sábado, 2 de julho de 2016


Se Pelotas não criou o charque, o charque e a escravidão inventaram Pelotas (parte 1)



                                                                                                          A.F. Monquelat

 

            Se, por um lado, podemos dizer que Pelotas não inventou o charque; por outro, grosso modo, podemos afirmar que o charque e a escravidão inventaram Pelotas.

         Quando o homem percebeu que sal e carne era uma combinação possível e necessária, podemos considerar este momento como o do fiat lux do charque.

    A história do charque, na sua universalidade, é pouco provável que venha a ser escrita, caso seja feita, é possível que esta inicie a ser contada a partir do ano de 1476, onde aparece por primeira vez e “se cita enxerca [ato ou efeito de enxercar, charqueação, charqueio], do c. 49 dos Art. das Sisas, de 27 de setembro de 1476”.

         O uso e consumo deste produto vararam os séculos, tornando-se importante no período das navegações e conquistas posteriores, até que, a partir de certo momento, passou a ser adotado pelas duas grandes armadas do mundo ocidental: Portugal e Espanha; além de mercadoria importante no tráfico negreiro, tanto no consumo quanto para escambo.

     Saltando da Europa para o Rio da Prata, vamos encontrar uma permissão concedida por Felipe III, em 1602, na qual as províncias do Rio da Prata podiam, por um período de seis anos, extrair frutos de sua colheita e exportá-los em navios próprios “num total de [...] 500 quintales [um quintal = 4 @ espanholas] de cecina e 500@ de sebo [...]”.

Cecina é o charque envolto em graxa e posto em barricas. Tempos depois, as palavras charque e cecina foram substituídas por tasajo.

Este sistema de embarricar carnes era a forma usada pelos irlandeses, que durante longo tempo foram os principais abastecedores das Armadas Reais; sem sabermos a partir de quando, o charque teve como principal produtor a Irlanda, que passou a abastecer os navios portugueses e espanhóis, dentre outros.

Por não conhecermos bibliografia sobre o tipo de charque produzido pelos irlandeses, ficamos em dúvida quanto à técnica usada por eles; mas acreditamos seja o processo de moura, que consistia em acrescentar ao charque embarricado o licor formado pelo sal desfeito, uma espécie de salmoura.

A técnica desenvolvida pelos irlandeses foi motivo de admiração e inveja de muitos que se aventuraram nesta atividade saladeiril.

    No entanto, o consumo de grandes quantidades de tal produto sangravam os cofres tanto de uma quanto de outra das coroas.

         A vontade dos súditos portugueses em aliviar os cofres da Coroa provinha desde há muito, pois já na segunda década de instalação da Colônia do Sacramento; mais precisamente, no ano de mil seiscentos e noventa e oito, no governo de Dom Francisco Naper, foi feita a primeira experiência do fabrico de “carnes de vaca em pipas”.

Informado do feito, tratou o governador do Rio de Janeiro, Artur de Sá e Menezes, de enviar ao rei D. Pedro II uma carta datada aos sete dias do mês de junho de 1698, com o seguinte teor: “Tendo a experiência mostrado que as carnes de vaca, que se fazem na Nova Colônia do Sacramento, chegam a Portugal sem corrupção [não deterioradas], como pode testemunhar Pantaleão da Cruz, mestre da Nau que partiu desta Praça para a cidade do Porto, o qual levou algumas pipas desta carne, que trouxe da Nova Colônia, e lhe chegou sem corrupção, como consta do seu aviso, o que me obriga a fazer presente a V. Majestade que, quando seja conveniente fazerem-se as carnes para as Armadas, na Nova Colônia, se pode fazê-las sem custar à Fazenda de V. Majestade, [nada] mais que a despesa do sal e pipas [ou barricas] em que houverem de ir. [E esta carne servirá] ainda para o fornecimento dos navios de comboio que saem deste Porto, [o que] poderá evitar, à Junta do Comércio, essa despesa.

Vossa Majestade, neste particular, [determinará] o que mais convier ao seu Real Serviço. [...]”.

As experiências com o fabrico de carnes salgadas na Colônia do Sacramento continuaram.  Quando o governador do Rio de Janeiro, Dom Álvaro da Silveira e Albuquerque, queixou-se à Corte dos poucos mantimentos [carnes e farinha] que estavam em falta naquela Praça [do Rio], pelo fato das pessoas daquela Capitania terem ido para as Minas, recebeu, em 6 de março de 1703, um Parecer do Conselho Ultramarino, que relembrava ao Governador “que as carnes para o abastecimento do Rio de Janeiro e para as naus de comboio poderiam vir da Nova Colônia do Sacramento”.

Três décadas depois do Parecer, Manoel João de Lopo, aos quinze dias do mês de março de 1735, avisava ao secretário do Conselho Ultramarino, Manoel Caetano Lopes de Lavre, “sobre o envio de sal para a Nova Colônia [do Sacramento], necessário à conservação das carnes, a bordo da frota do Rio de Janeiro”.

Charquear, no Continente do Rio Grande, já era prática estabelecida desde os primórdios do Século XVIII. E, nesta região, tal hábito antecede à chegada do Brigadeiro José da Silva Paes, como se pode ver na carta enviada a Gomes Freire de Andrada em 12 de março de 1737: ‘Porque há aqui uma tal praga de bichos, que chamam de traça, que tem arruinado vestidos, roupas e sapatos bem como o cartuchame. Este bicho come não só o papel, mas também a pólvora e ainda por ele vi até balas roídas. Quem aqui fosse nojento comeria muito pouco, porque são eles em tamanha abundância que estão caindo no prato por estarem as barracas cheias deles e de moscas que é uma imensidade. Tudo nascido do charque que aqui faziam [...].’ (MONQUELAT e MARCOLLA, 2010, p. 96, grifos nossos)”.

Quanto aos comerciantes, que do Reino pretendiam levar sal para o Rio Grande (e deste, carnes salgadas para o Reino) vamos encontrar Mateus Vaz Curvelo e seus sócios encaminhando ao Secretário da Marinha e Ultramar uma nova correspondência (30.09.1789) contendo as condições, um pouco modificadas, das enviadas anteriormente à Rainha.

Começavam elogiando a iniciativa do novo comércio em direção ao Rio Grande e que, por isso, haviam comprado “uma Galera, que tem fabricado a todo custo, para ir portar [levar] à Santa Catarina, e uma Corveta [navio de guerra com três mastros] muito forte, e feita de Teca [um tipo de madeira originária da Índia usada na construção de embarcações] nos Estados da Índia, e o fizeram a S. Majestade, do que juntam cópia, sem pensarem que havia vassalos capazes de impugnar os ditos Avisos, por ambição extraordinária, e oporem-se diametralmente à felicidade pública e aos interesses da Coroa, como o são para criar no futuro novas Alfândegas, novos contratos de sal, aumentar o Contrato dos dízimos e do quinto, fazer cessar a importação do Cânhamo e das carnes da Irlanda [grifos nossos].

Estes opositores são os Negociantes [comerciantes] mais ricos, mais poderosos e mais temíveis aos Suplicantes e à Praça [comércio e população] inteira, pela grande roda de amigos opulentos.

V. Exª. conhece bem, que se as carnes do Rio Grande não têm chegado perfeitas, nas desordenadas negociações de Manoel Pinto da Silva, são por defeitos pessoais, não provenientes das carnes. Conhece também V. Exª. que, sem a liberdade do sal, não se pode salgar carnes e couros, [...]; mas, se estes Contratadores do Sal, estes gigantes da avareza, não podem ser contestados: os Suplicantes ficarão satisfeitos em arrematarem, desde já, os Contratos do Sal do Rio Grande e Santa Catarina e quebrarem estas algemas cruéis à felicidade pública. E se nem isto pode ser: decida V. Exª, pelo seu raríssimo e conhecido zelo, por nos dar livre um Navio carregado de sal por ano, e que vá daqui [Lisboa] com direção à Feitoria, que os Suplicantes querem estabelecer na Sesmaria que tem pedido a S. Majestade, em diverso requerimento [...]”.

 
                                                                                                                                                                                                        Continua...

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