segunda-feira, 14 de agosto de 2017

Pelotas dos Excluídos (Vol.2) Parte 1



A.F. Monquelat


       

Tratamos aqui, neste segundo volume do Pelotas dos excluídos (subsídios para uma história do cotidiano), de dar continuidade ao nosso projeto de levar ao conhecimento do leitor alguns fatos ocorridos na Princesa do Sul e que, até então, não haviam merecido a atenção da história tradicional.
  Em nosso trabalho anterior, enfocamos os fatos ocorridos entre os anos de 1875 a 1888, encerrando assim, ainda que de forma fragmentada, um período da história de uma cidade forjada na força do trabalho escravo.
 A partir de agora terá o leitor em suas mãos um novo período, terá também a oportunidade de ver e avaliar o que mudou se é que algo mudou na vida de nossos personagens, os excluídos da história e, principalmente do negro que a partir de 13 de maio tornara-se livre.  
Segundo o Onze de Junho de 15 de maio de 1888, em Pelotas, ao ter se conhecimento de que havia passado em terceira discussão, no Senado, o projeto abolindo a escravidão no Brasil, o Sr. Dr. Piratinino de Almeida dirigiu-se à charqueada do Sr. José Bento de Campos Filho e, reunindo os contratados daquele estabelecimento, fez-lhes a comunicação em um “eloquente e tocante discurso” que daquela data em diante eram livres, estimulando-os “à prática do bem, a fim de que se tornassem cidadãos úteis a si e a sociedade”.
Logo após, o Sr. José Bento de Campos declarou-lhes que os seus serviços, em seu estabelecimento, seriam remunerados e que ali não havia mais senhor nem escravos. 
Revela-nos ainda a matéria que o contentamento que se apossou dos contratados, ao receberem a notícia, foi indizível e muitos deles o manifestaram pelas lágrimas silenciosas que derramaram.
Na charqueada do Sr. Ataliba Borges, o Senhor Machado procedeu da mesma maneira para com os contratados daquele estabelecimento.
Entendia o jornalista do Onze de Junho que, além de justo, os Srs. industrialistas da cidade deveriam seguir o exemplo “daqueles cavalheiros”, a fim de evitar que os especuladores tentassem transviar do “caminho do dever” aqueles que acabavam de receber o “batismo da liberdade”.
Ora, o Dr. Piratinino de Almeida em seu discurso pediu aos contratados que a partir de então praticassem o bem, para que assim se tornassem cidadãos úteis “a si e a sociedade”; já o jornalista do Onze pedia aos industrialistas da cidade que seguissem o exemplo, com o propósito de evitar que os especuladores tentassem desencaminhar “do caminho do dever” aos que acabavam de se tornarem livres. Em breves palavras, pode ser interpretado da seguinte forma: para o Dr. Piratinino de Almeida, de descendência escravocrata, a partir da liberdade é que o negro poderia e deveria ser útil a sociedade, desde que praticasse o bem. Para o jornalista, a preocupação era que os industrialistas cuidassem para que os que acabavam de receber “o batismo da liberdade” não fossem desencaminhados do “caminho do dever”, ou seja, que continuassem trabalhando, e percorressem o caminho “do bem”.
  E quanto aos ex-senhores de escravos, e grande parte da sociedade, que comportamento deveria ter para com aqueles?
     Que o leitor tire suas conclusões.

1888


Dia quatro de junho de 1888, por volta das 16.30h, um soldado da seção policial tentando prender “um preto”, cujo nome o jornalista do Onze de Junho ignorava, recebeu alguns murros que o fizeram rebolcar no meio da rua com a sua gloriosa espada.
O policial sob o terrível impacto “dos formidáveis punhos do preto, tendo uma lágrima em cada face”, foi procurar o seu comandante, o sargento Cardim, e relatou-lhe o ocorrido.
Ele, o valente, cheio de “meiguices, afeminado”, reuniu a tropa e ordenou que um dos seus beleguins [beleguim: agente policial cruel, violento] fosse com o soldado vitimado prender o insolente que se atrevera a erguer a mão para maltratá-lo... Afinal espancar um de seus comandados era maltratar a si, sargento insigne e único.
O soldado-vítima seguiu com o seu companheiro e, ao chegar ao local do pugilato, acharam mais prudente retrogradar porque viram entre as pessoas que ali se encontravam reunidas alguns cacetes empunhados por indivíduos possantes e acostumados ao manejo de tão terrível arma.
No quartel, o sargento formou novamente a tropa e, à frente dela, impávido, tendo nos lábios um riso de desdém e indiferença, seguiu para o lugar da farsa.
O povo começava a reunir-se instigado pela curiosidade, e o sargento Cardim, de espada em punho, investiu seguido de seus valentes, prendendo um pardo que estava em companhia de dois soldados de linha.
Algumas pessoas protestaram contra aquela prisão ilegal, vendo-se o sargento obrigado a por em liberdade o preso.
- “Enganei-me!”, bradou o comandante corado e ofegante.
- Mal feito fora, pois se ele é zanaga [estrábico]! – gritou um garoto que ali estava e que soltando gostosas gargalhadas fitava o rosto do pigmeu-sargento.
Para terminar a farsa, o herói da polícia dirigiu-se para o quartel, de espada em punho, apressado, como se estivesse disposto a arrasar tudo.
O povo seguiu de longe, temendo a ira do D. Quixote policial.
Ali chegando, amainou-se a cólera do valente sargento ao contato refrigerante de dois ou três goles de água fria.
E assim terminou a farsa...
E conclui o jornalista: “Miséria das misérias!”.  

Ilegalidade policial


O Diário de Pelotas de oito de outubro de 1888 informava aos seus leitores que, por meio insuspeito e merecedor de crédito, chegara ao conhecimento daquele jornal uma irregularidade cometida pela polícia da cidade, que parecia querer secundar [repetir] o procedimento do célebre delegado-palmatória, que daria ao negro fóbico Coelho Bastos [que não conseguimos saber de quem se trata] um excelente rapa-coco de ex-escravos.
Era o caso que estando, dia sete dançando alguns libertos em casa de João André Cardoso da Silva, às 2.30h da madrugada, bateram à porta alguns soldados de polícia pública e vários membros da polícia particular, comandados pelo Sr. Vicente Ribeiro, subdelegado de polícia que, apontando uma pistola que levava, declarou estarem presas todas as pessoas presentes.
Estas se entregaram sem resistir, porque com tais Argos [personagem da mitologia grega] insistir equivaleria a fazer jus a algumas alfinetadas pelo lombo, aplicadas pela ferrugenta durindana [nome da espada de Rolando, herói da Chanson de Roland e outras histórias] daqueles bravos.
Saindo 25 pessoas, calculadamente, para a prisão, acompanhados dos valentes, apenas chegaram ao quartel umas dez, porque as outras preferiram pagar os 2$500 réis que a autoridade lhes exigiu pela sua liberdade.
O pretexto apresentado pelo Sr. Vicente Ribeiro para efetuar semelhante prisão foi que não havia licença tirada na polícia para aquele baile.
Acrescentava o jornalista ser simplesmente... muita ingenuidade; pois acaso ignorava o Sr. Vicente Ribeiro que depois da lei de 13 de Maio não havia mais escravos?
E que por isso tanto podia dar um baile um comendador como um liberto.
Acaso pretenderia S. Senhoria ignorar que a polícia não podia exigir que se lhe pedisse licença para dar um baile particular?
Seria o máximo da ignorância, se não soubesse que era o interesse que falava mais alto e que parecia não conformar-se com “a gloriosa” lei de 13 de Maio, que viera secar na polícia uma de suas mais fecundas fontes de receita.
Em todo o caso, concluía o jornalista, cumpria ele o dever ao registrar aquele ilegal procedimento do Sr. Vicente Ribeiro sobre quem deveriam recair as “bênçãos dos benéficos proventos policiais”; encerrando com as seguintes palavras: “Liberdade! Liberdade!”. 

Furto e ferimento


Tendo o proprietário de uma taverna à Rua Santo Antônio [atual Miguel Barcelos] surpreendendo “um preto” a furtar diversos objetos em sua casa de negócio tentou prender o “preto”, sendo por este agredido.
Para ver-se livre do agressor, o taverneiro acabou ferindo-o levemente. 

Bravuras da polícia


Dia 12 de dezembro de 1888, às 20.00h, a população da cidade foi alarmada pelos repetidos apitos de três praças de polícia que corriam espavoridos pela Rua São Miguel [15 de Novembro], com os chanfalhos [espadas dos guardas municipais e dos agentes de polícia] desembainhados.
Ninguém sabia o que tinha ocasionado aquele barulho, pois os policiais só diziam: “Fugiu! Fugiu!...”.
De repente, pararam em frente a umas obras e declararam às pessoas que ali se aglomeravam em grande número, que tinha sido um indivíduo que entrou no jardim da Praça Pedro II [Pedro Osório], sem licença... e que, ao receber a ordem de prisão, evadira-se.
O fato, porém, dera-se da seguinte maneira:
Um cidadão, decentemente vestido, mas negro, ao sentar-se a uma das mesas do jardim da Praça pediu que lhe servissem uma cerveja, ao que um dos caixeiros [garçom] do Sr. Antônio Scotto, proprietário do estabelecimento, recusou-se a fazê-lo.
Aquele cidadão, negro, julgando-se ofendido com a recusa, trocou algumas palavras com o caixeiro, tendo este exigido o auxílio da polícia. Esta prontamente aparecendo deu voz de prisão ao aludido cidadão negro, porém já de espada em punho e descarregando-lhe alguns golpes, de um dos quais resultou um ferimento de alguma gravidade.
Foi então que o ofendido negro tratou de evadir-se, e daí a grande algazarra provocada pelo arreganho da polícia.
Diante de tal acontecimento, o jornalista do Diário de Pelotas, indignado, diz que se fosse algum gatuno ou algum criminoso de morte, talvez a polícia não se prestasse com tanta solicitude. Mas, tratava-se de um cidadão indefeso, e, por isso, a polícia demonstrara cabalmente o seu comportamento belicoso.
E acrescenta: “É sempre assim, e vamos muito bem”.
Considerando a escassez de jornais deste ano no acervo da Biblioteca Pública Pelotense, não nos foi possível trazer maior quantidade de fatos ocorridos nos primeiros meses da abolição.

Continua...


Fonte de Pesquisa: CDOV - Bibliotheca Pública Pelotense
Revisão do Texto e Publicação: Jonas Tenfen
Tratamento de Imagem: Marília Bas

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