A.F. Monquelat
Jonas
Tenfen
Pelotas,
a exemplo de outras cidades, viu circular por suas ruas diversos tipos de
pregoeiros de mercadorias em domicílio, desde o aguadeiro, quitandeiro,
cabungueiro, engraxate, vendedor de aves, carvoeiro, verdureiro, leiteiro,
padeiro, ervateiro, afiador e tantos e tantos outros ambulantes que, ao
decorrer dos anos, foram sofrendo influências e se readequando aos novos tempos.
Ou simplesmente desaparecendo.
De
toda essa miríade de saberes e fazeres que está na constituição da cidade,
iremos aqui nos ater a dois exemplos de profissionais que exerceram seus
labores pelas ruas de Pelotas.
O afiador
Um desses tipos chegou até a década de 80 do século XX: o afiador, que ainda fazia rodar sobre o calçamento da cidade as suas primitivas máquinas, que costumávamos ver em nossa infância.
Ainda que todos, ou quase todos, os ramos
da atividade humana tivessem sofrido, naquelas últimas décadas, várias
influências do progresso, as máquinas de afiar, acreditamos, continuavam seguindo
as mesmas linhas e oferecendo o mesmo aspecto do passado.
Esses prestimosos servidores das populações
das cidades percorriam as ruas, diariamente, fazendo soar a sua gaita típica.
O som daquela gaita anunciava, tanto à dona
da casa ou à empregada doméstica, que se encontrava em dificuldade para cortar
com a faca “cega” a carne do almoço, como ao açougueiro, ao barbeiro, ao
alfaiate, enfim, a todos que diariamente eram forçados a utilizar-se, para o
desempenho de suas atividades, de instrumentos perfurocortantes, que o homem
que poderia resolver o problema estava chegando para dar melhor gume aos seus
instrumentos de trabalho.
Uma das particularidades interessantes a
ser assinalada era da inexistência de descendentes de outras nacionalidades na
atividade de afiador que não a espanhola, pois todos os profissionais vistos pelas
ruas da cidade, empurrando pacienciosamente suas máquinas de madeira, ruas à
fora, eram, em Pelotas como na maior parte das cidades brasileiras, filhos da
terra de Cervantes.
Na década de 50, existiam seis ou sete
afiadores, todos oriundos da Espanha. Um destes, exercendo aquela árdua
profissão em Pelotas há mais de vinte anos ininterruptos, era, provavelmente, o
mais antigo afiador da cidade. Chamava-se ele José Fernandes Gonzalez, que
viera para o Brasil via Cuba e outros países da América Central, há coisa de
mais de trinta anos.
Em Pelotas, Gonzalez exerceu, de início, outra
profissão antes de adotar aquela em que se ocupava na época. Trabalhara como
capataz no serviço de esgotos.
Deixando essa função, tornou-se afiador e
não mais abandonou a máquina que, por sinal, era a mesma com a qual se iniciara
na “arte”.
Apesar da fama de comedidos nos gastos eram
os espanhóis, de maneira geral bastante limitados nas despesas e procurando
reunir, a todo custo, um “pé-de-meia”, fosse qual fosse a atividade em que se
ocupavam.
Entretanto, Gonzalez, que era natural da
Galícia, certa feita, quando entrevistado, disse ao repórter que mal conseguia
obter o estritamente necessário para o seu sustento e o de sua família, que não
era muito numerosa.
Cobrava ele, na ocasião da entrevista, três
e quatro cruzeiros por faca ou tesoura que lhe confiavam para afiar, mas apesar
de trabalhar de sol a sol, nunca conseguira reunir economias, nem mesmo uma
casa para morar pôde ele adquirir.
Gonzalez morava em casa alugada e teria que
desocupá-la, pois fora vendida.
Contava Gonzalez com 60 anos, cinco filhos,
sendo um deles casado. Sua esposa, ele a conhecera em Pelotas, onde se casou
pouco depois de sua chegada a cidade.
Pelotas inteira o conhecia. Era comum que
desconhecidos a ele confiassem instrumentos das mais variadas espécies para dar
fio ao gume.
Doutores
das ervas
Dizia
ele também que entre os frequentadores da tal casa notavam-se vários índios
peruanos, “desses que por aí andam de sacola às costas vendendo remédios”.
Pelotas
dos Excluídos
A referência acima, retirada da obra Pelotas dos Excluídos, diz respeito a um episódio registrado pela
imprensa da cidade, no ano de 1875, ao denunciar as atividades de uma
“feiticeira” (proto-mãe de santo), cuja casa era também frequentada por esses
peruanos, vendedores de ervas que andavam pelas ruas da cidade.
Dentre as conotações de desprezo manifestas pelo jornalista
no corpo do fato, salta aos olhos o descaso e descréditos atribuídos ao uso de
ervas como “remédios”, quando não por serem estes empregados por uma negra
africana em suas atividades.
De
qualquer forma, e cada vez mais presente na medicina popular e caseira, tanto
as ervas quanto aqueles que se dedicam ao seu comércio, sobreviveram aos
tempos, ainda que raramente sejam vistos oferecendo “remédios”. Como era o caso
do Sr. Carlos Alves, negro quase centenário - retrato de um infame e cruel
passado- que, ao ser abordado e perguntado sobre a eficácia de seus “remédios”,
respondeu: “Pra tal di pinicilina eu tenho catinga di mulata, que cura até calo
arruinado”. Hoje sabemos que, dentre outras propriedades, erva citada serve para
amenizar dores
articulares e reumáticas.
Curioso com a informação dada pelo Sr. Carlos
Alves, resolveu o jornalista ouvir aquele negro teso, quase centenário,
sorridente, sustentando um saco de “ervas curativo” às costas, ministrar
ensinamentos sobre a arte de curar, sobre os efeitos de suas drogas e as
consequências que elas provocavam:
- Curam as dores do corpo
meu filho – disse-lhe o Sr. Alves, mostrando os farrapos de sua indumentária,
acariciando um galho de carqueja - e acrescentando: - Estou assim de faceiro,
gosto muito da profissão. Eu sou “doutor” há não sei quantos anos...
Carlos Alves disse ter um
passado muito sinuoso, tão repleto de episódios que na revolução de todos aqueles
acontecimentos sentia lhe faltar, com frequência, a memória e se dizia ser
“hoje um homem do presente”.
- Não lembro bem o que
passou. Vivo o dia de hoje. O passado é uma coisa que não me interessa. Gosto
mais do instante. Gosto mais do instante, de vender minhas ervas, de curar meus
irmãos.
Disse o repórter ser
Carlos Alves possuidor de uma filosofia muito própria, humana, e ser também um
dos últimos representantes dos tempos do “pajé curandeiro”. Ia arrastando seus
anos com paciência, divertido, às vezes engolindo um trago de aguardente de
cana.
E, pondo o ponto final na
entrevista com o jornalista, disse ele:
- Tenho curado muita
gente. Agora quero que me deixem morrer em paz. Acho que o pessoal não precisa
mais de mim. Antigamente a coisa era diferente. Hoje até se morre menos...
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