Se Pelotas não criou o charque, o charque e
a escravidão inventaram Pelotas (parte 2)
A.F.
Monquelat
Não conseguimos localizar o requerimento
de Mateus Vaz Curvelo quanto ao pedido de Sesmaria, que ele disse ter feito, ou
tampouco documento de que tivesse obtido terras no Continente de São Pedro.
Dentre as novidades inseridas na
proposta de Mateus Vaz Curvelo e seus sócios estava a disposta na Condição
terceira: “Estão prontos a meter ali [no Rio Grande], escravaturados
[escravizados] da Costa d’África até Moçambique, e vendê-los fiado para
pagamento em duas recolhas [parcelas], cujos valores serão recebidos nos
seguintes gêneros: cânhamo, couros, sebo, trigo e farinha”.
Vejamos ainda outras condições: 6ª –
Obrigam-se a meter ali as plantas [mudas] de carvalho e pinho, a exemplo do que
fizeram os ingleses em Filadélfia e Nova Iorque, o que será de muita utilidade
como todos o sabem;
7ª – estão prontos a meter ali, também, as
sementes de linho doméstico, vulgarmente chamado de Galego, Coimbrão e
Mourisco, assim como outros que vêm da Rússia e Suécia a todos os Postos deste
Reino. E obrigam-se a mandar vir para este fim, Mestre de Agricultura e
Botânica;
8ª – Temos por objetivo fazer as carnes de moura, à
imitação da Irlanda, o que é facílimo, desde que haja Mestre; e mesmo sem
este, haverá portugueses que as têm feito no ardente clima da nossa América e
que vão à Índia e voltam a Lisboa;
9ª – Lembram-se de fazer fábrica de sola
(curtumes), se houver casca adstringente e própria para isso; isto para evitar
a dúvida dos couros arderem na seca, ou apanharem chuvas e aparecerem os
pelames rotos e perdidos. Ou, pelo menos, os reduzir a salgados como o fazem em
Pernambuco;
12ª – Meter, ali, porcos; e fazer carnes de moura
para o abastecimento da Marinha, cessando assim o comércio da importação;
[...]” (grifos nossos).
Grifamos o “fazer as carnes de moura, à
imitação da Irlanda”, com o propósito de supormos, diante dos documentos até
aqui arrolados, que o charque ambicionado pelos comerciantes e autoridades
portuguesas era este; e não o produzido em maiores proporções, o de mantas,
pelos charqueadores continentinos.
Uma outra questão, que agora nos cabe a
esclarecer, é a de que quando escrito nosso artigo, “José Pinto Martins, o charque e
Pelotas”, publicado pelo Diário
da Manhã, em duas partes, nos dias 4/5 e 11 de abril de 2010, dissemos,
cautelosamente, que: “Por não conhecermos bibliografia sobre o tipo de charque
produzido pelos irlandeses, ficamos em dúvida quanto à técnica usada por eles;
mas acreditamos seja o processo de moura, que consistia em acrescentar ao
charque embarricado o licor formado pelo sal desfeito, uma espécie de
salmoura”.
A
indústria de carnes salgadas entre os súditos da coroa espanhola
Dissemos, também no artigo citado, que
“A técnica desenvolvida pelos irlandeses foi motivo de admiração e inveja de
muitos que se aventuraram nesta atividade saladeiril”.
Acrescentamos a seguir: “Entre os
espanhóis saladeiristas, consta-nos ter sido Don Francisco de Medina o primeiro a conseguir em seu saladero, através da instalação de um
laboratório montado no estabelecimento, dirigido por técnicos irlandeses, esta
façanha.
Tal fato, segundo palavras do Vice-rei
Nicolás de Arredondo, ao falar sobre tal, é que Medina, no ano de 1787, “havia
descoberto o segredo e as carnes rioplatenses venceram o mito de suas condições
inferiores, pois jamais haviam obtido antes a cor e a consistência –
acrescentou o monarca em relação à forma vencedora – que em sublimar la salmuera del barril con una corta dosis
de sal nitro” (MONQUELAT, 2009, p. 95).
E já que andamos por essas bandas, vamos
aproveitar a estadia e dar uma espiada para vermos o que os súditos espanhóis
andavam aprontando com suas carnes salgadas; pois, afinal de contas, também
dizem que o pioneiro dentre eles, Don
Francisco de Medina, por coincidência, iniciou suas atividades saladeris no mesmo ano de nosso Pinto, o
ano de 1780.
Vamos
averiguar se eles sabem, e confirmam isto:
Apesar
de algumas iniciativas e trâmites para estabelecer a indústria saladeril no Rio da Prata desde o ano de
1771 até 1777, a história do charque na Banda Oriental só pode ser considerada
a partir da instalação _ no lugar denominado el Colla _ de uma planta
capaz de despertar a admiración de esta Provincia por los edificios que
había labrado, segundo palavras do vice-rei Melo de Portugal em 1796.
De
qualquer forma, os nomes de Manuel Melián, Francisco Albín e Miguel Ryan, não
podem ser olvidados na lista dos primeiros entre os súditos da coroa espanhola
a se dedicarem a tal indústria, tendo os mesmos, inclusive, feito vários e
consideráveis envios do produto à Espanha e Cuba.
Através
do próprio Melián, é possível para nós sabermos que no início de 1780, cumprindo
um pedido do Intendente, D. Manuel Ignacio Fernández, embarcou no porto
de Montevideo, a bordo dos navios El Rosario e Dolores, 136
barris de carne e que posteriormente provisionou muitos outros barcos. Com
respeito a Francisco Albín, sabe-se que o mesmo possuía uma manufactura de
carnes saladas em sua estância localizada próxima do porto de Las
Vacas, na Banda Oriental. Quanto a Miguel Ryan, era este proprietário de um
saladero que existia na jurisdição de Montevideo.
No
entanto, a ação conjunta ou isolada dos nominados não foi sob nenhum aspecto
capaz de se sobrepor ao nome de Francisco Medina, o saladerista do Colla.
Sabe-se
há muito que os lagunenses, desde os primórdios do século XVIII, já chaqueavam
nas terras do hoje estado do Rio Grande do Sul e, sabe-se hoje, graças ao nosso
trabalho de parceria com Valdinei Marcolla, O Desbravamento do Sul e a Ocupação Castelhana (2010), que Silva
Paes ao chegar à hoje cidade de Rio Grande ali encontrou resíduos de
charqueações.
Documento com assinatura de João Cardozo |
Posteriormente
vamos encontrar, pelo menos de forma documental, João Cardoso da Silva que,
instalado nas ruínas do antigo forte de São Gonçalo (hoje município de Arroio
Grande) e reivindicando a primazia da indústria saladeiril data tal
acontecimento como ocorrido no ano de 1780, inclusive trazendo especialistas,
as suas expensas, para tal empreendimento; o que pode ser comprovado através de
nosso trabalho, também de parceria com Valdinei Marcolla, Desfazendo Mitos – Notas à história do Continente de São Pedro (20l0).
Assim,
se João Cardoso da Silva é o pioneiro na indústria da salga de carnes com
intuito de lucro, e tal ato não ocorreu no território da hoje cidade de
Pelotas, a história até então contada sobre a cidade de Pelotas está a exigir
uma outra história. Uma história viável.
Uma história que realmente possa ter acontecido. Enfim, Pelotas precisa de uma
nova história.
Continua...
Ótimo.
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