quarta-feira, 27 de novembro de 2019

RS e Pelotas na obra de Machado de Assis Parte 04


RS e Pelotas na obra de Machado de AssisParte 04


A. F. Monquelat [revisão]
Jonas Tenfen




            
            Começamos, com este texto, a segunda parte da presente série. Depois de esquadrinharmos as crônicas de Machado de Assis atrás de referências ao estado do Rio Grande do Sul, passamos a analisar a obra do bruxo do Cosme Velho atrás de referências à cidade de Pelotas. Há uma referência bastante popular e conhecido, e há várias pouco estudadas.
            Primeiramente, uma alusão que pode ser Pelotas. Em 8 de dezembro de 1861, teve início as crônicas do Dr. Semana – a saber, um pseudônimo de Machado de Assis, publicadas pela Semana Ilustrada. Aqui um exemplo da ironia, pois o médico “tem a honra de participar ao respeitável público, que se acha nesta corte, onde fixou sua residência, pronto sempre a ministrar aos necessitados os socorros de sua infalível ciência”: a escrita.
            Em carta ao Imperador da China, nas Calendas de abril de 1864, o Dr. Semana fala de seus dotes linguísticos:
“Celestial Senhor. — Pretendia escrever a Vossa Obesidade na linguagem de Confúcio, visto como sou poliglota superior a Pico de laMirandola e ao cardeal Mezzofante.
 
V. O. deve de saber que, em questões de línguas, nada tenho de invejar às charqueadas do Rio Grande do Sul.
 
Gorou-me, porém, o desejo a falta de tipos chineses neste império de terrícolas, aonde há multiplicidade de outros tipos; e é por isso que escrevo a V. O. no idioma português, ainda hoje falado pelos gafanos da Goa luso-chinesa. “
           
            Destacamos que é uma alusão, não referência, pois é erro histórico supor que só se produziu charque, e em quantidade, na cidade de Pelotas durante o período. Contudo, cruzando este dado com as demais obras do escritor, vemos a tendência dele se referir a Pelotas como cidade de muito dinheiro e cosmopolita, mesmo não sendo capital da província.
            As crônicas “Bons dias!”, que começavam com esta saudação e encerravam com “Boas noites”, foram publicadas pela Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, entre 1888 e 1889. Sobre uma declaração em um discurso, Machado de Assis cita Pelotas em uma conversa fictícia, em crônica de 19 de julho de 1888:
“Não indo mais longe, acabo de ler no discurso do Sr. Senador Leão Veloso uma frase, que, se eu estivesse em Tunes, não lhe perderia o sentido. S. Exa. declarou que a vitaliciedade do cargo não o segregou daqueles que o elegeram. Ora, os que o elegeram vão morrendo e hão de ir morrer todos, como já devem ter morrido os que elegeram o Sr. Visconde do Serro Frio. Como é que não há segregação? Há e é uma das vantagens da instituição. Se em 1871 os Srs. Silveira Martins e Barão de Mauá fossem vitalícios, não haveria o recurso aos eleitores, que pôs o Sr. Mauá fora da Câmara. Quando o primeiro desafiasse o segundo a irem pleitear ante os eleitores liberais o procedimento de ambos, responderia o Sr. Mauá:
— Mas, meu caro colega, os meus eleitores estão mortos. Há dois dias vivia o Bandeira, de Pelotas; pois morreu, aqui está o telegrama, que recebi agora mesmo da família. Sabe que somos velhos conhecidos...”

            A referência mais famosa e corriqueira à cidade de Pelotas está no romance “Quincas Borba”, publicado em 1892 pela Garnier. Embora já relatado por Mário Osório Magalhães, em “Pelotas: toda a prosa”, segundo volume, citaremos aqui os capítulos CXVIII e CXX.


Capítulo CXVIII:

— Vamos para lá, que lhe arranjarei casamento, disse ela. Conheço uma moça de Pelotas, que é um bijou, e só casa com moço da Corte.

— Comigo, naturalmente?

— Da Corte e de olhos grandes. Olhe que não estou brincando. É uma guasca de primeira ordem. Tenho aqui o retrato dela.

D. Fernanda abriu o álbum e mostrou o retrato da pessoa.

— Não é feia, concordou ele.

— Só?

— Sim, é bonita.

— Onde é que você bota os seus chinelos velhos, primo?

Carlos Maria sorriu sem responder; não gostou da expressão. Quis passar a outro assunto. Mas D. Fernanda tornou ao casamento da amiga de Pelotas. Mirava o retrato, coloria-o de palavras, dizendo como eram os olhos, os cabelos, a tez; e depois fez uma pequena biografia de Sonora. Tinha este bonito nome. O padre que a batizou hesitou em dar-lho, apesar do respeito e influência do pai da menina, rico estancieiro; mas, afinal cedeu, considerando que as virtudes da pessoa podiam levar o nome ao rol dos santos.

— Crê que ela vá ao rol dos santos? perguntou Carlos Maria.

— Se casar com você, creio.

— Não me explica nada; casando com o diabo sucederá a mesma coisa, e com mais certeza, por causa do martírio. Santa Sonora, não é feio nome, responde bem ao sentido. Santa Sonora... Em todo caso, prima...

— Você tem raça de judeu; cale-se, interrompeu ela. Recusa então a minha guasca? continuou indo pôr o álbum no seu lugar.

— Não recuso; deixe-me ir indo com o meu celibato, que é meio caminho do Céu.

D. Fernanda soltou uma gargalhada.

— Deus de misericórdia! Você acredita mesmo que vai para o Céu?

— Já cá estou, há vinte minutos. Pois que é esta sala, tranqüila, fresca, tão longe da gente que anda lá fora? Aqui conversamos os dois, sem ouvir blasfêmias, sem aturar espíritos aleijados, tísicos, escrofulosos, insuportáveis, o próprio Inferno, em suma. Aqui é o Céu, — ou um pedaço do Céu; uma vez que nós cabemos nele, vale pelo infinito. Conversamos de Santa Sonora, de São Carlos Maria e de Santa Fernanda, que para contrastar com São Gonçalo, fez-se casamenteira das moças. Onde é que há outro céu como este?

— Em Pelotas.

— Pelotas fica tão longe! suspirou ele estendendo as pernas e pondo os olhos no lustre da sala.

— Está bom, é só a primeira investida; darei outras, até você acabar de querer. “

E capítulo CXX:
“— Iria eu só, se pudesse ser, para lhe dar uma notícia muito comprida.

— Vamos então devagar, disse Carlos Maria à porta da igreja, oferecendo-lhe o braço. E dois passos adiante: — Notícia importante?

— Importante e deliciosa.

— Querem ver que Deus, sempre misericordioso, vai levar para si o nosso querido Teófilo, deixando aqui ao desamparo a mais gentil de todas as viúvas... Não precisa fazer essa cara, prima; deixe estar o braço. Vamos à notícia. Chegou a moça de Pelotas, aposto?

— Não direi o que é, se você me não jurar ouvir seriamente.

— Seriamente.

D. Fernanda confessou-lhe que hesitava em casá-lo com a patrícia de Pelotas; não queria remorsos; descobrira aqui alguém que tinha ao primo um imenso amor. Carlos Maria sorriu, iniciou um gracejo, mas a notícia esporeou-lhe o espírito. Imenso amor? Imenso amor, paixão violenta, confirmou a prima, acrescentando que talvez a definição já não coubesse bem ao atual sentimento da pessoa. “



            Rubião herdou de seu mestre de filosofias um cachorro e uma herança bastante significativa. Humor machadiano, tanto o mestre quanto o cachorro levavam o nome Quincas Borba, bem como o romance. Cansado da vida em Barbacena, Minas Gerais, Rubião se muda para a corte onde passa os dias dando almoços e distribuindo charutos, frequentando jantares, patrocinando jornais e políticos, nutrindo amores por uma mulher casada. A ideia de D. Fernanda (destaque para o uso do termo “guasca”) de casá-lo com uma prima esbarra no mote machadiano de os personagens darem desculpas ruins para se evadirem de casamentos. Desde “Porque bela, se coxa, porque coxa, se bela?”até “Pelotas é tão longe”.
            No próximo capitulo, último da série, um conto machadiano que se passa em Pelotas.



Continua...

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Fonte: há muitas obras completas de Machado de Assis disponíveis online, para este texto utilizamos o site Domínio Público (domíniopublico.gov.br). A imagem da pintura de Debret é Wikicommons.a foto da coleção do Globo das Obras Completas é de autoria de Jonas Tenfen, a foto de Machado de Assis e Joaquim Nabuco está disponível no site Brasil Escola.

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