quarta-feira, 3 de agosto de 2016


Se Pelotas não criou o charque, o charque e a escravidão inventaram Pelotas (parte 4)


 

                                                                                                          A.F. Monquelat

Joaquim José Leite da Costa, como procurador, peticionou em nome de seu cliente, o charqueador Antônio José de Oliveira Castro, à Sua Majestade, dizendo que seu constituinte era senhor e possuidor de um terreno, “compreendido em seu Título, do qual não se acha preenchido [não cumpridas as formalidades legais]”, e que tal terreno estava situado na Freguesia de São Francisco de Paula, Vila do Rio Grande; porém, Dona Antônia Margarida Teixeira de Araújo, viúva do capitão João José Teixeira de Guimarães, possuidora de uma Data de terras na margem do “Rio de São Gonçalo”, nessa mesma Freguesia, cuja Data se dividia, pelo Norte, com as sobras da “Fazenda de Monte Bonito”, e que essa Data nunca fora medida nem pelo marido, João José Teixeira de Guimarães, e tampouco por seus herdeiros. E que por isso, e a seu arbítrio, estabeleceu os limites de suas terras, pela parte do Norte, em terreno alheio.

Mapa do Rincão de Pelotas situado na margem meridional do Rio grande
Disse ainda o Procurador “que até o presente, nem por ele [Guimarães], nem a viúva ou seus herdeiros haviam vendido, cercado ou tapado o terreno”. E que, medida judicialmente a Fazenda de Monte Bonito, partia esta, pelo Norte, com as terras da referida viúva e que a linha divisória corria pela frente de todas as demais Datas de terras, pois na ocasião foram concedidas na mesma extensão e forma de quando foram dadas aos antepossuidores de seu marido e que somente este não ficara satisfeito com aquela medição judicial, por querer avançar sobre todos os outros dateiros que, aliás, se contentaram com os seus justos limites.
                                          
Ao leitor não familiarizado com a história destas terras (Datas), as quais deram origem à Cidade, queremos esclarecer o seguinte: o governador Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Câmara, tendo de assentar 20 outras famílias além das 64 assentadas na Sesmaria do Rincão Nossa Senhora da Conceição (que a historiografia local denomina de Rincão de Correntes) de propriedade de Manoel Bento da Rocha, aproveitou as sobras do “Rincão de Ignacio Antônio, que tinha cinco léguas e um terço, das quais três e meia ficaram ao dito Ignacio Antônio e o resto foi repartido pelos vinte Cazaes”.

Esta repartição, que Veiga Cabral denominou de “Explicação”, foi por ele anexada na correspondência que enviou em 12 de abril de 1781, ao Vice-rei Luiz de Vasconcelos e Souza.

Naquela oportunidade, o Governador também informou que “aos povoadores imediatos a Serra [dos Tapes], por melhor o terreno, distribuí Datas mais pequenas, que aos situados nas várzeas”.

Para maior clareza do dito pelo Governador, devemos fazer o seguinte raciocínio: dividir por 20, a área compreendida desde o Arroio Pelotas até o “Arroio de Santa Barbara”. Feito isto, teremos ideia da largura de cada uma das 20 Datas distribuídas aos 20 casais. O comprimento é que variou, de acordo com o tamanho das várzeas localizadas no fundo dos terrenos dos dateiros.

A partir daí, alguns elementos nos levam a supor que, pelo menos por quase uma década, tanto os dateiros quanto os sesmeiros dedicaram-se ao agropastoreio, ressaltando-se que nas estâncias de Manoel Bento da Rocha e Ignacio Antônio da Silveira Cazado é bem provável que além do fabrico de charque para o consumo possa também ter sido produzido com intuito de lucro.

Na Relação dos gêneros importados e exportados no Rio Grande de São Pedro no ano de 1787, saíram para o Rio de Janeiro 65 embarcações as quais transportaram 117. 221 arrobas de charque e 4 barris de carne em Moura, dentre outros produtos.

Embora não saibamos, por não constar da referida Relação a origem daquela produção, podemos afirmar que a José Pinto Martins arroba alguma pode ser creditada, pois por estas bandas ele não se encontrava.

Considerando que João Cardoso da Silva logo após inaugurar a indústria saladeiril no Rio Grande de São Pedro (l780), nos disse que deu “aos demais as ideias e noções necessárias para um ramo tão vantajoso ao Estado [...]” e que, quando da reclamação do comissário espanhol, José Varella Y Ulloa, ao nosso comissário para a Demarcação dos Limites, Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Câmara, feita desde o Campo do Taim, aos seis dias do mês de março de 1785, diz o comissário espanhol a certa altura: À vista disto e de que já tenho feito a V. Sª. Os correspondentes protestos, sobre a má inteligência que dá aos artigos 3º e 4º do Tratado Preliminar, só me resta dizer que, nos poucos dias que o tenente de navio, D. Diego Albear esteve acampado junto às ruínas do Forte de São Gonçalo, reconheceu o curso do Piratini pelo espaço de 7 ou 8 léguas, em cuja distância achou três charqueadas e quatro estâncias (grifo nosso), [...]”, não é temerário afirmar que o charque produzido no Rio Grande de São Pedro fosse proveniente das charqueadas estabelecidas na margem meridional do rio Piratini.

Visto não ter sido Pelotas a pioneira na indústria saladeiril, resta-nos perguntar: quando e onde surgiram as primeiras charqueadas em Pelotas?

É provável, embora disto não tenhamos certeza, que as primeiras fábricas de charquear tenham se instalado às margens do arroio Santa Bárbara, terras do capitão Ignacio Antonio da Silveira Cazado, e, para tal suposição, apoiamo-nos nas palavras de seu genro, Gonçalo José de Oliveira e Silva que, no processo movido contra ele, por Mariana Eufrásia da Silveira, diz a certa altura da Apelação: ¨[...] quando o Embargante recebeu do capitão Ignacio Antonio da Silveira, seu sogro, aquelas duzentas e cinquenta braças de campo, em Causa Dotis, no lugar onde se acha estabelecido com casas, armazéns, negócio, quinta e sua Fábrica de Charquear, já em todo o Arroio de Santa Bárbara se achavam estabelecidos outros muitos e diversos moradores com negócios mercantis, Fábricas de Charquear, casas de residência e armazéns necessários para recolher os necessários mantimentos, que se exportam para o Rio de Janeiro e mais portos; cujos estabelecimentos foram ali feitos e formados há muitos anos, com licença, concessão e faculdade do sobredito Capitão Ignacio Antonio da Silveira, aonde, ainda hoje, existem os mesmos moradores, com grandes Fábricas e importantíssimas propriedades de casas, Seleiros [fabricantes ou vendedores de selas] e Armazéns, com grande giro de Comércio, do qual dão grandes e avantajados interesses a Sua Alteza Real, com os muitos Direitos que lhe pagam. [...]”.


                                                                                   Continua...

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