sábado, 9 de julho de 2016


Se Pelotas não criou o charque, o charque e a escravidão inventaram Pelotas (parte 2)



                                                                                                          A.F. Monquelat


Não conseguimos localizar o requerimento de Mateus Vaz Curvelo quanto ao pedido de Sesmaria, que ele disse ter feito, ou tampouco documento de que tivesse obtido terras no Continente de São Pedro.

Dentre as novidades inseridas na proposta de Mateus Vaz Curvelo e seus sócios estava a disposta na Condição terceira: “Estão prontos a meter ali [no Rio Grande], escravaturados [escravizados] da Costa d’África até Moçambique, e vendê-los fiado para pagamento em duas recolhas [parcelas], cujos valores serão recebidos nos seguintes gêneros: cânhamo, couros, sebo, trigo e farinha”.

Vejamos ainda outras condições: 6ª – Obrigam-se a meter ali as plantas [mudas] de carvalho e pinho, a exemplo do que fizeram os ingleses em Filadélfia e Nova Iorque, o que será de muita utilidade como todos o sabem;

 7ª – estão prontos a meter ali, também, as sementes de linho doméstico, vulgarmente chamado de Galego, Coimbrão e Mourisco, assim como outros que vêm da Rússia e Suécia a todos os Postos deste Reino. E obrigam-se a mandar vir para este fim, Mestre de Agricultura e Botânica;

 8ª – Temos por objetivo fazer as carnes de moura, à imitação da Irlanda, o que é facílimo, desde que haja Mestre; e mesmo sem este, haverá portugueses que as têm feito no ardente clima da nossa América e que vão à Índia e voltam a Lisboa;

9ª – Lembram-se de fazer fábrica de sola (curtumes), se houver casca adstringente e própria para isso; isto para evitar a dúvida dos couros arderem na seca, ou apanharem chuvas e aparecerem os pelames rotos e perdidos. Ou, pelo menos, os reduzir a salgados como o fazem em Pernambuco;

 12ª – Meter, ali, porcos; e fazer carnes de moura para o abastecimento da Marinha, cessando assim o comércio da importação; [...]” (grifos nossos).

Grifamos o “fazer as carnes de moura, à imitação da Irlanda”, com o propósito de supormos, diante dos documentos até aqui arrolados, que o charque ambicionado pelos comerciantes e autoridades portuguesas era este; e não o produzido em maiores proporções, o de mantas, pelos charqueadores continentinos.

Uma outra questão, que agora nos cabe a esclarecer, é a de que quando escrito nosso artigo, “José Pinto Martins, o charque e Pelotas”, publicado pelo Diário da Manhã, em duas partes, nos dias 4/5 e 11 de abril de 2010, dissemos, cautelosamente, que: “Por não conhecermos bibliografia sobre o tipo de charque produzido pelos irlandeses, ficamos em dúvida quanto à técnica usada por eles; mas acreditamos seja o processo de moura, que consistia em acrescentar ao charque embarricado o licor formado pelo sal desfeito, uma espécie de salmoura”.

A indústria de carnes salgadas entre os súditos da coroa espanhola

Dissemos, também no artigo citado, que “A técnica desenvolvida pelos irlandeses foi motivo de admiração e inveja de muitos que se aventuraram nesta atividade saladeiril”.

Acrescentamos a seguir: “Entre os espanhóis saladeiristas, consta-nos ter sido Don Francisco de Medina o primeiro a conseguir em seu saladero, através da instalação de um laboratório montado no estabelecimento, dirigido por técnicos irlandeses, esta façanha.

Tal fato, segundo palavras do Vice-rei Nicolás de Arredondo, ao falar sobre tal, é que Medina, no ano de 1787, “havia descoberto o segredo e as carnes rioplatenses venceram o mito de suas condições inferiores, pois jamais haviam obtido antes a cor e a consistência – acrescentou o monarca em relação à forma vencedora – que em sublimar la salmuera del barril con una corta dosis de sal nitro” (MONQUELAT, 2009, p. 95).

E já que andamos por essas bandas, vamos aproveitar a estadia e dar uma espiada para vermos o que os súditos espanhóis andavam aprontando com suas carnes salgadas; pois, afinal de contas, também dizem que o pioneiro dentre eles, Don Francisco de Medina, por coincidência, iniciou suas atividades saladeris no mesmo ano de nosso Pinto, o ano de 1780.

Vamos averiguar se eles sabem, e confirmam isto:

Apesar de algumas iniciativas e trâmites para estabelecer a indústria saladeril no Rio da Prata desde o ano de 1771 até 1777, a história do charque na Banda Oriental só pode ser considerada a partir da instalação _ no lugar denominado el Colla _ de uma planta capaz de despertar a admiración de esta Provincia por los edificios que había labrado, segundo palavras do vice-rei Melo de Portugal em 1796.

De qualquer forma, os nomes de Manuel Melián, Francisco Albín e Miguel Ryan, não podem ser olvidados na lista dos primeiros entre os súditos da coroa espanhola a se dedicarem a tal indústria, tendo os mesmos, inclusive, feito vários e consideráveis envios do produto à Espanha e Cuba.

Através do próprio Melián, é possível para nós sabermos que no início de 1780, cumprindo um pedido do Intendente, D. Manuel Ignacio Fernández, embarcou no porto de Montevideo, a bordo dos navios El Rosario e Dolores, 136 barris de carne e que posteriormente provisionou muitos outros barcos. Com respeito a Francisco Albín, sabe-se que o mesmo possuía uma manufactura de carnes saladas em sua estância localizada próxima do porto de Las Vacas, na Banda Oriental. Quanto a Miguel Ryan, era este proprietário de um saladero que existia na jurisdição de Montevideo.

No entanto, a ação conjunta ou isolada dos nominados não foi sob nenhum aspecto capaz de se sobrepor ao nome de Francisco Medina, o saladerista do Colla.

Sabe-se há muito que os lagunenses, desde os primórdios do século XVIII, já chaqueavam nas terras do hoje estado do Rio Grande do Sul e, sabe-se hoje, graças ao nosso trabalho de parceria com Valdinei Marcolla, O Desbravamento do Sul e a Ocupação Castelhana (2010), que Silva Paes ao chegar à hoje cidade de Rio Grande ali encontrou resíduos de charqueações.
Documento com assinatura de João Cardozo

Posteriormente vamos encontrar, pelo menos de forma documental, João Cardoso da Silva que, instalado nas ruínas do antigo forte de São Gonçalo (hoje município de Arroio Grande) e reivindicando a primazia da indústria saladeiril data tal acontecimento como ocorrido no ano de 1780, inclusive trazendo especialistas, as suas expensas, para tal empreendimento; o que pode ser comprovado através de nosso trabalho, também de parceria com Valdinei Marcolla, Desfazendo Mitos – Notas à história do Continente de São Pedro (20l0).

Assim, se João Cardoso da Silva é o pioneiro na indústria da salga de carnes com intuito de lucro, e tal ato não ocorreu no território da hoje cidade de Pelotas, a história até então contada sobre a cidade de Pelotas está a exigir uma outra história. Uma história viável. Uma história que realmente possa ter acontecido. Enfim, Pelotas precisa de uma nova história.
 

                                                                                   Continua...

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