sexta-feira, 26 de agosto de 2016

Barros, o Mulato, e a Frente Negra Pelotense




                                                           “Os homens são superiores uns aos outros não                                                       pelas raças, mas pela instrução e pela cultura”.
                                      Rodolfo Xavier

        

         Em 26 de março de 1933, o jornal Alvorada em artigo denominado Centros de Cultura, assinado por Rodolfo Xavier, apelava aos intelectuais negros, “pois que aqui os há e competentíssimos”, para a fundação de um Centro de Cultura igual “aos da Frente Negra de São Paulo, abstraindo discussões de raças e de preconceitos”, tendo em vista exclusivamente o levantamento moral e intelectual da “raça” por meio de reuniões e preleções, de aulas noturnas e tudo quanto pudesse cultivar a inteligência da mocidade negra.
         A ideia prosperou, e, nos primeiros dias do mês de setembro daquele ano, a imprensa de Pelotas divulgava o seguinte comunicado da nova entidade criada na cidade: “Temos a honra e a mais grata satisfação de levar ao conhecimento de V.S. que fundamos nesta cidade uma congregação educacional a qual se destina a espalhar pelo povo etiópico pelotense, a luz da instrução, cooperando assim para debelar o flagelo do analfabetismo e implantando entre o nosso povo a crença de que a nossa Pátria só será poderosa pela cultura de seus filhos.
         Dado o nosso amplo programa, a nossa entidade, restritamente educacional, denomina-se Frente Negra Pelotense, e terá como dever: incentivar com vigor a campanha pró-alfabetização, instrução e educação, especialmente dos filhos da raça.
         Pela Frente Negra Pelotense: o secretário geral Humberto de Freitas”.
         É importante destacar que, na época, o analfabetismo entre os brasileiros era de 70 por cento, e o Brasil apresentava o maior coeficiente de analfabetos na América do Sul.
         Dia 27 de dezembro de 1933, o Diário Liberal noticiava que se realizara com todo o brilho, no dia 25 daquele mês, na sede provisória situada à Rua General Argolo nº 415, a Assembleia Geral da associação Frente Negra Pelotense.
         Os trabalhos foram assistidos por grande número de associados e pessoas interessadas, transcorrendo durante todo o tempo que durou a assembleia, no maior entusiasmo.
         Além de serem discutidos os Estatutos, “que provocaram acalorados debates” foram, também, ventilados vários assuntos de interesse da entidade.
         A Frente Negra Pelotense recebeu dos organizadores do 1º Congresso Afro-Brasileiro o seguinte telegrama: “Afro-Brasileiro agradece apoio, solidários espera representante”.
         E assim, aos 4 dias do mês de novembro de 1934, o pintor pelotense Miguel Barros, “[...] jovem artista, que por mais de uma vez  já revelara a Pelotas as suas excelentes aptidões através de magníficos trabalhos, vai a Recife expor uma bela coleção de telas, aproveitando a instalação do congresso Afro-Brasileiro a ser ali realizado”.
         Prosseguindo, diz ainda a notícia que certamente Miguel Barros obteria, na capital pernambucana, o êxito a que fazia jus por seus reconhecidos méritos.


Miguel Barros em Pernambuco

         O texto de Miguel Barros, o Mulato, que ora divulgamos, na íntegra, foi publicado no Diário de Pernambuco de 20 de junho de 1935:
         “É verdadeiramente contristador que assistamos hoje aos ataques depreciativos, que de várias partes têm surgido, contra as organizações negras.
         A campanha anti-frentenegrina é dirigida por Gustavo Barroso.
         Conforme proclamações feitas pela Frente Negra, não possui o caráter de combatividade racial que querem nos emprestar.
         Nossa campanha de educação e unificação visa, conforme se deduz, elevar o nível do negro até agora num plano de inferioridade.
         O preconceito do qual se dizem tantos prós e contras é uma questão única, que só pode ser falada por aqueles que realmente o sentem com todas suas restrições humilhantes.
         As acusações de que as organizações negras surgiram após ordens de Moscou, é uma prova de desconhecimento completo de muitos acontecimentos de após abolição que se realizaram no intuito de restringir o mais possível o pensamento de inferioridade que sobre o negro fazia: consideração que a abolição positivamente não acabou.
         Que escritores de mentalidades evoluídas afirmassem elogiosamente o serviço prestado pelo preto, é bem certo, mas não impediu isto que se tirasse da mente brasileira as teorias de Gobineau.
         Se não existem associações com o nome de Frentes é uma questão somente de rótulo, pois existem os clubes italianos, sírios, portugueses, alemães, etc., onde se fazem as apologias a raça que pertencem, procurando conservar tradições, propagar sistemas de governo e tudo lhes dizer respeito, e nem por isso a unidade nacional foi abalada.
         Porque, e então, que quando os negros, que atualmente são os mais nítidos brasileiros, procuram congregar e elevarem-se intelectualmente contribuindo pelo progresso brasileiro, surgem comentários ridículos, cheios de inverdades, procurando caracterizar o movimento diferentemente do que ele realmente é.
         Ao comparecer eu ao Congresso Afro-brasileiro, e informado disso Gustavo Barroso, mas, creio, sem saber o motivo porque lá estive, deu-me credenciais de agente comunista.
         Não sabia certamente que representava a Frente Negra Pelotense.
         Que ela, apesar de ter sido fundada em 1933, foi composta também com os remanescentes de duas anteriores associações negras que lá já existiam, e não por ordens de Moscou, mas pela necessidade sentida pelo elemento de cor, diminuído em sua condição de brasileiro.
         A primeira campanha foi a do ‘Centro Monteiro Lopes’ que nasceu quando na Câmara pretendiam esbulhar o mandato daquele deputado pernambucano, eleito.
         A organização reergueu-se com a denominação de ‘São José do Patrocínio’ em 1920, quando por inauguração do primeiro teatro local, não se permitiram a entrada de negros na plateia.
         Desde lá, vinham os pretos tratando da organização para a sua defesa intelectual e moral que permitiria diminuir com o enlevamento, o preconceito que sobre nós é atirado.
         Com o ressurgimento destas duas iniciativas, por gente moça e mentalidades maduras, já treinadas nas campanhas anteriores, levantou-se a Frente Negra Pelotense.
         Sentindo sempre as investidas impatrióticas dos preconceituosos foi que a F.N. Pelotense se organizou e tivemos a par de tantos outros casos, no mesmo teatro 13 anos após a sua fundação, a negação do proprietário, quanto a apresentação em seu palco de um conjunto teatral composto de elementos de cor de Pelotas.
         O contrato estava quase feito, quando o proprietário soube que os artistas eram negros, o qual com o orgulho ofendido disse apontando para as galerias: ‘Negros só lá para cima’.
         Outro proprietário de uma empresa exclusiva de filmes, interrogado por que não permitia negros em seu cinema de luxo, disse que a plateia  preferia ter a seu lado uma meretriz branca a um negro ou negra, e se os permitissem ficaria com o cinema vazio.
         Foi também no início da F. N. P. que tivemos notícias particulares  e pela imprensa, do que ocorreu em São Leopoldo, centro colonial alemão, onde o integralismo tem um dos seus baluartes nos Pampas. Por ocasião da inauguração da praça central, o prefeito proibiu ‘negros e meretrizes sentarem nos bancos da referida praça’.
         Em São Paulo, no começo de 1930, a proibição a entrada de negros em uma casa de diversões, permitiu que se levantassem mais uma vez os pretos, o que culminou nos 20 mil frentenegrinos da F. N. Brasileira.
         Lá, também, sobressaindo da quantidade dos fatos preconceituosos, foi que em uma cidade do interior, uma devota lembrando-se do cortejo de certa procissão, uma criança negra vestida de anjo, juntamente com outras meninas brancas, assim trajadas, o fez; mas, o pároco, indignado disse: ‘onde você viu anjo preto?’ os de cor, revoltados, espancaram o padre e a procissão não chegou a realizar-se.
         Em todo o Brasil são notórios os casos como o de Pernambuco, em Garanhuns, onde o colégio das freiras não aceitou uma criança de cor, para seus bancos escolares. Isto não ocorre somente hoje, sempre o foi, e para remontar a alguns anos, veja-se na Lanzeta de Agostinho Bezerra, em dois de seus números, fevereiro e março de 1913, o protesto lançado por aquela revista contra idêntica proibição, feita naquela época, pelo colégio das freiras, São José, que ontem como hoje se desculpou com: ‘buscam poupar humilhações a crianças de cor, aos atritos que podem ocasionar entre as meninas de espírito ainda em formação, que convivem sob o mesmo teto.
         Em Pernambuco nota-se certa amenidade relativamente com o Sul, mas não quer isto dizer, que o preconceito não exista e que, além das proibições escolares, da não aceitação de empregados de cor para caixeiros de lojas, dos anúncios, como no resto do país, nas seções populares de ‘precisa-se de uma empregada branca, ou oferece-se ao comércio, um rapaz branco, etc.’.
         Os fatos antigos não deixaram de ser repetidos, e os letreiros, garrafais, de uma barbearia de Recife antigo: ‘brancos todos, pardos alguns e negros nenhum’, parece que ainda é a sintetização da consciência brasileira.
         E houve um filósofo negro, desconhecido, que deixou um provérbio, perfeitamente real: ‘quando o branco come com o preto, a comida é do preto’, é o que ele sempre repetia quando via algum de seus patrícios na intimidade de um branco interesseiro.
         Não impede a amenidade relativa do preconceito em Pernambuco, que aqui também existam sociedades bailantes de negros e mulatos, onde o ‘branco’, da mesma condição social, não vai porque não quer.
         O preto viveu, e vive isolado, e a única representação que possuía eram as sociedades carnavalescas, única forma de associação que, sozinho, pôde compreender após o cativeiro, e que as F. N. querem o equilíbrio, com a criação de suas entidades de educação, de elevantamento moral, físico, intelectual e para a cordialidade nivelada racial.
         Há poucos dias, um diário carioca noticiava que, no Senado, havia um movimento para supressão dos homens de cor, que lá trabalhassem.
         O senador Cunha Neto, indignado, disse que o movimento não lhe constava existir, mas, caso houvesse, estaria pronto a defender os interesses dos ofendidos, mesmo porque no Brasil não existiam brancos.
         Isto é mais uma prova a todos os que protestam contra as F.N., desmentindo suas palavras; pois mesmo que o fato relatado não existisse, como poderia ter sido tornado público, se ‘realmente’ não houvesse falado a respeito?
         Porque seriam mais uma vez diminuídos em seus direitos de cidadãos, apesar de comentarem a insistência do preconceito entre nós?
         Nada disse de sua forma interior, da maneira última com que o negro é visto e sentido, e o deixo a sinceridade de cada um.
         E, apesar de todos estes comentários, todos os homens de cor, que se prezam e não renegam sua epiderme, por outros desprezadas, unem-se nas F. N. e trabalham por suas grandezas, moral e intelectual, como contribuição ao progresso brasileiro”.




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Fonte de pesquisa: Bibliotheca Pública Pelotense-CDOV
Revisão do texto: Jonas Tenfen

Tratamento de imagem: Bruna Detoni

3 comentários:

  1. Esses documentos devem vir a luz nesse decisivo momento da História de nossa região, contribuindo para a reflexão da sociedade sobre as injusticas sócias sofridasnpelos brasileiros negros ao longo do tempo.

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  2. Esses documentos devem vir a luz nesse decisivo momento da História de nossa região, contribuindo para a reflexão da sociedade sobre as injusticas sócias sofridasnpelos brasileiros negros ao longo do tempo.

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  3. Parabéns, Monquelat, por trazer à luz esses documentos que compõem a nossa história: infelizmente, expressam a verdade... Um abraço da Beatriz Mecking.

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