segunda-feira, 28 de agosto de 2017

Uma infância sem bairro








         “Andando pela Rua Osório no sentido-bairro-centro, se é que deveria chamar de bairro o local onde morava, pois, sua cidade era a cidade onde quase todos os habitantes se diziam moradores do Centro, por mais longe que dele distassem, o que fazia dela a cidade com o maior centro territorial do estado, quiçá, do mundo. Reflexo da antiga e falida opulência ou falta de melhor planejamento urbano? De qualquer forma, a pobreza do comércio local era evidenciada pela proliferação das lojas do Um e Noventa e Nove”.
         Ao reler este texto, publicado em 1997 como parte integrante do livro Maiêutica, fiquei a refletir sobre o bairro onde nasci o que me daria a oportunidade de falar sobre ele. No entanto, ao tentar recuperar aquele tempo, uma espécie de em busca do tempo vivido, me deparei com algo que até então eu não percebia: tive uma infância sem bairro.
         Naqueles e durante longo tempo mais, não se morava em bairros, e sim, lá nas Três Vendas, lá no Areal, lá no Porto, lá no Fragata e por aí a fora...  e, tanto era pra fora, que a chácara do Dr. Chiquinho, que ficava confronte a casa onde nasci, era onde é hoje o Hospital de Clínicas de Pelotas, Rua Marechal Deodoro, entre as Ruas Dr. Amarante e Padre Felício.
         Quase tudo que se precisava, era preciso ir ao Centro para adquirir, mas isso era tarefa para os adultos. Às crianças restava aguardar ansiosamente uma oportunidade, e, aí então ouvir: “Hoje tu vais ao Centro com a mãe”, ou “hoje o pai vai te levar no cinema do Centro”.
         Nas férias escolares, não durante todo o período, a expectativa era grande quanto à casa de quem passaríamos uns dias. As opções não eram muitas, de vez em quando uma ida ao Laranjal, de caminhão. Este pertencia a alguém, que dele fazia, em um que outro domingo, uma espécie de “Excursão para o Laranjal”. E lá iam as pessoas, sentadas em tábuas que eram postas na carroceria, com intervalos entre uma e outra. Punha-se ali, em um canto da carroceria algumas coisas, incluindo uma boia que era uma câmara de ar de pneu de automóvel ou de caminhão. Saía-se muito cedo, era uma viagem longa ou pelo menos muito demorada, e cheia de imprevistos.
         Voltando então para as férias, passava-as dividido entre a chácara de uma tia, a leitaria de um tio ou na casa da minha avó, locais esses que hoje eu diria ficarem os dois primeiros no Areal, e a casa da minha avó na Castilhos, que naquele tempo se dizia que ficava lá na Vila Castilhos, 1ª entrada. Essa referência de 1ª entrada era importante, pois dava certo status ao local. Morar antes dos trilhos ou depois dos trilhos do trem, lá na Vila Castilhos, fazia diferença. De qualquer forma, quando alguém fazia algum frege ou esculhambação pelas ruas, as pessoas logo diziam: “só podem ser lá da Castilhos”.
         A cidade, depois de um tempo começou a ser dividida em distritos, mas as referências continuaram a ser por locais, tipo: “nas imediações da ponte de pedra” ou senão “próximo à ponte de madeira”. Era assim que a imprensa se referia e que as pessoas se localizavam: próximo a cacimba do mato (que ficava na Rua 3 de Maio esquina Liberdade [atual João Pessoa], no Beco da Muquirana (Rua 7 de Abril -atual D. Pedro II- entre as Ruas Gonçalves Chaves e Santa Cruz]), Beco da Fumaça (era um corredor localizado na Avenida Vinte de Setembro nº464, pouco além do Cemitério), perto da olaria tal, no popular Cortiço do Francês Grande [Rua Marechal Deodoro entre Avenida Bento Gonçalves e General Argolo], próximo ao Sobrado Azul, no Beco do Pimpão (localizado na Rua Dr. Urbano Garcia), depois da igrejinha da Luz... e tantos e tantos outro locais que serviram por décadas como pontos de referência.  
         O tempo passou, mas as referências continuaram: ali pros lados do Forno do Lixo, na Curva da Morte, adiante do Entreposto, antes da Chácara dos Padres, logo adiante do Cinema Apolo, ou do Avenida, ou do Fragata, ou do Esmeralda, na descida do Guarany, “ah, isso fica passando o Cemitério” ou então, adiante do campo do Bancário.
         - Vamos jogar futebol.
         - Aonde vai ser?
         -Lá no campo do Oriental.
         O campo do Oriental ficava nas imediações da Cohabpel, que ainda não existia para servir de moradia ou referência.
         Um dos meus tios, irmão de meu pai, tinha banca na Feira da Avenida.  Duas por três, eu era companheiro dele pra ir aos matadouros da Avenida Argentina, que depois mudou de nome para Avenida Fernando Osório, em direção às terras Altas, apanhar derivados do porco e carne. Íamos de madrugada. Da charrete de meu tio, eu ia avistando os operários das fábricas de conservas, todos de branco. Aquela visão era um verdadeiro contraste com o resto da paisagem. Eram filas e filas de operários, quase que mulheres em sua maioria, todas de branco a exceção das botas, que eram pretas.
         Durante o trajeto o tio costumava indicar e comentar sobre os locais, inclusive um que outro que as pessoas acreditavam serem mal-assombrado.
         Certa feita, a curiosidade me levou a mais uma aventura. Consistia esta em atravessar a cidade, a pé, pois eu não tinha bicicleta e as bicicletas eram caras, e ir até a zona das fábricas: de óleo, linhaça, papel e, talvez, outras que não lembro quais eram, se é que eram. Lá, uma região inteiramente nova, com imagens bem diferentes das que eu até então conhecia e a câmera fotográfica que a minha mente registrara.
         Um daqueles registros guardados no arquivo da minha idade era quanto à surpresa e admiração ao ver, em um lado de uma daquelas ruas, algumas casas, de madeira, cujas paredes externas estavam revestidas com latas de óleo, abertas e esticadas, pregadas lado a lado, formando uma espécie de mural multicolorido.
         Fiquei deslumbrado com aquela visão. Verdadeiro contraste ao que representavam aquelas fábricas. Refletiam aquelas paredes, de lata, o mundo de miséria que as fábricas gestavam, e que eu, naquele olhar, ainda sob o fascínio daquelas multicoloridas paredes, não conseguia enxergar.
         Por certo que por detrás daquelas paredes viviam operários com suas famílias, mas ainda era uma existência digna, sem miséria. As latas enferrujaram e as casas desapareceram. Nada foi preservado. Tudo foi literalmente tombado, pois afinal eram apenas casas de gente simples, gente do povo, de pessoas que não foram homenageadas com nomes de ruas, bustos ou praças.
         Desse tempo pra cá, a cidade mudou e muito. Surgiram novas divisões e outras referências. Mas, pelo menos até bem pouco tempo, as pessoas continuavam dizendo que moravam no Centro, e assim colocavam nos seus endereços para correspondência. Nunca ouvi até hoje alguém dizer que morava na Várzea, não sei se por força do hábito de dizer que morava no Centro, ou vergonha de dizerem: “Eu moro na Várzea”.
         Como eu nasci e me criei na Rua Marechal Deodoro, também conhecida como Rua do Canalete, entre as ruas Dr. Amarante e Padre Felício, e não se morava em bairros porque esses ainda não haviam sido batizados, sigo sem saber se aquele local era Centro ou Zona Norte, bem como, continuo até hoje com a sensação de que tive uma infância sem bairro.



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Revisão do texto: Jonas Tenfen
Postagem: Bruna Detoni 

2 comentários:

  1. Caro Sr. Adao. Ao ler sobre "A RUA OSÓRIO", penso ter encontrado, talvez, a ponta do novelo da lã em que me encontro. Estou pesquisando sobre a CASA COMERCIAL de GERMANO BERG (Local, início e fim das atividades, propagandas...qq coisa). Descobri que o mesmo morreu em 02.03.1881. Todavia há outros 2 Germano(s). Um morre em 1910 e era guarda livros da União Fabril (seria filho do 1o?) e o terceiro, segue os caminhos iniciais do 2o e tb se torna militar. Leonor Berg (filha do 2o Germano) ministra aulas após a morte do pai, justo na rua Osório. Poderias auxiliar-me com o que tens? Antecipadamente, subscrevo-me. Att. teu leitor e "parasita"; Alfonso Menegassi

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  2. Caro Sr. Menegassi, bom dia. Lamento, mas não sei nada a respeito das pessoas que o senhor menciona, pelo menos de memória não, caso encontre algo lhe informarei. Abraço.

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