de Oliveira Castro contra Antônia Margarida Teixeira de Araújo, que ajudarão a compreender a atitude do Governador quanto à Sesmaria do Monte Bonito. 

                                                                                   Continua...

quarta-feira, 13 de julho de 2016

 
[Entrevista de Adão Monquelat concedida à Equipe da Capelania da Universidade Católica de Pelotas, em 07 de julho de 2016. Este Convite à Reflexão versa sobre a história e pré-história de Pelotas, sobre a cidade "invisibilizada", sobre o livro "Pelotas dos Excluídos" e "Desfazendo Mitos", entre outros temas.]
Convite à Reflexão - Aniversário de Pelotas
Capelania e Identidade Cristã
            No mês de julho é celebrado o aniversário da cidade de Pelotas. Mas qual Pelotas? A da Freguesia ou a do Padroeiro?

            Situada na região sul do Rio Grande do Sul, a cidade ganhou grande prestígio social e econômico através da produção do charque, uma atividade econômica realizada pela exploração da mão-de-obra escravizada de afrodescendentes no território brasileiro.
            Conforme o historiador Caiuá AL-Alam, “o grande destaque adquirido pelos grupos sociais dominantes — uma aristocracia proprietária de charqueadas e escravos — leva a cidade a ser vista como a Princesa do Sul, devido sua vida cultural sofisticada e por sua intensa relação com a Europa".
            A Capelania oferece para a semana uma reflexão sobre outras Pelotas que coexistem, ou que são invisibilizadas. Oferecemos uma entrevista realizada com o pesquisador e escritor Adão F. Monquelat, que apresenta outras narrativas a cerca da construção da cidade. A entrevista baseia-se em dois livros de Monquelat: "Desfazendo Mitos - Notas À História do Continente de São Pedro", de 2012, e Pelotas dos Excluídos – Subsídios Para Uma História do Cotidiano”, 2014.
            Desejamos uma boa leitura e reflexão.
 
Pelotas está de aniversário nesta semana. Qual Pelotas? A da Freguesia ou a do Padroeiro?
São duas coisas diferentes. Primeiro, eu trabalho com a ideia de que Pelotas gerou várias Pelotas, então tem uma Pelotas, vamos dizer assim, “pré-histórica” que vem até a criação da freguesia, ali começa um processo de urbanização, e tem uma outra Pelotas, dentre as várias, que é a “Pelotas dos Excluídos”. 
Adão Monquelat é pesquisador e apaixonado por livros. Poderias abordar um pouco da tua trajetória e como surge teu interesse pela história de Pelotas?
Me considerado um pesquisador e não um historiador para não estar em exercício ilegal da profissão, se não o pessoal poderia me cobrar, principalmente o pessoal da academia, como eu sou Telles (brincadeira referente às escolas de samba do município).
Quando eu me dediquei a conhecer a história da cidade, percebi que ela tinha uma série de pontos que eu questionei. O fato de estar registrado para mim não significa que seja verdade. Pode ter uma outra forma de ver essa mesma coisa. Acho que a verdade tem três faces: a minha, a tua e a verdadeira, que pode ser a minha, a tua ou nenhuma delas inclusive, ou pode ser uma fusão das duas. Então, comecei a ler e aprendi a paleografar, sou um autodidata em paleografia. Andei nos arquivos de Montevidéu, comprei muita documentação digitalizada, pesquisei os arquivos de Minas Gerias, São Paulo e Rio. Foi um conjunto de coisas que foram se formando e isso fez com que eu começasse a repensar a história da cidade. Comecei a procurar onde estava a origem dessas lendas ou desses mitos. Sou apaixonado por desfazer mitos. Daí começo a ver o seguinte, a primeira história sobre a cidade é religiosa, do Viera Pimenta, pertencente à entidade do Santíssimo Sacramento, vinculada à Igreja Católica. Ele faz uma narrativa religiosa, ele não tem a preocupação de um cronista do seu cotidiano e ela nunca foi impressa. Então, passei a conhecer o que o Simões Lopes Neto entendeu de interessante na descrição do Vieira Pimenta. Aproximadamente em 1905 o Simões Lopes, que é nosso escritor maior sem nenhuma dúvida, mas que é um péssimo historiador, tudo o que ele disse serve para conferir e perceber que ele se enganou, mas não por má intenção, por falta de documentação, de recursos. Ele fez com grande mérito a revista do primeiro centenário, visando o centenário em 1912.
Há um grande consenso que Pelotas nasce por causa de uma charqueada, isso não é verdade e está documentado. O Simões falava (e na época ele não sabia) que o Pinto Martins não era cearense e sim português e que ele é o terceiro de quarto irmãos. O Pinto Martins chega ao Brasil por volta de 1780 e tem a preocupação de se tornar um familiar do Santo Ofício (informante da Igreja) para denunciar certas práticas não religiosas, de origem de feitiçaria ou de ritos judaicos, e isso ajudava a ascensão econômica e social de alguém se tivesse esse certificado. O Pinto Martins, entre 1780 e 1787, fica envolvido nesse processo para saber se ele poderia ou não ser um “familiar”. Duas coisas eram importantes para que isso fosse concedido: que ele não tivesse sangue judeu nem negro e uma série de coisas. Tinha que ter um certa “pureza”. O primeiro de quatro irmãos casou-se com a cunhada de um charqueador em Aracati (CE). Depois vem o segundo e estabelece uma série de atividades como charqueiro. Já com certo status econômico, eles fazem vir os dois últimos irmãos, o “nosso” José e o Antônio, os dois que acabam em Pelotas (bem depois). Os dois últimos da via marítima, entre os trechos Mossoró, Aracati e Recife. Em Mossoró eles buscavam sal, descarregavam em Aracati, na charqueada dos irmãos, carregavam para Recife e lá eles trocavam esse charque ou vendiam por outras mercadorias porque também eram atacadistas. Isso acontece entre 1880 e 1887, sendo que em 1887 ocorreu uma tragédia na charqueada, quando um escravo enciumado pensava que sua mulher estava tendo um caso com o patrão e resolve matá-lo, o Pinto Martins interfere e leva uma facada e vem a morrer em consequência desse ferimento. Neste ano, morreram os dois irmãos mais velhos e as viúvas, não querendo permanecer com os negócios, resolvem vender tudo e fazem com que o José e o Antônio P. Martins tenham que estabelecer outro negócio. Aí possivelmente eles tenham vindo para o Rio Grande já sabendo da produção de charque aqui com o intuito de levar, pois viviam embarcados (essa é uma hipótese). Se sabe que primeiramente eles teriam que estar em Rio Grande porque era um centro onde os charqueadores pelotenses e de outras regiões levavam o material para despacharem. Ainda se tem o José Pinto Martins como fundador da cidade, mas a cidade não é fundada por uma única pessoa, é necessário vários contextos para que ela nasça. Eu digo que Pelotas é uma invenção do charque e da escravidão, não fosse isso ela seria uma cidade como outra qualquer dentro da província.
Que Pelotas é essa invisibilizada, principalmente os negros, desde o tempo das charqueadas e que ainda hoje estão marginalizados? 
Uma dessas datas, extensão menor que uma sesmaria, pertencia a Mariana Eufrades da Silveira, que é onde estamos. A potígua era de um charqueador que vendeu ao Capitão Antônio dos Anjos. Daí nasce a freguesia, a Igreja. Nasce o primeiro aforamento. Ele comprou a área de um charqueador, á área que depois ele faz uma doação generosa para a Igreja Católica. Com isso se começa a estabelecer os fregueses da Paróquia, da Igreja e é aí que se dá a confusão. O distrito era Pelotas. Foi necessário realizar um processo pois a maioria dos foreiros não queria mais pagar o aforamento. A criação da freguesia se da em 31 de janeiro de 1812 através de um alvará assinado pelo príncipe Dom João. O 07 de julho é a data da Igreja, do padroeiro. Alguns datavam distrito ou freguesia de Pelotas; outros próximos a Igreja  datavam São Francisco de Paula. Acabou prevalecendo São Francisco de Paula. A cidade tem duas certidões de nascimento uma do civil e uma do religioso que até hoje é comemorado.
Monquelat primeiramente abordavas a questão da desconstrução do mito. Poderias apresentar o processo da chegada dos descendentes de africanos em Pelotas?
O negro chega em Pelotas já no período colonial. Nas fazendas e estâncias, com exceção das datas, havia escravos. Tudo era produzido por mão de obra escrava. Talvez possamos pensar o seguinte: a vinda do escravo, em tempo de castigo tenha sido mais amena nesse passado. Mas a medida que a urbe começa a aumentar, é também maior o fluxo de venda do charque como produto. Tem início um outro processo de feitura e uma mão de obra maior pois a demanda começa a crescer. A produção em larga escala no Rio Grande do Sul começa com João Cardoso da Silva, soldado que estabelece uma estância nas ruínas do forte de São Gonçalo e a suas dispensas ele trás de Portugal um técnico da salga, protegido pelo governador da época. Inicia-se o processo de charqueação para outras instâncias que vão sendo estabelecidas. Foi em Arroio Grande que nasceu a produção de charque. Há um buraco na história, porque não há produção. Há um outro grupo de charqueadores que são os mais conhecidos. Mas isso é mais tarde. Com o término da revolta, porque não chamo de revolução, acontece a retomada da produção do charque. Tem um outro fator que é a cólera que chega a Pelotas e dizimou principalmente os negros por causa das condições precárias das senzalas, principalmente devido a umidade e sujeira. Nesse período morreram escravos e a parte mais empobrecida da cidade.
Na década de 1860 Pelotas era uma cidade extremamente pacata, quebrada pelos tropeiros que chegavam. Aí começa realmente a ser construída a cidade que nós herdamos que é a Pelotas dos excluídos, porque no final dessa década surgem quatro empreendimentos: a Companhia Hidráulica Pelotense, a segunda a desobstrução da foz do São Gonçalo, terceiro a Ferro Carril de Pelotas e por último a criação da Biblioteca Pública, já na década de 70. O estabelecimento da companhia hidráulica privatiza a água na cidade e os chafarizes que embelezam hoje a cidade, na época eram motivo de espoliação, porque não era permitido retirar água se não fosse pago. Tudo era vendido. Começa um desenvolvimento e um outro problema: a chegada na navalha via porto trazida por imigrantes portugueses e se soma a outros instrumentos de violência. Começa então a gestação de várias Pelotas. Uma delas oriunda da região da Serra dos Tapes e São Lourenço, que é Pelotas do colono que e o traço é a produção do seu trabalho, da agricultura para o abastecimento da cidade. A outra é a Pelotas da barbárie, dos castigos… que é a Pelotas das Charqueadas, uma outra acontece via fronteira que é a dos tropeiros e os oriundos do mar. Há uma confluência, um conjunto de “tipos sociais” que começam a habitar, a se desenvolver, a expandir principalmente a violência. Começa a partir daí os meus personagens, que é essa gente toda a constar nas colunas policiais que são os excluídos. Existe um comércio nas tavernas e tascas porque eram uma espécie de motel. Elas eram uma espécie e iscas para os tropeiros que gastavam dinheiro também devido ao álcool e ao jogo. Depois há uma proibição das mulheres exercerem esse tipo de atividade e ocorre uma descentralização da prostituição, e com isso um aumento da violência. Principalmente uma única quadra denominada “encrencópolis, a canaã das facadas” que era a rua Vinte e Quatro de Outubro que depois foi nomeada como Tiradentes. 
Em 2014 escrevestes o livro “Pelotas dos Excluídos (subsídios para uma história do cotidiano)”, publicado pela Editora Livraria Mundial, o que abordas nesse livro?
No livro Pelotas dos Excluídos trago presente os negros como também os pobres e migrantes da época.
Apresento as ocorrências publicadas pela imprensa. Eu não mexo no texto, apenas acomodo a linguagem de hoje, mas não descaracterizo. Não gosto de nada pronto e não entrego nada pronto para que o leitor possa fazer as deduções. No Pelotas dos Excluídos a introdução é o meu pensamento sobre a cidade, mas depois entrego as ocorrências.
No contexto  de exclusão da Pelotas aristocrática daquela época podemos citar o marginalizado como o imigrante, colono, os descendentes de africanos, sobretudo o pobre. A narrativa presente neste livro contribuiu com elementos para (re)pensar a história de Pelotas. Atualmente, consegues observar quem são os “excluídos” no município? Como enxergas Pelotas hoje?
No período colonial uma elite começa a se estabelecer, uma aristocracia que através do poder econômico  descentraliza e afasta essas pessoas. O cortiço é um espaço muito importante e considerado insalubre. Conforme estes lugares são comprados, essas pessoas ficam cada vez mais distanciadas do centro e são os excluídos da história que vieram com uma expectativa e não foram tão bem sucedidos.  Em uma sociedade basicamente de charqueadas, que estavam nas mãos dos “pataqueiros da aristocracia do sebo” a possibilidade é muito menor. Outros são atraídos pela riqueza que aqui circulava. Pelotas sempre foi uma mini-corte onde o modelo era o Rio de Janeiro.
Os excluídos da Pelotas hoje estão na periferia e aparecem em grandes eventos, por exemplo, se tu andas pelo centro da cidade você encontra pouquíssimos negros em relação a proporção que eles existem, mas se acontecer um evento como o carnaval aí começas a ver uma Pelotas que não se conhece. A Pelotas da periferia… eles continuam sendo empurrados para mais distante, pois quanto menor as condições de vida eles tiverem é melhor para o núcleo urbano. Pelotas foi construída em cima de muito sangue, de muita injustiça social que permanece.
Sempre houve muita discriminação e há uma prepotência estabelecida por uma história aristocrática e oficial.
Houve um tempo em que se conviveu com a condição de civilização e barbárie, e a segunda era a ponto dos negros confessarem crime que não tinham cometido para terem um momento de sossego na cadeia, sob pena de serem condenados, devido ao tipo de trabalho e castigos exercidos na charqueada.
Como pesquisador abordas que “se teve durante muito tempo uma história repetida e oficial, e uma linha de seguidores subservientes a essa narrativa aristocrática”. O que pensas sobre isso?
Penso o seguinte: a construção de algo em mais de um século não pode ser desfeita por alguém que aparentemente “chegou ontem” na história. Existe uma construção dessa história desde 1912 através do Simões Lopes que estabelece de certa maneira essas coisas que nunca foram investigadas a ponto de serem desfeitas.
Quando faço essa crítica em relação a apologia a elite, dos casarios por exemplo, Pergunto: - Alguém tem registro daquelas casas, casebres  no entorno das fábricas que tinham em Pelotas? Me lembro de ver algumas construções onde a parede externa eram latas de óleo  abertas. Há uma preocupação em preservar a memória de apenas uma parte da sociedade e isso é muito complicado. Uma cidade conviveu, convive e conviverá com diversos seguimentos, mas para entendê-la é preciso olhar o todo, se não seremos sempre parciais  
Como pesquisador da história de Pelotas quais alternativas enxergas para superar essas desigualdades? O que tem sido feito e o que ainda pode ser pode ser realizado para contribuir com  a transformação dessa realidade?
Esse é um momento complicado porque vivemos uma crise com alto índice de desemprego e isso é muito perigoso. O que vejo é que Pelotas continua tratando do núcleo urbano, cada vez mais urbano. Todos esses projetos de maior impacto são para favorecer a elite. Se não se priorizar investimentos “periféricos” nós vamos continuar tendo um cinturão de miséria. É preciso que se pare e comece a projetar obras realmente sociais na cidade. Pelotas precisa parar de pensar só no miolo. Ela esta grande e cada vez mais é aumentado seu cinturão de miséria. Isso é muito preocupante e gera injustiças. Há todo um apelo midiático para o consumo e se não se tem dinheiro se dá um jeito para conseguir aquilo que se quer.
Gostarias de acrescentar mais alguma coisa? 
Eu estou trazendo a história das pensões e dos cabarés até a década de 20 em um livro que terá seu primeiro volume lançado em agosto “A Princesa do Vício e do Pecado” onde abordo a questão do jogo e da prostituição em Pelotas.   Espero ainda terminar um projeto que dei início onde primeiramente gostaria de relatar uma história de Curitiba até Pelotas, mas me dei conta que não teria tempo suficiente, então comecei a fazer alguns cortes e a partir daí nasceu o “Desbravamento do Sul e a Ocupação Castelhana” depois “Pelotas no tempos dos Chafarizes”. Nesse segundo, percebi que poderia construir uma Pelotas como eu concebo e precisar quando  essa “Pelotas gestada por outras Pelotas” começa a acontecer. As praças, por exemplo, eram um espaço de muitos acontecimentos, inclusive de elitização. Cito um acontecimento em seguida do 13 de maio de 1888, um negro bem vestido, conforme a construção do jornalista da época, senta em um dos jardins da praça (ela era toda arrendada pois tinha que dar lucro para a administração), pede uma cerveja e é corrido. Inclusive chama-se a polícia. Ele achou que era realmente livre e que tinha o direito de sentar ali como um cidadão e ter o prazer de tomar uma cerveja. Não pôde. (...)
A documentação sobre as praças cresceu muito, logo o trabalho terá dois volumes. Depois, pretendo trabalhar as “feiticeiras da princesa”  onde tratarei a questão do feitiço, ou seja, como ele era visto no século XIX. Na verdade o que era considerado feitiço era a religião de matriz africana, que a imprensa entendia como feitiço e a polícia reprimia, apreendia o material e jogava no São Gonçalo. Esse último é o livro que mais destinarei tempo porque terei que aprender muito sobre as religiões de matriz africana para não cometer atrocidades. Entendo que as feiticeiras do passado são os pai e mães de santo hoje.
Por que se deter na história de Pelotas? Em uma história em que abordas diferentes fatos através do “Desfazendo Mitos” e “Pelotas dos Excluídos”. Por que “pegar com as mãos” essa outra história?
Uma cidade é construída por uma comunidade e não por uma elite ou por um único grupo. Eu não sou “bem nascido” como costumam dizer. Sou filho de imigrantes italianos e portugueses. Entendo que a história de uma comunidade precisa ser contada, até para que o não “bem nascido” ou o anônimo tenham um estímulo para pensar que seus antepassados foram realmente importantes, embora eles não estejam no registro e na história oficial. Mas sem eles essa Pelotas não existiria.
 
[Este entrevista está disponível no sítio eletrônico da Universidade Católica de Pelotas,< http://www.ucpel.edu.br/portal/?secao=noticias&id=7796>. O acesso ao link da instituição foi feito em 13 de julho de 2016.]
 
 

sábado, 9 de julho de 2016


Se Pelotas não criou o charque, o charque e a escravidão inventaram Pelotas (parte 2)



                                                                                                          A.F. Monquelat


Não conseguimos localizar o requerimento de Mateus Vaz Curvelo quanto ao pedido de Sesmaria, que ele disse ter feito, ou tampouco documento de que tivesse obtido terras no Continente de São Pedro.

Dentre as novidades inseridas na proposta de Mateus Vaz Curvelo e seus sócios estava a disposta na Condição terceira: “Estão prontos a meter ali [no Rio Grande], escravaturados [escravizados] da Costa d’África até Moçambique, e vendê-los fiado para pagamento em duas recolhas [parcelas], cujos valores serão recebidos nos seguintes gêneros: cânhamo, couros, sebo, trigo e farinha”.

Vejamos ainda outras condições: 6ª – Obrigam-se a meter ali as plantas [mudas] de carvalho e pinho, a exemplo do que fizeram os ingleses em Filadélfia e Nova Iorque, o que será de muita utilidade como todos o sabem;

 7ª – estão prontos a meter ali, também, as sementes de linho doméstico, vulgarmente chamado de Galego, Coimbrão e Mourisco, assim como outros que vêm da Rússia e Suécia a todos os Postos deste Reino. E obrigam-se a mandar vir para este fim, Mestre de Agricultura e Botânica;

 8ª – Temos por objetivo fazer as carnes de moura, à imitação da Irlanda, o que é facílimo, desde que haja Mestre; e mesmo sem este, haverá portugueses que as têm feito no ardente clima da nossa América e que vão à Índia e voltam a Lisboa;

9ª – Lembram-se de fazer fábrica de sola (curtumes), se houver casca adstringente e própria para isso; isto para evitar a dúvida dos couros arderem na seca, ou apanharem chuvas e aparecerem os pelames rotos e perdidos. Ou, pelo menos, os reduzir a salgados como o fazem em Pernambuco;

 12ª – Meter, ali, porcos; e fazer carnes de moura para o abastecimento da Marinha, cessando assim o comércio da importação; [...]” (grifos nossos).

Grifamos o “fazer as carnes de moura, à imitação da Irlanda”, com o propósito de supormos, diante dos documentos até aqui arrolados, que o charque ambicionado pelos comerciantes e autoridades portuguesas era este; e não o produzido em maiores proporções, o de mantas, pelos charqueadores continentinos.

Uma outra questão, que agora nos cabe a esclarecer, é a de que quando escrito nosso artigo, “José Pinto Martins, o charque e Pelotas”, publicado pelo Diário da Manhã, em duas partes, nos dias 4/5 e 11 de abril de 2010, dissemos, cautelosamente, que: “Por não conhecermos bibliografia sobre o tipo de charque produzido pelos irlandeses, ficamos em dúvida quanto à técnica usada por eles; mas acreditamos seja o processo de moura, que consistia em acrescentar ao charque embarricado o licor formado pelo sal desfeito, uma espécie de salmoura”.

A indústria de carnes salgadas entre os súditos da coroa espanhola

Dissemos, também no artigo citado, que “A técnica desenvolvida pelos irlandeses foi motivo de admiração e inveja de muitos que se aventuraram nesta atividade saladeiril”.

Acrescentamos a seguir: “Entre os espanhóis saladeiristas, consta-nos ter sido Don Francisco de Medina o primeiro a conseguir em seu saladero, através da instalação de um laboratório montado no estabelecimento, dirigido por técnicos irlandeses, esta façanha.

Tal fato, segundo palavras do Vice-rei Nicolás de Arredondo, ao falar sobre tal, é que Medina, no ano de 1787, “havia descoberto o segredo e as carnes rioplatenses venceram o mito de suas condições inferiores, pois jamais haviam obtido antes a cor e a consistência – acrescentou o monarca em relação à forma vencedora – que em sublimar la salmuera del barril con una corta dosis de sal nitro” (MONQUELAT, 2009, p. 95).

E já que andamos por essas bandas, vamos aproveitar a estadia e dar uma espiada para vermos o que os súditos espanhóis andavam aprontando com suas carnes salgadas; pois, afinal de contas, também dizem que o pioneiro dentre eles, Don Francisco de Medina, por coincidência, iniciou suas atividades saladeris no mesmo ano de nosso Pinto, o ano de 1780.

Vamos averiguar se eles sabem, e confirmam isto:

Apesar de algumas iniciativas e trâmites para estabelecer a indústria saladeril no Rio da Prata desde o ano de 1771 até 1777, a história do charque na Banda Oriental só pode ser considerada a partir da instalação _ no lugar denominado el Colla _ de uma planta capaz de despertar a admiración de esta Provincia por los edificios que había labrado, segundo palavras do vice-rei Melo de Portugal em 1796.

De qualquer forma, os nomes de Manuel Melián, Francisco Albín e Miguel Ryan, não podem ser olvidados na lista dos primeiros entre os súditos da coroa espanhola a se dedicarem a tal indústria, tendo os mesmos, inclusive, feito vários e consideráveis envios do produto à Espanha e Cuba.

Através do próprio Melián, é possível para nós sabermos que no início de 1780, cumprindo um pedido do Intendente, D. Manuel Ignacio Fernández, embarcou no porto de Montevideo, a bordo dos navios El Rosario e Dolores, 136 barris de carne e que posteriormente provisionou muitos outros barcos. Com respeito a Francisco Albín, sabe-se que o mesmo possuía uma manufactura de carnes saladas em sua estância localizada próxima do porto de Las Vacas, na Banda Oriental. Quanto a Miguel Ryan, era este proprietário de um saladero que existia na jurisdição de Montevideo.

No entanto, a ação conjunta ou isolada dos nominados não foi sob nenhum aspecto capaz de se sobrepor ao nome de Francisco Medina, o saladerista do Colla.

Sabe-se há muito que os lagunenses, desde os primórdios do século XVIII, já chaqueavam nas terras do hoje estado do Rio Grande do Sul e, sabe-se hoje, graças ao nosso trabalho de parceria com Valdinei Marcolla, O Desbravamento do Sul e a Ocupação Castelhana (2010), que Silva Paes ao chegar à hoje cidade de Rio Grande ali encontrou resíduos de charqueações.
Documento com assinatura de João Cardozo

Posteriormente vamos encontrar, pelo menos de forma documental, João Cardoso da Silva que, instalado nas ruínas do antigo forte de São Gonçalo (hoje município de Arroio Grande) e reivindicando a primazia da indústria saladeiril data tal acontecimento como ocorrido no ano de 1780, inclusive trazendo especialistas, as suas expensas, para tal empreendimento; o que pode ser comprovado através de nosso trabalho, também de parceria com Valdinei Marcolla, Desfazendo Mitos – Notas à história do Continente de São Pedro (20l0).

Assim, se João Cardoso da Silva é o pioneiro na indústria da salga de carnes com intuito de lucro, e tal ato não ocorreu no território da hoje cidade de Pelotas, a história até então contada sobre a cidade de Pelotas está a exigir uma outra história. Uma história viável. Uma história que realmente possa ter acontecido. Enfim, Pelotas precisa de uma nova história.
 

                                                                                   Continua...

sábado, 2 de julho de 2016


Se Pelotas não criou o charque, o charque e a escravidão inventaram Pelotas (parte 1)



                                                                                                          A.F. Monquelat

 

            Se, por um lado, podemos dizer que Pelotas não inventou o charque; por outro, grosso modo, podemos afirmar que o charque e a escravidão inventaram Pelotas.

         Quando o homem percebeu que sal e carne era uma combinação possível e necessária, podemos considerar este momento como o do fiat lux do charque.

    A história do charque, na sua universalidade, é pouco provável que venha a ser escrita, caso seja feita, é possível que esta inicie a ser contada a partir do ano de 1476, onde aparece por primeira vez e “se cita enxerca [ato ou efeito de enxercar, charqueação, charqueio], do c. 49 dos Art. das Sisas, de 27 de setembro de 1476”.

         O uso e consumo deste produto vararam os séculos, tornando-se importante no período das navegações e conquistas posteriores, até que, a partir de certo momento, passou a ser adotado pelas duas grandes armadas do mundo ocidental: Portugal e Espanha; além de mercadoria importante no tráfico negreiro, tanto no consumo quanto para escambo.

     Saltando da Europa para o Rio da Prata, vamos encontrar uma permissão concedida por Felipe III, em 1602, na qual as províncias do Rio da Prata podiam, por um período de seis anos, extrair frutos de sua colheita e exportá-los em navios próprios “num total de [...] 500 quintales [um quintal = 4 @ espanholas] de cecina e 500@ de sebo [...]”.

Cecina é o charque envolto em graxa e posto em barricas. Tempos depois, as palavras charque e cecina foram substituídas por tasajo.

Este sistema de embarricar carnes era a forma usada pelos irlandeses, que durante longo tempo foram os principais abastecedores das Armadas Reais; sem sabermos a partir de quando, o charque teve como principal produtor a Irlanda, que passou a abastecer os navios portugueses e espanhóis, dentre outros.

Por não conhecermos bibliografia sobre o tipo de charque produzido pelos irlandeses, ficamos em dúvida quanto à técnica usada por eles; mas acreditamos seja o processo de moura, que consistia em acrescentar ao charque embarricado o licor formado pelo sal desfeito, uma espécie de salmoura.

A técnica desenvolvida pelos irlandeses foi motivo de admiração e inveja de muitos que se aventuraram nesta atividade saladeiril.

    No entanto, o consumo de grandes quantidades de tal produto sangravam os cofres tanto de uma quanto de outra das coroas.

         A vontade dos súditos portugueses em aliviar os cofres da Coroa provinha desde há muito, pois já na segunda década de instalação da Colônia do Sacramento; mais precisamente, no ano de mil seiscentos e noventa e oito, no governo de Dom Francisco Naper, foi feita a primeira experiência do fabrico de “carnes de vaca em pipas”.

Informado do feito, tratou o governador do Rio de Janeiro, Artur de Sá e Menezes, de enviar ao rei D. Pedro II uma carta datada aos sete dias do mês de junho de 1698, com o seguinte teor: “Tendo a experiência mostrado que as carnes de vaca, que se fazem na Nova Colônia do Sacramento, chegam a Portugal sem corrupção [não deterioradas], como pode testemunhar Pantaleão da Cruz, mestre da Nau que partiu desta Praça para a cidade do Porto, o qual levou algumas pipas desta carne, que trouxe da Nova Colônia, e lhe chegou sem corrupção, como consta do seu aviso, o que me obriga a fazer presente a V. Majestade que, quando seja conveniente fazerem-se as carnes para as Armadas, na Nova Colônia, se pode fazê-las sem custar à Fazenda de V. Majestade, [nada] mais que a despesa do sal e pipas [ou barricas] em que houverem de ir. [E esta carne servirá] ainda para o fornecimento dos navios de comboio que saem deste Porto, [o que] poderá evitar, à Junta do Comércio, essa despesa.

Vossa Majestade, neste particular, [determinará] o que mais convier ao seu Real Serviço. [...]”.

As experiências com o fabrico de carnes salgadas na Colônia do Sacramento continuaram.  Quando o governador do Rio de Janeiro, Dom Álvaro da Silveira e Albuquerque, queixou-se à Corte dos poucos mantimentos [carnes e farinha] que estavam em falta naquela Praça [do Rio], pelo fato das pessoas daquela Capitania terem ido para as Minas, recebeu, em 6 de março de 1703, um Parecer do Conselho Ultramarino, que relembrava ao Governador “que as carnes para o abastecimento do Rio de Janeiro e para as naus de comboio poderiam vir da Nova Colônia do Sacramento”.

Três décadas depois do Parecer, Manoel João de Lopo, aos quinze dias do mês de março de 1735, avisava ao secretário do Conselho Ultramarino, Manoel Caetano Lopes de Lavre, “sobre o envio de sal para a Nova Colônia [do Sacramento], necessário à conservação das carnes, a bordo da frota do Rio de Janeiro”.

Charquear, no Continente do Rio Grande, já era prática estabelecida desde os primórdios do Século XVIII. E, nesta região, tal hábito antecede à chegada do Brigadeiro José da Silva Paes, como se pode ver na carta enviada a Gomes Freire de Andrada em 12 de março de 1737: ‘Porque há aqui uma tal praga de bichos, que chamam de traça, que tem arruinado vestidos, roupas e sapatos bem como o cartuchame. Este bicho come não só o papel, mas também a pólvora e ainda por ele vi até balas roídas. Quem aqui fosse nojento comeria muito pouco, porque são eles em tamanha abundância que estão caindo no prato por estarem as barracas cheias deles e de moscas que é uma imensidade. Tudo nascido do charque que aqui faziam [...].’ (MONQUELAT e MARCOLLA, 2010, p. 96, grifos nossos)”.

Quanto aos comerciantes, que do Reino pretendiam levar sal para o Rio Grande (e deste, carnes salgadas para o Reino) vamos encontrar Mateus Vaz Curvelo e seus sócios encaminhando ao Secretário da Marinha e Ultramar uma nova correspondência (30.09.1789) contendo as condições, um pouco modificadas, das enviadas anteriormente à Rainha.

Começavam elogiando a iniciativa do novo comércio em direção ao Rio Grande e que, por isso, haviam comprado “uma Galera, que tem fabricado a todo custo, para ir portar [levar] à Santa Catarina, e uma Corveta [navio de guerra com três mastros] muito forte, e feita de Teca [um tipo de madeira originária da Índia usada na construção de embarcações] nos Estados da Índia, e o fizeram a S. Majestade, do que juntam cópia, sem pensarem que havia vassalos capazes de impugnar os ditos Avisos, por ambição extraordinária, e oporem-se diametralmente à felicidade pública e aos interesses da Coroa, como o são para criar no futuro novas Alfândegas, novos contratos de sal, aumentar o Contrato dos dízimos e do quinto, fazer cessar a importação do Cânhamo e das carnes da Irlanda [grifos nossos].

Estes opositores são os Negociantes [comerciantes] mais ricos, mais poderosos e mais temíveis aos Suplicantes e à Praça [comércio e população] inteira, pela grande roda de amigos opulentos.

V. Exª. conhece bem, que se as carnes do Rio Grande não têm chegado perfeitas, nas desordenadas negociações de Manoel Pinto da Silva, são por defeitos pessoais, não provenientes das carnes. Conhece também V. Exª. que, sem a liberdade do sal, não se pode salgar carnes e couros, [...]; mas, se estes Contratadores do Sal, estes gigantes da avareza, não podem ser contestados: os Suplicantes ficarão satisfeitos em arrematarem, desde já, os Contratos do Sal do Rio Grande e Santa Catarina e quebrarem estas algemas cruéis à felicidade pública. E se nem isto pode ser: decida V. Exª, pelo seu raríssimo e conhecido zelo, por nos dar livre um Navio carregado de sal por ano, e que vá daqui [Lisboa] com direção à Feitoria, que os Suplicantes querem estabelecer na Sesmaria que tem pedido a S. Majestade, em diverso requerimento [...]”.

 
                                                                                                                                                                                                        Continua...